Cotas no Judiciário

Discussão sobre mérito esconde a discriminação

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9 de agosto de 2012, 17h15

Permita-me o distinto leitor uma digressão —e a honra de sua leitura— que me vem ao propósito de uma falsa polêmica, em face da sinalização para proposição de cotas de acesso ao serviço público judicial sob encargo do Conselho Nacional de Justiça.

Por falas como as que de quando em vez são trazidas à discussão em foros especializados é que vários se dedicam a estudar, mesmo em silêncio, as barreiras atitudinais, estas mesmas que estão entranhadas em muitos de nós e das quais não nos damos conta de maneira geral; as mesmas em que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em Nova York e ratificada no Brasil na condição equivalente a Emenda Constitucional (artigos 5º, parágrafo 3º, da Constituição, c/c Decreto Legislativo 186/2008) se baseou, por exemplo, para definir o conceito de pessoa com deficiência (artigo 1, da Convenção), não mais por uma mera característica clínica, mas pelo que isso venha a repercutir socialmente em face de barreiras atitudinais as quais podem se revestir de diversos matizes e pretextos, cujo objetivo é excluir o cidadão da própria cidadania a que tem direito de usufruir plenamente.

É precisamente do que se está falando. O que alguns dos juízes, inclusive, ainda não se dão conta é que a questão travestida na discussão de mérito esconde a discriminação, conforme define, por exemplo, o Decreto 6.949/2009 (promulga a Convenção de Nova York e a torna eficaz no território brasileiro): o efeito é deixar de fora pessoas com mérito, mas que tenha percurso diverso ao que a minoria elitista — ou padronizada — percorreu.

O fato de uma pessoa não ter domínio de um registro-padrão formal e rebuscado, por exemplo, não elimina o potencial da pessoa nas habilidades exigidas para que julgue com justiça, ética e moralidade. Caso dos afrodescendentes, dos indígenas e de seus descendentes, das pessoas com deficiência (física, sensorial, intelectual ou múltipla) e, até bem pouco tempo atrás, também das mulheres, as quais tampouco eram admitidas a prestar concurso para a magistratura, ante razões bizantinas, quando não de todo estúpidas e sempre preconceituosas.

No entanto, uma pessoa que não teve certas condições, certas oportunidades verossimilhantes às daqueles que participam do padrão estabelecido, pode não ter esse registro, é claro, quando vier a pleitear o cargo de magistrado; todavia, é evidente, isso não significa que não possa adquirir dito registro mais tarde. Afinal, quem se dispõe a ser juiz no Brasil terá de submeter-se a um programa probatório de dois anos durante os quais terá a chance de provar suas reais habilidades e competências, e somente a ele (“Nada de nós, sem nós!”) comporta avaliar se é ou não capaz de enfrentar, doravante, o desafio do cargo para o qual se habilitou e vai ser nele testado. Naturalmente, para esse propósito, o sistema terá de proporcionar-lhe as devidas condições de trabalho para que o realize a contento, conforme as suas faculdades e limitações. Essa disponibilização é hoje uma exigência legal absoluta, baseada na Constituição.

Por dispor de mérito, do ponto de vista clássico desse conceito, um candidato não tem todo o conhecimento que lhe é exigido para o exercício da função judicial. Ele vai, ao entrar para a magistratura, contar em certa medida com profissionais que o assessoram, técnicos e outros auxiliares da Justiça sem os quais ele não exerce esse suposto mérito que se reclama aos concursos de seleção.

O erro, pois, é achar que, porque uma pessoa entra por meio de cotas constitucionais, ela é menos importante, menor em estatura moral e funcional, inferior em termos competenciais, conhece menos e tem menor mérito que o outro que passou pelas vias tradicionais, padronizadas, e para o qual recebeu todo o suporte da família e do Estado para ser bem sucedido na primeira oportunidade. As pessoas socialmente excluídas e, pois, vulneráveis, não receberam igualdade de tratamento e muito menos as mesmas oportunidades. Se esse argumento meritocrático, portanto, não constituir uma parêmia discriminatória, nada mais o será! E se é discriminatória, é também nula e censurável, quando não vergastada em profundidade de propósitos.

Nem o exemplo de que pessoas superaram as barreiras sociais e econômicas e hoje estão nas mais altas posições profissionais, científicas e econômicas serve para a manutenção dessa linha de argumentação discriminatória. Essas pessoas, se tivessem experimentado as condições de igualdade, talvez superassem, bem antes, com menor sofrimento pessoal, sem sobreexcedências de esforços e padecimentos e sem as cargas extras que tiveram de suportar o tempo inteiro, para além do promédio das pessoas em geral, as barreiras que tiveram de romper de todo modo individualmente e sem o justificável suporte do Estado. Esse é um contexto que planifica as pessoas em completa desigualdade, razão pela qual a meritocracia reclamada, sob tal circunstância, é tosca e desprestigiosa da dignidade humana. Juízes que devem compromisso à Constituição que já incorporou esses saberes não podem defender, quando devidamente cientificados, o que, para o Ordenamento Jurídico, constitui atavismo e obsolescência.

