Direito Comparado

A reforma da Câmara dos Lordes chega ao seu clímax

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

15 de agosto de 2012, 7h50

A cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres de 2012 foi muito criticada no Reino Unido. A mescla de elementos históricos, muitos deles profundamente simplificados, e a tentativa de se exibir a sociedade britânica como um modelo bem-sucedido de multiculturalismo, ao tempo em que capaz de preservar antigas tradições imperiais, parecem não ter sensibilizado os ilhéus, que hoje vivem ainda mais acentuadamente sua crise de identidade. De um Império onde o Sol nunca se punha, hoje as Ilhas britânicas parecem ser uma nação em busca de um lugar ao sol.

Símbolo ou sintoma desse novo tempo, é a Fala do Trono de 2012, na qual a rainha Elizabeth II anunciou a intenção de seu Governo de apresentar um projeto de reforma da Câmara dos Lordes. A principal mudança consiste na eleição de seus integrantes, em substituição ao modelo de membros vitalícios. Esta é uma proposição altamente polêmica e que não goza do apoio de parte significativa dos deputados conservadores da Câmara dos Comuns. As vozes contrárias fundamentam-se em razões de variegada ordem: a) o enfraquecimento da posição dos comuns, ante o surgimento de outra espécie de representação parlamentar eleita; b) a perda de força do Partido Conservador em um Parlamento sem a Câmara vitalícia; c) a necessidade de um referendo popular para aprovação dessa reforma constitucional; d) a perda da capacidade da Câmara dos Lordes de se manter distante das polêmicas políticas e de conservar sua autoridade para exigir que o Governo preste contas de sua administração.[1]

A criação de “lordes eleitos”, na prática, extingue os últimos vestígios do modelo aristodemocrático que sempre regeu o Parlamento britânico. No início do século XX, na administração H. H. Asquith, o ministro da Fazenda David Lloyd George apresentou um proposta orçamentária que previa aumento significativo na tributação territorial rural, o que contrariava os interesses da maior parte dos membros da Câmara Alta. Com a ameaça de veto ao projeto de lei pelos lordes, instalou-se uma crise constitucional. O primeiro-ministro Asquith propôs ao rei George V que fossem criados 500 novos cargos na Câmara dos Lordes, com a indicação de pessoas ligadas ao Partido Liberal, o que garantiria a aprovação de uma reforma que diminuísse os poderes desse plexo parlamentar. Se os lordes pretendiam exercer seu direito de veto, que o rei criasse tantos lordes quantos necessários para lhes mostrar quem realmente detinha o poder no Parlamento. O rei, ciente do que isso representava para a legitimidade monárquica, forcejou em aceitar a ideia de seu ministro, até que cedeu a suas instâncias. Antes que a proposição fosse levada a cabo, os lordes recuaram e a reforma passou sem restrições significativas. O Ato do Parlamento de 1911 foi um marco no processo de enfraquecimento dessa casa de bases originalmente aristocráticas.

Na administração trabalhista de Tony Blair, nos anos 1990, aprofundou-se a reforma da Câmara dos Lordes, com a eliminação do direito automático dos “pares do Reino” de terem assento parlamentar. Nesse processo, houve o preenchimento das vagas por meio da indicação de pessoas ligadas aos partidos políticos, oriundas de diferentes procedências, como juristas, cientistas, líderes sindicais e representantes de grupos étnicos minoritários.

A Câmara dos Lordes também possuía, em paralelo às altas funções legislativas, competências jurisdicionais. Ela deteve, até 2009, o status de última instância recursal em matéria penal da Inglaterra, do País de Gales e da Irlanda do Norte. Em matéria cível, além dessas partes do Reino Unido, a Câmara também exercia a jurisdição em último grau sobre a Escócia.

A perda dessas funções jurisdicionais, exercidas pelo Comitê Recursal da Câmara dos Lordes, deu-se com a criação da Suprema Corte do Reino Unido, órgão dotado de autonomia orçamentária e de corpo de pessoal específico.

A Suprema Corte, além de possuir regras próprias de nomeação de seus membros, é composta por doze juízes, nomeados pela rainha, após indicação e seleção por um comitê de nomeações. Seus juízes podem ser escolhidos de entre pessoas oriundas dos tribunais judiciários, das associações de advogados e da sociedade civil.

