Constituição e Poder

O Direito como expressão de cortesia e prudência

Autor

13 de agosto de 2012, 9h31

Spacca
Uma saudade muito comum parece tomar conta daqueles que vivem o direito há mais do que uma década. Na verdade, uma amarga sensação de desalento e de desencanto. O jurista mais antigo vai se sentindo saudosista, em meio a uma sociedade efêmera, de acentuada insegurança jurídica, de valores poucos consistentes, de escassez de prudência tanto em leis como em decisões judiciais, e de tratamento cada vez menos cortês e lhano, mesmo entre os profissionais do direito. Mas de tudo isso, o que o deixa mais agastado, porque o toca cotidianamente, talvez seja mesmo a falta de cortesia e elegância, própria dos novos tempos. O verdadeiro jurista, forjado na experiência do combate frontal e cotidiano (muitas vezes ácido) de ideias, certamente, haverá de concordar com essa ideia prosaica: mesmo para discordar, exige-se preparo e civilidade.

Dias desses li aqui, no ConJur, uma maravilhosa entrevista — concedida a Pedro Canário — pelo grande jurista, magistrado e professor, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, ícone de muitas gerações, José Carlos Moreira Alves. Professor ímpar de Direito Civil e de Direito Romano e, seguramente, um dos maiores juristas de nossa história próxima e distante. Para a minha absoluta surpresa, entre as merecidas homenagens que o entrevistado colheu entre os leitores que se dispuseram a comentar a rara entrevista, tão dificilmente alcançada, deparei-me com algumas intervenções que, tangenciando o limite sempre legítimo da crítica e da oposição às ideias do autor, resolveram, numa prática que vai se tornando cada vez mais comum, nos tempos de internet, demonstrar inteligência mediante críticas dirigidas exclusivamente ao autor das ideias.

O que já seria de todo inadequado, no meu modesto sentir, apenas se revelaria ainda mais surpreendente pelo fato de as críticas partirem de quem, obviamente, não sabia nada sobre o grande jurista além do fato de ter sido ele indicado para o Supremo por Presidente do Regime Militar. Obviamente, esse meu lamento só terá sentido para quem, como eu, também compreende que um Ministro do Supremo (seja ele Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva, Moreira Alves, Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio, Celso de Mello, Gilmar Mendes ou Ayres Britto) deve ser medido pela qualidade e conteúdo de sua magistratura e produção jurídica, e não pela origem de sua indicação.

No caso de Moreira Alves, para além das excepcionais qualidades como jurista e magistrado, reconhecidas no Brasil e fora dele, cuida-se também de um dos raros brasileiros a ocupar os cargos de Procurador-geral da República, Ministro de Supremo Tribunal Federal, Presidente da República, além de ter gravado o seu nome na história da Democracia e do Constitucionalismo brasileiro, ao presidir o Congresso Nacional quando da instalação dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte em 1º de fevereiro de 1987, permitindo com os demais Ministros que então compunham o Supremo uma travessia juridicamente segura para a tessitura do texto constitucional que então se promulgaria.

“Toda saudade é uma espécie de velhice”, dizia Guimarães Rosa. Todos nós, de fato, temos a certeza de estar envelhecendo quando nos sentimos deslocados no mundo presente e a sentir uma incontornável saudade de um mundo que já não existe. A cortesia e a elegância no trato; a tolerância e a prudência no agir; a generosidade com o ponto de vista contrário, tudo isso fazendo parte de um mundo que nos abandona juntamente com a partida de seus personagens: Ruy Barbosa, Sobral Pinto, Evandro Lins e Silva e Victor Nuns Leal. E entre os que ainda estão entre nós, é difícil imaginar quem, gostando verdadeiramente do direito, não sinta saudade do duelo, sempre no mais alto nível, entre um Sepúlveda Pertence e um Moreira Alves. Quando os dois se puseram em confronto, mesmo quando mordazes e cáusticos em suas críticas, jamais sacrificaram elegância, o humor ou a prudência do estilo.

Dirão com razão que a saudade do passado nos torna a todos um pouco conservadores e, num mundo em que as únicas virtudes valorizadas estão na juventude, certamente, pareceremos cada vez mais amargos e ranzinzas. Como “não podemos pular para fora deste mundo”, na incontornável ironia de Freud, o remédio talvez seja mesmo alguma resignação.

Entre todas as profissões e ofícios, contudo, ninguém tem tanta obrigação de ser gentil, generoso e cortês como o profissional do Direito. Joseph Joubert, de forma deliciosa, pregando uma conduta que parece não calhar bem à nossa realidade tão fria e desumana, pois plena de cortesia e generosidade, recomenda: “quando meus amigos são vesgos, olho-os de perfil”. Antes de reconhecer as qualidades, ninguém tem o direito de concentrar-se na crítica.

