AP 470

STF julga pedido de desmembramento do caso mensalão

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2 de agosto de 2012, 15h15

Gervásio Baptista/SCO/STF
O julgamento da Ação Penal 470, o chamado mensalão, começou com uma questão de ordem apresentada pelo advogado Márcio Thomaz Bastos, que defende o ex-executivo do Banco Rural José Roberto Salgado. Depois que o ministro Joaquim Barbosa, relator da AP 470, confirmou sua posição contrária ao desmembramento do processo, o ministro Ricardo Lewandowski, revisor da AP 470, surpreendentemente, manifestou que tinha posição favorável ao pedido de Thomaz Bastos.

Até agora, dos 11 ministros, seis votaram contra o desmembramento. São contra o desmembramento: Joaquim Barbosa, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Carmem Lúcia, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Celso de Mello e Ayres Britto. Apenas Lewandowisk e Marco Aurélio votaram pelo desmembramento.

Em aparte a Lewandowski, Joaquim Barbosa tentou abortar a discussão no plenário, mas o ministro Marco Aurélio sustentou que essa é uma rara oportunidade para o Supremo firmar posição sobre a matéria. Nesse momento Ricardo Lewandowski, emite seu voto na questão de ordem.

A defesa de Salgado insiste que seu cliente não pode ser julgado pelo Supremo — assim como outros 34 réus que respondem à ação. Hoje, apenas os deputados federais João Paulo Cunha (PT-SP), Pedro Henry (PP-MT) e Valdemar Costa Neto (PR-SP) têm prerrogativa de foro. É improvável que os ministros, a esta altura, acolham o pedido do advogado. Mas é certo que terão de discutir os critérios pelos quais decidem manter réus que não deveriam ser julgados pelo tribunal em ações que ali tramitam.

O que o advogado Márcio Thomaz Bastos pede não é o simples desmembramento do processo. Claro, essa seria a consequência de uma decisão favorável ao seu pedido. Mas Bastos pretende que o Supremo enfrente a questão do ponto de vista constitucional, não apenas com o foco na oportunidade e conveniência de se manter a ação íntegra ou desmembrá-la.

O advogado sustentou que o fato de réus sem prerrogativa serem julgados pelo Supremo fere ao menos dois princípios fundamentais: o do juiz natural e o direito ao duplo grau de jurisdição — ou seja, de recorrer de uma possível decisão condenatória. Contra as decisões do STF, como se sabe, não há recurso senão ao próprio tribunal.

Segundo a questão de ordem apresentada pela defesa de José Roberto Salgado, o entendimento que tem prevalecido no Supremo é o de que a competência pode ser ampliada àqueles que não detêm prerrogativa se os fatos tiverem conexão e continência.

Mas, para Márcio Thomaz Bastos, estes conceitos não podem acabar com garantias míninas asseguradas pela Constituição Federal e por tratados internacionais de direitos humanos, entre eles o direito de recorrer para tribunal superior — o duplo grau de jurisdição. “O ordenamento jurídico estabelece uma hierarquia que deve ser seguida. Isto impõe o desmembramento do processo daquelas pessoas que nunca detiveram cargos públicos, que devem ser submetidas a julgamento na primeira instância”, alega a defesa do ex-executivo do Banco Rural.

Jurisprudência indecisa
O Supremo nunca fixou jurisprudência sobre a extensão da prerrogativa de foro por função. Em alguns casos, admite o desmembramento da ação. Há vários exemplos. Um dos mais recentes foi a decisão do ministro Ricardo Lewandowski, que determinou o desmembramento das investigações em relação ao grupo do empresário de jogos ilegais Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira.

Em 24 de abril passado, o ministro manteve no Supremo apenas as investigações contra o então senador Demóstenes Torres, abriu três novos inquéritos contra deputados federais investigados por envolvimento com Cachoeira e mandou para as instâncias inferiores o restante das investigações.

As investigações sobre as ligações do governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, com o grupo de Cachoeira seguiram para o Superior Tribunal de Justiça. Já a parte dos autos que investiga Cláudio Abreu, Enio Andrade Branco, Norberto Rech, Geovani Pereira da Silva e Gleyb Ferreira da Cruz foram para a primeira instância da Justiça Federal de Goiás. Os cinco são citados nas investigações da Polícia Federal como integrantes da suposta quadrilha chefiada por Cachoeira.