As tentativas de reforma da Câmara dos Lordes, com o objetivo de convertê-la em uma espécie de Senado, nos moldes republicanos, não avançaram ao longo da primeira década do século XXI, até a ocorrência do episódio da venda de títulos de nobreza pelo Partido Trabalhista, como descrevem Gary Slapper e David Kelly:

“Em setembro de 2003, o governo expediu outra consulta pública propondo a extinção do cargo dos 92 nobres hereditários da Câmara dos Lordes, sem prever qualquer outra reforma. Após isso, esperava-se que o Projeto de Reforma da Câmara dos Lordes seria publicado em fevereiro de 2004, mas em face do desconforto potencial na Câmara dos Comuns sobre a falta de representação democrática na câmara superior, e uma revolta pela Câmara dos Lordes, o governo atrasou tal medida. Entretanto, com o surgimento do que inevitavelmente ficou conhecido como o escândalo da ‘compra de nobreza’ em março de 2006, quando se alegou que o Partido Trabalhista estava nomeando pessoas para a Câmara dos Lordes com fundamento em suas contribuições relevantes em dinheiro para o Partido, o argumento a favor de uma Câmara superior eleita, e não nomeada, ficou ainda mais forte”.[2]

A transformação derradeira desse órgão legislativo terá implicações profundas naquilo que se conhece por sistema jurídico inglês. Questões como a separação dos poderes, a independência judicial e o exercício do controle normativo por um órgão do Parlamento (como era o comitê recursal da Câmara dos Lordes) eram apresentadas como um exemplo da excentricidade do modelo inglês. Tão peculiar e incomum, tão imprevisível e casuístico quanto seu clima, seu modo de encarar o mundo e suas relações com os outros povos.

No que se refere à perda das funções jurisdicionais, por agora, a impressão que essa mudança trouxe foi a de que “a nova Suprema Corte não terá a natureza da maioria das outras supremas cortes, pois não será uma corte constitucional como elas e não terá poderes para invalidar leis. Em consequência, embora as alterações propostas claramente aumentem a aparência de separação dos poderes, a teoria de soberania parlamentar permanece intocada. Presume-se que foi a falta de tal poder que levou o Lorde Woolf a comentar que a nova corte iria de fato representar a troca de um tribunal de primeira classe (a Câmara dos Lordes) por uma Suprema Corte de segunda classe”.[3]

Quanto ao fim do regime hereditário, ter-se-á o apagar dos últimos vestígios do modelo aristodemocrático no âmbito parlamentar, conquanto ele resista na representação simbólica do poder do Estado na figura da Coroa. A função de moderação exercida pela (ainda) atual Câmara dos Lordes perderia seu sentido. No projeto do primeiro-ministro David Cameron não está claro se haverá a assunção pela nova Câmara de um papel federativo, como hoje se observa nos senados das grandes federações contemporâneas, como o Brasil e os Estados Unidos da América.[4]

Não deixa de ser irônico que essa importante reforma constitucional haja sido apresentada por um governo de coalização, dirigido por um conservador. Aqueles que objetam essa peculiaridade acentuam o caráter da debilidade da liderança de David Cameron, que não é visto como um conservador autêntico. Por outro lado, o escândalo da venda de títulos de nobreza e do pagamento indevido de jetons a membros da Câmara dos Lordes indicados pelo Partido Trabalhista levaram muitos críticos a dizer que, após as administrações de Tony Blair e Gordon Brown, a House of Lords não era mais uma casa de senhores respeitáveis. O trocadilho é infame, mas parece ser verdadeiro.

Esses surpreendentes e profundos câmbios, no até então estável e tradicional sistema jurídico inglês, obrigam os estudiosos brasileiros a saírem da zona de conforto dos lugares-comuns e das verdades imutáveis repetidas em salas de aula, com base em lições ultrapassadas de antigos autores de Direito Comparado. Os tempos novos chegaram. É preciso adaptar-se a eles.


[1] http://www.telegraph.co.uk/news/politics/9255520/Queens-Speech-2012-Cameron-urges-Tories-to-back-Lords-reform.html. Acesso em 13-8-2012.

[2] SLAPPER, Gary; KELLY, Gary. O sistema jurídico inglês. Tradução de Marcílio Moreira de Castro. Revisão técnica: Francisco Bilac M. Pinto Filho (capítulos 1 a 8), Monique Geller Moszkowicz (capítulos 9 a 15). 1 ed. brasileira. Rio de Janeiro : Gen, Forense, 2011. p. 68.

[3] SLAPPER, Gary; KELLY, Gary. Op. cit. p. 191.

[4] A íntegra do projeto de lei pode ser consultada em: http://www.official-documents.gov.uk/document/cm80/8077/8077.pdf. Acesso em 13-8-2012.

Autores

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    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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