Embargos Culturais

Haveria um pensamento jurídico brasileiro?

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  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

5 de agosto de 2012, 5h13

Caricatura: Arnaldo Godoy - Colunista [Spacca]Com a precaução que toda generalização provoca, pergunto-me se haveria um pensamento jurídico brasileiro. Tentaria um esboço para organizar uma resposta imaginária. Consciente de que taxionomias são arbitrárias, e a denúncia é de Michel Foucault ao comentar a classificação dos animais de acordo com certa enciclopédia chinesa, segundo um texto de Jorge Luis Borges[1], trabalharia com percepção que evidenciaria grupos de produção jurídica que dividiriam traços e características comuns. Identificar esses nichos informaria esta tarefa de ordenação.

O arranjo limitar-se-ia cronologicamente, concentrando-se em pensadores, autores, práticos e politólogos que exerceram certo nível de evidência, a partir do período joanino e do início do império. Não haveria interesse, por exemplo, no Direito Natural de Tomás Antonio Gonzaga ou no liberalismo ou do Visconde de Cairu.

Cuidar-se-ia em primeiro lugar do pensamento jurídico desenvolvido no século XIX, sob a rubrica minimalista de império, com enfoque em Silvestre Pinheiro Ferreira, José Bonifácio de Andrada e Silva, Joaquim do Divino Amor, o Frei Caneca, Pimenta Bueno, Nabuco de Araújo, Antonio Joaquim Ribas e Teixeira de Freitas. Não há atitude de desdém ou descaso para com excluídos de importância, a exemplo de Cândido Mendes e do Conselheiro Lafayette. Consciente de que toda opção é arbitrária, porém necessária, propor-se-ia uma metodologia de exemplificação.

Em seguida, ocupar-se-ia esse esboço com os juristas que viveram o ocaso do império, a transição republicana e a primeira República. Identificaria as obras de Pereira Barreto, Pedro Lessa, dos representantes da Escola do Recife, a exemplo de Tobias Barreto, Sílvio Romero e Clóvis Beviláqua; haveria uma necessária estação em Rui Barbosa. Posteriormente, deveriam ser avaliados os trabalhos de Farias Brito, Alberto Torres, Jonathas Serrano, Gilberto Amado, Oliveira Vianna, Jackson de Figueiredo, Afonso Arinos e Plínio Barreto.

Poderia se avançar para o culturalismo com releitura de Miguel Reale, a partir das próprias memórias do pensador do tridimensionalismo. Estudaria Washington Vita, Nelson Saldanha, Paulo Dourado de Gusmão, Evaristo de Moraes Filho, Roque Spencer de Barros e Djacir Menezes, evidentemente, no que interessa à formatação de um modelo de pensar com matiz jurídico.

Em seguida, listaria pensadores com fortíssima marca de pensamento sociológico. A investigação interessar-se-ia então por Gilberto Freyre, Raymundo Faoro, Hermes Lima, Pontes de Miranda e Edmundo Lima de Arruda Júnior, este último de forte presença nos movimentos críticos. Deve se estudar também o jusnaturalismo nacional, com paradas em Alceu de Amoroso Lima, Franco Montoro, Vicente Rao, Machado Paupério e Piragibe da Fonseca.

De modo a evidenciar-se um movimento preocupado com a lógica jurídica, poderiam ser inventariados os trabalhos de Lourival Villanova, Silvio de Macedo e Irineu Strenger. Percebe-se também tendência que vincula Direito e linguagem, quando devem ser estudados Tércio Sampaio Ferraz Júnior e Luiz Alberto Warat, agrupados quanto à temática, e não quanto a posicionamento ideológico ou epistemológico.

Com muita cautela, deve se bosquejar também uma tendência de fortíssimo sinal dogmático, e de imensa importância para os problemas da vida real, comentando-se os trabalhos mais significativos de José Afonso da Silva, Celso Bastos, Celso Antônio Bandeira de Mello, Washington de Barros Monteiro, Sílvio Rodrigues, Maria Helena Diniz, Paulo de Barros Carvalho e Geraldo Ataliba. Esse grupo fez escola em São Paulo, agrupado em setores da USP e da PUC, especialmente em programas de pós-graduação, onde alguns deles pontificam, ou pontificaram.

Sob um rótulo de pensamento crítico, agruparia pensadores muito diversos como Roberto Lyra Filho, Roberto Aguiar, Luiz Fernando Coelho, Miranda Rosa, Amílton Bueno de Carvalho, Clémerson Mérlin Cléve, Plauto Faraco de Azevedo, Tarso Genro e Carlos Frederico de Souza Marés.

