Diário de Classe

O persistente dilema Teoria versus Prática no Direito

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11 de agosto de 2012, 8h00

Spacca
A filosofia grega, principalmente pela via da filosofia aristotélica, estabeleceu critérios de diferenciação para os modos de o ser humano se relacionar com o saber: a episteme, a phronesis e a techne. A episteme — de onde vem a palavra epistemologia — manifesta-se no tipo de saber veritativo, próprio do campo das ciências. Phronesis e techne são dimensões do saber próprias da chamada “filosofia prática” que problematizam a relação do ser humano com o Bem, a atividade criativa, com a conduta correta, enfim, estabelecem uma reflexão sobre o significado de uma “vida boa”. Hans-Georg Gadamer — corifeu da hermenêutica filosófica — ensina-nos que a ideia de uma filosofia prática foi desenvolvida por Aristóteles como uma reação ao modo puramente epistêmico através do qual Platão desenvolveu a sua “matemática teleológica do Bem”.

A sedimentação da linguagem e as diversas alterações de colorido a que foram submetidos esses conceitos ao longo da história acabaram criando uma série de impasses e discussões filosóficas que chegam ao nosso encontro na contemporaneidade. Oposições tão triviais para a nossa discussão atual, tais quais teoria e prática; ser e dever-ser; ciências naturais e ciências humanas etc., deitam raízes nessa construção aristotélica e na sua conhecida — mas nem sempre bem compreendida — oposição a Platão.

No que tange ao Direito e, mais especificamente, ao seu ensino, não deixa de ser instigante o fato de estarmos sempre às voltas com essa diferenciação. Na verdade, o que acontece na grande maioria dos casos não é pensar a diferença que existe entre esses dois modos de se relacionar com o conhecimento — no caso o conhecimento do Direito — mas, sim, a afirmação de uma dicotomia que coloca em polos opostos, incomunicáveis até, a teoria do direito e as práticas jurídicas. Não faltam vozes para afirmar, por exemplo, que “o direito se aprende na prática”. Um jargão que pode ser ouvido da boca tanto de estudantes quanto de professores.

Acontece que esse tipo muito específico de distorção desconsidera inúmeros problemas que poderiam ser colocados a partir da assunção de que o Direito seria, única e exclusivamente, uma questão “prática”. Em primeiro plano, não fica claro se, com isso, se pretende afirmar que o saber jurídico se liga privilegiadamente com a dimensão da práxis política, estando situado no campo da phronesis, e que, portanto, pressupõe uma reflexão sobre o “Bem”, a “vida boa” que deve dirigi-lo no momento da tomada de decisões. Ou se, ao contrário, quer-se afirmar que o conhecimento do Direito seria do tipo prático porque se apresenta como techne, como um saber fazer cultivado por especialistas que não possui uma conexão necessária com essa pressuposta reflexão sobre o “Bem”. Nesse último caso, o Direito se manifestaria simplesmente como uma espécie de razão instrumental, uma utilidade específica para resolver algum tipo de problema social (pensar em um abismo entre teoria e pratica é pensar que o Direito é uma mera racionalidade instrumental… Pois é. Graças a isso, qualquer atrocidade pode ser cometida… Direito como instrumento, é como qualquer instrumento).

Devo de plano confessar que esse culto desavisado ao “conhecimento prático” do Direito gera em mim enorme perplexidade. Percebo que, muitas vezes, esse tipo de argumento — aparentemente pragmático — acaba servindo como um tipo muito singular de álibi utilizado para esconder a mediocridade intelectual daquele que o emite. Note-se: é muito mais fácil justificar determinada posição sob o argumento de que “assim as coisas acontecem na prática” do que refletir de um modo mais abrangente, buscando conectar os problemas jurídicos particulares com uma série de princípios que compõem o horizonte de nossa comunidade política (algo que exige uma reflexão teórica profunda). Por outro lado, há certo fatalismo nesse tipo de concepção que, na falta de um melhor nome, poderíamos chamar de praxismo casuístico. Trata-se de um argumento particularista que pretende ser utilizado para atacar ou destruir uma proposta teórica que goza de um mínimo de universalidade. Assim, um interlocutor que, nos trilhos de Ronald Dworkin, faz um elogio a teoria e afirma que os casos jurídicos podem e devem ter uma resposta correta a ser descoberta pelos órgãos responsáveis por decidi-la; acaba objetado por uma afirmação simplista do tipo: “ah, mas isso não existe! No final, os juízes decidem mesmo como querem” e, daí, segue-se um exemplo retirado de um julgamento qualquer do qual participou o nobre objetor, provavelmente de um agravo regimental, ou embargos declaratórios de um agravo regimental, ou embargos dos embargos… e por aí vai.

Muitos professores se pronunciam, inclusive em sala de aula, de forma a enaltecer essa dimensão “prática” do Direito — geralmente entendida como práticas processuais — e classificam o estudo da teoria jurídica como “perda de tempo”.

De todo modo, é preciso reconhecer que esse dilema “teoria v.s. prática”, não é algo particular do nosso contexto atual.

Interessante anotar que, historicamente, as diversas culturas que compõem a tradição jurídica ocidental estiveram em volta desse problema, principalmente no ambiente das questões relativas ao ensino jurídico.