A defesa de José Roberto Salgado cita outros vários exemplos de decisões em que o STF julgou ilegal manter no tribunal ações contra pessoas que não têm prerrogativa de foro, antes e depois da decisão de manter o processo do mensalão inteiramente sob a guarda do tribunal.

Em decisão de 2008 no Habeas Corpus 89.056, cujo relator foi o ministro Marco Aurélio, a 1ª Turma do Supremo decidiu que “a competência por prerrogativa de foro é de Direito estrito, não se podendo, considerada conexão ou continência, estendê-la a ponto de alcançar inquérito ou ação penal relativos a cidadão comum”.

De acordo com Márcio Thomaz Bastos, oito dos 11 ministros que compõem o Supremo atualmente já se manifestaram em favor do desmembramento de ações e inquéritos policiais em relação a cidadãos sem prerrogativa de foro. O relator do mensalão, Joaquim Barbosa, inclusive. Segundo a defesa de Salgado, apenas Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Weber, os mais novos ministros da corte, ainda não tiveram oportunidade de se pronunciar sobre o assunto.

Outro exemplo usado, e que tem relação com o mensalão, é o processo do chamado mensalão mineiro, que investiga fatos semelhantes pelos quais dirigentes petistas são acusados. Neste caso, foram denunciadas 15 pessoas pela prática de peculato e, em sete casos, também por lavagem de dinheiro. O processo foi desmembrado e ficou no Supremo apenas a investigação contra o deputado federal Eduardo Azeredo (PSDB-MG), ex-governador de Minas Gerais, que mais tarde se transformou em ação penal. O relator do processo também é o ministro Joaquim Barbosa.

Questão constitucional
Os advogados de José Roberto Salgado sustentam que, sempre que o Supremo discutiu o desmembramento do processo entre cidadãos comuns e agentes públicos, não abordou o tema sob a ótica constitucional. A questão do desmembramento foi considerada apenas para viabilizar a instrução e julgamento da eventual futura ação penal em tempo razoável, considerando o grande número de acusados.

“Assim foi resolvida, sem qualquer discussão ou alusão à matéria constitucional. Não há nas discussões anteriores uma única menção à ‘inconstitucionalidade’, ‘duplo grau de jurisdição’, ‘Pacto de San Jose da Costa Rica’, ‘direito de recorrer para tribunal superior’ ou ‘reserva constitucional à definição da competência especial por prerrogativa de função do STF’”, sustenta a defesa.

Por isso, Bastos alega que não se pode considerar a discussão sobre o desmembramento como vencida (preclusa), já que a abordagem que se faz agora é estritamente constitucional. “Todo cidadão tem o direito mínimo de reparar eventuais injustiças que venha a sofrer em um julgamento. Por isso, a dupla jurisdição”, afirma.

De acordo com a Constituição Federal, compete ao Supremo processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o procurador-geral da República. E, em caso de crimes comuns e de responsabilidade, os ministros de Estado, os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos tribunais superiores, do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente.

O primeiro pedido de análise da constitucionalidade da extensão da competência penal do Supremo para réus sem prerrogativa de foro foi feito por Márcio Thomaz Bastos em agosto de 2011, logo que ele assumiu a defesa do ex-executivo do Banco Rural. O pedido foi negado pelo relator, ministro Joaquim Barbosa.

Depois, a defesa entrou com Agravo Regimental pedindo que a questão fosse levada a plenário. Barbosa negou seguimento afirmando que o plenário já havia decidido, por mais de uma vez, sobre a matéria. Na nova questão de ordem, Bastos sustenta que a questão não foi decidida, senão a partir de critérios infraconstitucionais. E que a corte tem de enfrentar o tema do ponto de vista constitucional.

No caso de o pedido ser acolhido, as provas já produzidas seriam aproveitadas em primeira instância. Ou seja, os processos que surgiriam contra os 35 réus sem foro especial também estariam prontos para julgamento. Com a diferença de que seria possível recorrer das decisões. “A questão de ordem constitucional deixa esse pressuposto absolutamente estabelecido. Entende que há plena compatibilidade entre o reconhecimento da inconstitucionalidade ora apontada e o aproveitamento de todos os atos processuais”, sustenta a defesa.

O Supremo deverá discutir a questão mesmo antes da leitura do relatório de Joaquim Barbosa, no dia 2 de agosto. Ainda que não acolha o pedido, será provocado para se posicionar de forma mais decisiva sobre o tema e fixar balizas que deixem de lado o subjetivismo na hora de decidir quem os 11 ministros devem ou não julgar.

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