Competência por prerrogativa

Tribunal de Justiça é quem deve julgar membros do MP

Autor

9 de agosto de 2012, 7h01

O ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski acolheu requerimento do Procurador-Geral da República e determinou a baixa dos autos do Inquérito 3.430, que investiga um ex-senador, para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região em virtude da decisão do Senado pela cassação do mandato. Erraram ambos!

Ora, o ex-senador, agora novamente (e efetivamente) membro do Ministério Público de Goiás, deve ser processado e julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás e não pela Justiça Federal, ainda que haja corréus sob jurisdição da Justiça Federal. Membro do Ministério Público Estadual tem que ser processado e julgado perante o Tribunal de Justiça respectivo, salvo nos delitos eleitorais quando, então, a competência será do Tribunal Regional Eleitoral.

Como se sabe, um dos critérios determinadores da competência estabelecidos em nosso Código de Processo Penal é exatamente o da prerrogativa de função, conforme está estabelecido nos seus artigos 69, VII, 84, 85, 86 e 87. Evidentemente que estas disposições contidas no código processual têm que ser cotejadas com as normas constitucionais (seja pela Constituição Federal, seja pelas Constituições dos Estados). Desde logo, observa-se que a competência por prerrogativa de função é estabelecida, não em razão da pessoa, mas em virtude do cargo ou da função[1] que ela exerce, razão pela qual não fere qualquer princípio constitucional, como o da igualdade (artigo 5º, caput) ou o que proíbe os juízos ou tribunais de exceção (artigo 5º, XXXVII). Aqui, ninguém é julgado em razão do que é, mas tendo em vista a função que exerce na sociedade. Como diz Tourinho Filho, enquanto “o privilégio decorre de benefício à pessoa, a prerrogativa envolve a função. Quando a Constituição proíbe o ‘foro privilegiado’, ela está vedando o privilégio em razão das qualidades pessoais, atributos de nascimento… Não é pelo fato de alguém ser filho ou neto de Barão que deva ser julgado por um juízo especial, como acontece na Espanha, em que se leva em conta, muitas vezes, a posição social do agente.”[2] Efetivamente, a Constituição espanhola estabelece expressamente que “la persona del Rey es inviolable y no está sujeta a responsabilidad.” (artigo 56-3).

Niceto Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Leveve explicam que “cuando esas leyes o esos enjuiciamentos se instauran no en atención a la persona en si, sino al cargo o función que desempene, pueden satisfacer una doble finalidad de justicia: poner a los enjuiciables amparados por el privilegio a cubierto de persecuciones deducidas a la ligera o impulsadas por móviles bastardos, y, a la par, rodear de especiales garantias su juzgamiento, para protegerlo contra las presiones que los supuestos responsables pudiesen ejercer sobre los órganos jurisdiccionales ordinarios. No se trata, pues, de un privilegio odioso, sino de una elemental precaución para amparar a un tiempo al justiciable y la justicia: si en manos de cualquiera estuviese llevar las más altas magistraturas, sin cortapisa alguna, ante los peldaños inferiores de la organización judicial, colocándolas, de momento al menos, en una situación desairada y difícil, bien cabe imaginar el partido que de esa facilidad excesiva sacarían las malas pasiones.”[3]

No julgamento do Habeas Corpus 91.437 o Supremo Tribunal Federal lembrou a lição do Ministro Victor Nunes Leal de que “a jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é realmente instituída, não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do acusado seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois uma garantia bilateral — garantia contra e a favor do acusado”. Também no julgamento da Questão de Ordem levantada no Inquérito 2.010-SP, o Ministro Marco Aurélio salientou que “a prerrogativa de foro não visa beneficiar o cidadão, mas proteger o cargo ocupado.” O Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de afirmar que “o foro especial por prerrogativa funcional não é privilégio pessoal do seu detentor, mas garantia necessária ao pleno exercício de funções públicas, típicas do Estado Democrático de Direito: é técnica de proteção da pessoa que o detém, em face de dispositivo da Carta Magna, significando que o titular se submete a investigação, processo e julgamento por órgão judicial previamente designado, não se confundindo, de forma alguma, com a idéia de impunidade do agente”. (STJ – HC 99.773/RJ – 5ª. Turma – relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho).

Diz o artigo 69 deste código que uma das causas determinadoras da competência penal será a prerrogativa de função. Este dispositivo foi complementado pelos artigos 84 a 87 do mesmo diploma processual. Como se disse anteriormente é natural que exista este critério determinador da competência, pois a pessoa que exerce determinado cargo ou função, evidentemente, deve ser preservada ao responder a um processo criminal, evitando-se, inclusive, ilegítimas injunções políticas que poderiam gerar injustiças e perseguições nos respectivos julgamentos.

É razoável, portanto, que um Juiz de Direito, um Deputado Estadual ou um Promotor de Justiça seja julgado pelo Tribunal de Justiça do respectivo Estado, em razão da “necessidade de resguardar a dignidade e a importância para o Estado de determinados cargos públicos”, na lição de Maria Lúcia Karam. Para ela, não há “propriamente uma prerrogativa, operando o exercício da função decorrente do cargo ocupado pela parte como o fator determinante da atribuição da competência aos órgãos jurisdicionais superiores, não em consideração à pessoa, mas ao cargo ocupado.”[4]

Pois bem. O artigo 96, III da Constituição Federal estabelece a competência dos Tribunais de Justiça para processar e julgar os membros do Ministério Público estadual, ressalvando-se a competência da Justiça Eleitoral (leia-se: dos Tribunais Regionais Eleitorais). Neste caso, ainda segundo entendimento jurisprudencial respaldado principalmente no artigo 108, I, “a” da Constituição Federal, mesmo que o delito seja, em tese, da competência da Justiça Comum Federal, o julgamento será perante o Tribunal de Justiça do Estado onde atue o autor do fato (JSTJ 46/532), ainda que a infração penal tenha sido praticada em outro Estado da Federação, pois, a competência pela prerrogativa de função sobrepõe-se, in casu, à territorial.


[1] Sobre a distinção entre função, cargo e emprego público conferir Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 14a. ed., 2001, pp. 437 a 440.

[2] Processo Penal, Vol. II, Saraiva: São Paulo, 24a. ed., 2002, p. 126.

[3] Derecho Procesal Penal, Tomo I, Buenos Aires: Editorial Guillermo Kraft Ltda., 1945, pp. 222/223.

[4] Competência no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3a. ed., 2002, pp. 30/31.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!