Coluna do LFG

Se a lei não for aplicada, não faz sentido aumentar a pena

Autor

  • Luiz Flávio Gomes

    é doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito Penal pela USP. Jurista e cientista criminal. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi promotor de Justiça juiz de Direito e advogado.

16 de agosto de 2012, 8h00

Spacca
Os casos de homicídio, latrocínio e sequestro com morte deveriam ter pena de 50 anos, consoante postulação de alguns promotores de São Paulo (O Estado de S. Paulo de 27.7.12, p. C4). Pedir mais penas para reduzir a impunidade desses crimes significa (a) não conhecer o problema criminal (em toda sua extensão real e empírica) nem tampouco a lógica do (não) funcionamento da Justiça criminal no Brasil ou (b) conhecer tudo isso e pedir mais pena apenas para satisfazer os instintos de vingança ou para demagogicamente agradar a população (e setores da mídia).

Há 30 anos se pede e se faz a mesma coisa (aumento de pena, mais policiais, mais presídios, mais viaturas, mais juízes, mais prisões etc.) e a criminalidade só aumenta: em 1979 tínhamos 9,4 homicídios para cada 100 mil habitantes, contra 27,3 em 2010 (Fonte: Datasus e Instituto Avante Brasil). Se os promoteres querem mesmo reduzir a impunidade, o que parece bastante louvável, três coisas devem ser feitas: (a) combater o crime organizado (não há notícia de que o Estado brasileiro, em toda a sua existência, tenha extirpado alguma organização criminosa); (b) lutar por maior efetividade da Justiça criminal; e (c) ajudar a desenvolver um amplo programa de prevenção do delito e da marginalização social.

A impunidade, no entanto, não se combate com aumento da pena, sim, com a certeza da sua aplicação e execução (isso Beccaria já dizia em 1764). Em suma: a impunidade se combate com efetividade. Ocorre que o índice de efetividade da Justiça criminal brasileira é baixíssimo (e é aqui que está o grave problema que deveria ser enfrentado primordialmente pelos promotores).

Em 31 de dezembro de 2007, havia 143 mil inquéritos de homicídios parados nas delegacias (por falta de tudo: estrutura material, policiais, polícia técnica sucateada, falta de serviço de inteligência etc.). Para o Conselho Nacional do Ministério Público, o número é maior: 158.319 (dados fornecidos pelo CNMP, no dia 10.5.11).

Fez-se um mutirão (governo, Justiça e Ministério Público) para atacar essa causa evidente da impunidade. Fracasso quase absoluto! O objetivo era concluir cerca de 143 mil inquéritos que foram abertos pelas polícias civis até 2007, mas apenas 20% do total chegou ao fim e, desses, foi muito baixo o índice de denúncia (Folha de S. Paulo de 23.2.12).

Enquanto a lei vigente não for aplicada, é ilógico se postular aumento de pena. Para que aumentar a pena se o sistema não está funcionando bem? De cada 100 homicídios no Brasil apenas oito são devidamente apurados (autoria e circunstâncias do crime). Essa é a estimativa de Julio Jacobo Waiselfisz, que é coordenador da pesquisa Mapas da Violência 2011, divulgada pelo Ministério da Justiça (O Globo de 9.5.11, p. 3).

Mas nem todos os crimes apurados resultam em condenação. No final, cerca de 4% ou 5%. Em alguns estados (Alagoas, por exemplo), o índice de solução de homicídios não passa de 2%.

Um dos primeiros filtros da impunidade reside precisamente na investigação do crime. A Polícia brasileira não conta com boa infraestrutura, grande parte dos policiais está desmotivada, na Polícia existe muita corrupção, a Polícia técnica está sucateada, faltam policiais ou auxiliares etc.: tudo isso explica o baixo índice de apuração dos crimes. O Ministério Público deveria exercer o controle externo da Polícia e tentar solucionar todos esses crônicos problemas. Na prática, o controle externo não vem funcionando. Como nada funciona, mais reivindicação de aumento de pena!

A situação de abandono e de inércia é generalizada, inclusive nos estados que estão apresentando diminuição no número de mortes: São Paulo e Rio de Janeiro. No RJ existem 60 mil inquéritos de homicídios, instaurados até 31 de dezembro de 2007.

São 27, 3 homicídios (média nacional) por 100 mil habitantes. Acima de 10 a ONU considera como epidemia. Vivemos uma grande epidemia de violência no nosso país (que ocupa o 20º lugar no ranking mundial).

A sensação de impunidade é muito grande e isso, claramente, estimula o cometimento de novos crimes. O velho modelo investigativo brasileiro, fundado na confissão e nas testemunhas, está esgotado. É preciso estruturar a Polícia brasileira para fazer investigações técnicas e inteligentes. Do contrário, continuaremos no ranking dos países mais violentos do mundo, dizimando vidas preciosas, o que gera forte impacto não só nas famílias das vítimas, senão também inclusive na economia nacional.

A impunidade generalizada, tanto dos grandes como dos pequenos crimes, assim como das infrações administrativas, civis, de trânsito etc., constitui um dos termômetros da decadência das sociedades democráticas, fundadas na divisão de poderes e no império do ordenamento jurídico (lei, constituição e tratados internacionais).

A cultura da impunidade acoberta não só os pequenos delitos senão, sobretudo, os crimes violentos (especialmente os praticados pelos próprios agentes do Estado, destacando-se os policiais militares) assim como os cometidos por grandes corporações, por partidos políticos ou agentes públicos, que protagonizam desonestidades perversas, assim como malandragens insidiosas e cotidianas, típicas dos colarinhos brancos.

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