Vejamos alguns exemplos interessantes: a cultura jurídica que se forma no continente europeu, principalmente a partir da universidade de Bolonha, no século XII, é sensivelmente diferente daquela que se manifesta no ambiente da ilha, na região da Grã-Bretanha. No primeiro caso, o conjunto de elementos que se aglutinam para formar uma cultura jurídica parece ter, desde o início, um gérmen que indica uma espécie de potencialidade científica — portanto teórica — para o Direito. Na verdade, autores como Harold Berman (Direito e Revolução. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006) chegam a afirmar que a Ciência Jurídica que se constitui a partir do estudo universitário do Direito, cujo marco determinante é a universidade de Bolonha, representa uma espécie de protótipo dos cânones e métodos que irão constituir, progressivamente, o saber científico próprio da modernidade. Vejam que o estudo do Direito, aqui, não se dá de forma aleatória ou simplesmente casuística: há um modelo de trabalho, sintetização e sistematização de princípios que foram produzidos a partir da análise dos textos de Direito Romano e, posteriormente, dos textos de Direito Canônico.

O método de trabalho que se desenvolveu aqui apresentava-se como uma adaptação de lições da filosofia grega, principalmente a filosofia prática de Aristóteles, e uma aproximação desse saber com o Direito Romano, condensado no chamado Corpus Juris Civilis. A preparação e treinamento dos juristas mostrava-se, igualmente, preocupada com a assimilação desses elementos protocientíficos. Havia, já na Baixa Idade Média, currículos escolares, diplomas e um treinamento universitário regido por certo “conteúdo teórico-científico”.

A realidade da ilha, no entanto, é sensivelmente diferente. Há uma resistência entre os ingleses — nesses primórdios da ciência jurídica — para as formalidades e os métodos que estavam sendo gestados e empregados nas universidades do continente. Como atesta Renato Janine Ribeiro, “filhos de proprietários rurais vão a Londres, aprender the law of the land, a lei da terra — da terra nos dois sentidos, o de país e o da propriedade fundiária. Não assistem, porém, a cursos, nem prestam exames, nem recebem diplomas, nem sequer pertencerão a uma ordem formalizada. (…) Não há sistematização do ensino. Aprende-se a lei ouvindo-a falar — procedimento empirista que, a meu ver, teve impacto na formação de uma sociedade e mesmo de uma filosofia tão tributárias da experiência” (prefácio de Hobbes, Thomas. Diálogo entre um filósofo e um jurista. São Paulo: Landy, 2004). O aprendizado do Direito é visto aqui como um processo que acontece a partir da introdução do estudante no ambiente daqueles que lidam com os problemas jurídicos. Ele escuta as discussões, identifica os procedimentos, observa as formalidades e, quando quiser, advoga. O mesmo Janine Ribeiro afirma, no que tange à avaliação dos resultados desse modelo de ensino, que elas podem ser apresentadas de maneiras distintas: “Sir William Holdsworth, autor da que é talvez a mais importante história do Direito inglês, comenta que, por volta de 1.300, é péssima a qualidade dos advogados e juízes. Mas, acrescenta, é esse caráter corporativo da profissão que vai fortalecê-la contra as pretensões dos reis a aumentarem seu próprio poder.”

Não se trata, aqui, de fazer algum tipo de análise para determinar qual tipo de cultura ou experiência foi melhor para o seu tempo e produziu melhores resultados. Trata-se de marcar diferenças. Marcá-las para notar que, independente do âmbito em que esteja situado o Direito é atravessado por um traço teórico que lhe é inesgotável.

Contemporaneamente, ambas as realidades foram sensivelmente alteradas. A organização do ensino e treinamento dos novos juristas recebe hoje outros contornos e um diferente colorido. Há certas preocupações científicas que são comuns nas duas culturas (o problema da determinação do conceito de direito; as possibilidades de uma teoria da decisão etc.). Todavia, em muitos casos, as formas de dar respostas às questões continuam distintas.

Mas há algo que marca de maneira indelével o tipo de problema com que se depara o jurista: necessariamente a resposta a ser apresentada em um caso judicial específico não pode comportar qualquer conteúdo. Deve ser uma “boa” resposta. Respostas ruins não convencem seus pares, nem mesmo a sua comunidade. Seja em qual dimensão da operacionalidade do direito em que o jurista esteja situado, juiz, promotor, advogado, professor, a necessidade de respostas boas, respostas melhores, sempre é um ônus que cada um desses agentes deve carregar. Nesse sentido, a dimensão prática está sempre envolvida na teórica, assim como a teoria depende da prática para colocar de maneira adequada seus problemas. Como bem demonstrou Lenio Streck em seu Verdade e Consenso (4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011), há uma situação de circularidade virtuosa que envolve a prática e a teoria.

O Direito, como produto das ações humanas, está desde sempre envolvido em um mundo prático. Ensinar Direito é estar envolvido, ao mesmo tempo, em uma atividade prática e teórica. Não prática no sentido de pura techne, nem teórica no sentido da pura episteme, como se fosse possível uma espécie de “matemática jurídica”. Trata-se, muito mais, de uma prática teórica e de uma teoria virtuosa!

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