A questão é redefinir o que se considera mérito e entender se isso que hoje se define como tal é um filtro que não elimina as impurezas, deixando passar o limpo, mas um filtro que retém trigo e deixa, muitas vezes, passar o joio.

Nas primeiras décadas do ano de 1800 havia na Inglaterra juízes cegos em plena militância e amplamente respeitados. Na década de 2000, eles eram mais de 10 naquele país, atuando em todas as áreas. No Brasil, pessoas com deficiência visual, mormente as cegas, são denegadas de, até mesmo, prestar o concurso. Afortunado pelo destino, conheço atualmente dois grandes magistrados com essa condição sensorial em nosso país: o desembargador Ricardo Tadeu Fonseca, do TRT do Paraná, e o Juiz do Trabalho Gustavo Maya (18ª Vara do Rio de Janeiro). Eles são exímios juristas e humanistas de escól, tratam os respectivos expedientes com inexcedível competência e eficácia, exercem suas judicaturas absolutamente sem nódoas e não ficam a dever de modo algum a quem enxergue de fato. Eis que “cegos” somos todos os que nos deixamos contaminar pelo preconceito, qualquer que seja ele.

Será que não se está a violar os direitos fundamentais por falta de mérito desses candidatos que se apresentam fora do padrão estético preconizado por barreiras atitudinais da própria sociedade?

Mérito, diga-se, não é sinônimo de berço, não consiste em uma genealogia que se possa demonstrar cientificamente. Pelo menos não deveria sê-lo, mas tem sido encarado como tal, mesmo para aqueles que nele não nasceram, mas que de algum modo se esforçam, submetidos a uma tutela de crueldade, para que nele se entendam haver sido acalentados, desencontrando-se de si mesmos em face da própria identidade.

Será que no universo das pessoas negras no Brasil, por exemplo, apenas um ou dois, talvez alguns mais, tem mesmo o mérito para ser juiz, ministro ou exercer alguma outra posição de tamanha envergadura? Sem risco de ser leviano, dada a notoriedade do fenômeno, não é mesmo preciso lançar mão de estatísticas atuais para se ter bem presente uma noção acerca do grande desfalque com que as composições pretorianas no país ora se encontram em face dessa clientela de brasileiros vulneráveis tão dignos quanto o universo da maioria que produzem decisões que ditam o destino das pessoas e das instituições entre nós. Não é preciso declarar que há discriminação nesse quadro. Urge revertê-lo a bem de que não agravemos a vergonha social de uma pátria que deseja integrar, o quanto antes, o concerto das nações realmente civilizadas, mas insiste em práticas contraditórias, haja vista o seu próprio Ordenamento.

Será que o juiz com pós-doutorado na Alemanha, cultor de si mesmo e encapsulado em uma linguagem hermética que acentua o corporativismo de sua atuação de Estado, de seu próprio afastamento social, será melhor ao atender o sr. João que brigou com o compadre, porque este lhe furtou as sandálias? Será que ele julgará com melhor tirocínio uma pretensão que pede seja reconhecida a suposta inapetência total para os atos da vida civil de uma pessoa com síndrome de Down?

Não, caro leitor, o mérito não responde a isso, não o mérito de que se armam aqueles que ainda não experimentaram a excelência da intergrupalidade, enquanto sentimento constitucional inclusivo. Sobre isto, conferir a brilhante obra de Pablo Lucas Verdú: O sentimento constitucional. Mas, temos de prosseguir nessa tarefa de emancipação dos excluídos e de formação e conscientização dos já de todo incluídos.

Por outro lado, apontar nos outros ou reconhecermos em nós próprios as barreiras atitudinais incomoda, pode até doer, constranger noutros passos, assim neles como em nós mesmos. Sei disso muito bem, pois vejo como tenho sofrido com isso, como canso e causo contratempos, inclusive conquistando supostos inimigos por essa razão. Tudo isso, porém, é parte de um processo de crescimento social ao qual e no qual todos somos chamados a pelejar pelo bem do Brasil e de nossa gente. E pela construção de nós mesmos.

A luta é grande, mas estamos mais perto de chegar lá do que quando começamos a lutar contra elas, milênios atrás. Artigo publicado originalmente no jornal Carta Forense.

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