Uma investigação com esse propósito poderia identificar também um grupo de positivismo moderado, elencando Orlando Gomes, Santiago Dantas e Caio Mário da Silva Pereira. Há necessidade de sessão especial para pensadores como Paulo Bonavides, Dalmo de Abreu Dallari, José Eduardo Faria, Goffredo da Silva Telles, Celso Fernandes Campilongo e Celso Láfer, cujo legado e presença dão a forma do Direito brasileiro atual.

O pensamento neoliberal, especialmente no que toca a uma crítica ácida e mordaz à Constituição de 1988, seria plasmado em inventário dos escritos de Roberto Campos.

Deve-se ocupar também com nossa historiografia jurídica, isto é, com o modo que escrevemos nossa história do Direito. Desfilariam então Isidoro Martins Júnior, Viveiros de Castro, Waldemar Ferreira, Haroldo Valladão, Vamireh Chacon, Maurício de Lacerda, José Reinaldo de Lima Lopes, Antônio Carlos Wolkmer, Ricardo Marcelo Fonseca, Leda Boechat Rodrigues e Jaime de Altavila.

O trabalho investigaria ainda o papel dos romanistas no Direito brasileiro, em decorrência do permanente sentido ideológico que tal ramo suscita. Então o trabalho estuda Vandick Lopes da Nóbrega, Mário Curtis Giordani, José Cretella Júnior, Ebert Chamoun, Sílvio Meira, Spencer Vampré, José Carlos Moreira Alves e Alexandre Correia.

Autores que se preocuparam com temas de hermenêutica devem ser investigados, a exemplo de Carlos Maximiliano, Alípio Silveira, João Baptista Herkenhoff e Limongi França. Em sua parte final, o trabalho investigaria a pesquisa em Direito no Brasil, a partir do pensamento de Marcos Nobre, desenhando-se nossa epistemologia jurídica em autores como Eduardo de Oliveira Leite, Agostinho Ramalho Marques Neto e Willis Santiago Guerra.

Com os propósitos de se identificar linhas mestras, setores departamentalizados, como processo civil e penal, poderiam ser minimizados. Essa atitude conceitual não traduziria descaso epistemológico com autores que formularam conceitos e hipóteses de mais alta indagação, mesmo em âmbito exclusivamente dogmático, a exemplo de Cândido Rangel Dinamarco, Arruda Alvim, Heleno Fragoso, Galeno Lacerda, Humberto Theodoro Júnior, Juarez Cirino dos Santos, Luis Régis Prado, Juarez Cirino dos Santos, entre tantos outros.

A proliferação de nomes e a pulverização de campos e disciplinas ameaçariam o trabalho, exigindo enfoque enciclopédico, que o projeto simplesmente não se disporia a encetar. Esta ampliação redundaria na montagem de um cardápio que subsumiria motivações ideológicas sinuosas e explicitaria apreciações subjetivas e gostos e preconceitos de seu autor.

Com isso muito bem amarrado e muito bem entendido, poderia se investigar se há realmente um pensamento jurídico brasileiro. Aspirar-se-ia uma identificação das fontes primárias que se escondem no discurso desses autores. Poder-se avaliar as motivações políticas, econômicas e ideológicas que influenciam nosso Direito.

Pode-se calcular qual o nível de influência (se é que há algum) que os pilares das ciências sociais contemporâneas, como Marx, Weber e Durkheim exercem sobre nossos pensadores do Direito. O trabalho também se preocuparia com o nível de influência do ideário iluminista em nosso pensamento jurídico, dado que atitude iluminista é duvidar da própria ilustração, uma vez que ser voltaireano é rir de Voltaire, na célebre advertência de Sérgio Paulo Rouanet[2].

Corre-se o risco, no entanto, de se entender que o grande pensador de nosso Direito se encontra fora do Brasil. Falo de Roberto Mangabeira Unger.

Delineados, assim, os critérios de uma pesquisa, que se proporia a sistematizar o pensamento jurídico brasileiro, inventariando seus marcos epistemológicos, suas âncoras ideológicas, seus referenciais históricos e seus paradigmas conceituais no conjunto da história do pensamento nacional. É um trabalho necessário. Que alguém de boa vontade precisa fazer.


[1] FOUCAULT, Michel, As Palavras e as Coisas, p. IX. Os animais se dividiriam em : a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas.

[2] ROUANET, Sérgio Paulo, As Razões do Iluminismo, p. 195.

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