Num livro escrito ainda no Século XIX, dedicado precisamente a sugestões simples de comportamento para o dia-a-dia, John Mcgovern insistia com o fato de que “não há nenhum sinal exterior de cortesia que não repousa sobre uma profunda base moral. Se você é sempre cortês e sem dificuldade, é porque você é dotado, naturalmente, de uma natureza moral”.

É certo que uma das características da própria pós-modernidade, um lugar onde tudo é permanentemente efêmero e a velocidade é uma exigência vital, é a ausência e mesmo a falta de paciência com demonstrações de cortesia. Mas, ainda que se entenda este como um mundo inescapável, ninguém pode ser acusado por nele se sentir mal disposto.

Como dizia, o jurista, sobretudo o jurista, deve ser cortês e revelar generosidade. Mas ninguém consegue ser generoso e cortês se não consegue ser prudente e tolerante, e aqui o problema ganha apenas uma outra dimensão, pois, no mundo contemporâneo, também prudência e tolerância parecem andar algo um pouco fora de moda.

Anthony Townsend Kronman, em artigo dedicado a Alexander Bickel, outro grande constitucionalista de nosso tempo, afirmava que “prudência significa um traço ou característica (trait or characteristic) que é ao mesmo tempo capacidade intelectual e disposição de temperamento. Uma decisão, ou um programa político prudente, é, acima de tudo, um juízo que leva em conta a complexidade da conformação humana e institucional; e uma pessoa prudente, neste sentido, é aquela que enxerga complexidades, é alguém que tem um olho para o que Bickel chama de "indisciplina da condição humana", mas, não obstante, é capaz de conceber estratégias bem sucedidas para o avanço (ainda que gradual ou lento) de seus próprios princípios e ideais. Uma pessoa prudente é também uma pessoa com caráter distinto, que sente um certo “fascínio” na presença de instituições complexas que apenas evoluem historicamente, além de uma modéstia na realização de suas reformas; é uma pessoa que tem um alta tolerância para a demora e acomodação e é capaz de aceitar afinal a incomensurabilidade entre qualquer sistema de ideias e o mundo como ele nos é dado, com toda a sua irregularidade e inconsistência; valoriza o consenso, mas não se sente desmoralizado pelo processo de compromisso, que é irracional, mas muitas vezes se mostra necessário para alcançá-lo”. (94 Yale L. J. 1568 1984-1985- Online).

Em tais qualidades reúnem-se na pessoa prudente tanto o intelecto como o caráter. Para Bickel, a prudência é indispensável como condição de excelência e de sucesso, tanto para as atividades do político como do juiz.

O grande problema do homem e do jurista contemporâneo é como revelar tais distinções de caráter – cortesia, tolerância e prudência – num mundo cuja marca é a da velocidade, do niilismo e do desencanto.

Ralph Waldo Emerson, falando de prudência, dizia que “quando patinamos sobre gelo fino, a segurança esta na nossa velocidade”. Vivemos num mundo em que tudo parece provisório e efêmero, consequência de sua velocidade e transformação, exigências que parecem vitais aos novos tempos.

Nietzsche, o profeta do mundo sem Deus, advertia que a marca do mundo que ele testemunhava nascer era a de um mundo em que a moralidade não mais desempenharia um papel preponderante, pois os valores morais não teriam mais validade absoluta (Der Wille zur Macht). Pelo contrário, os valores morais só se mostrariam úteis, ou inúteis, em uma situação particular. Além disso, um Niilismo que não aceita os valores de qualquer verdade indubitável, pois verdades objetivas e eternas não são reconhecíveis.” Do ponto de vista moral e social, afirmava Nietzsche, pela conformação do mundo que emergia, de um eterno ir e vir, em que tudo morre e volta a florescer, Deus seria sacrificado numa falta de sentido de uma eterna circularidade. Portanto, em um tal mundo, “não há nenhuma autoridade, abrangente e eterna. O homem é jogado de volta sobre si mesmo”.

Em síntese, no evangelho niilista, o homem deve acostumar-se a viver num permanente estado de insegurança, no qual “não há mais garantia, tampouco alguma certeza fundamental”.

Segundo Evilázio Teixeira, “vive-se hoje a consciência do fracasso do projeto de civilização e cultura que se tinha e se apresentava como projeto oficial. Uma espécie de ar de outono invade a cultura do Ocidente, no que diz respeito a uma síntese cultural atual, o tempo é um tempo de tribulação. Fazendo uma espécie de radiografia do momento histórico em que vivemos, podemos afirmar que vivemos numa época que não tem condição de dar-se um nome. (…) Para outros, ainda vivemos um momento pós-moderno, onde a morte do sujeito se apresenta como a última onda de ressaca da morte de Deus.”

Tudo considerado, num mundo em que a moral se dilacera, em que a busca séria da verdade científica é despreocupadamente jogada no lixo e no qual notas de cortesia são atribuídas ao comportamento de indivíduos velhos e ultrapassados, não deveria causar qualquer surpresa a deselegância e o desrespeito com a vida e o passado de um grande jurista brasileiro.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!