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O historiador Villa e as equações demonstradas

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25 de abril de 2012, 12h57

Spacca
Ainda sob o impacto da escritura de uma resenha sobre o grande leitor que é Alberto Manguel, li o texto“Já passou da hora de o STF tomar jeito, do historiador Marco Antonio Villa, publicado no jornal O Globo. Artigo que, de certo modo, repercute a série de entrevistas publicadas por este site Consultor Jurídico com o ministro Cézar Peluso nos dias que anteciparam sua saída da Presidência do STF.  

Mas antes de discutir o mérito do artigo de Marco Antonio Villa, quero registrar o sabor que é ler os textos de Alberto Manguel, um leitor por excelência, um feliz contador de histórias. Ainda adolescente, durante umas férias de verão, e isso seria no ano de 1964, Manguel trabalhou como atendente em uma tradicional livraria da Avenida Corrientes, em Buenos Aires, a Pigmalión, hoje de feliz lembrança. Criada por uma refugiada alemã fugida do nazismo, Lili Lebrach, seu local era um centro de difusão de literatura alemã e ponto de encontro de amantes da música, vendida no subsolo do estabelecimento.

Ali Manguel teve a oportunidade de conhecer um dos célebres frequentadores do lugar, Jorge Luis Borges. Da amizade veio o convite para o estudante ir à casa do escritor, quase cego aos 58 anos, para a leitura em voz alta. Mas o fato é que essa foi uma das etapas para que o futuro ensaísta (no caso, Manguel) se exercitasse na leitura e escuta atentas que se refletem em seus primorosos livros – e que serão assunto para nossa conversa de outra semana. O importante é lembrar que os textos de Alberto Manguel ressoam esse aprendizado do exercício da leitura atenta e do olhar aberto, condição essencial para aproximar-se de um texto e captar o que traz de novo, a surpresa que se apresenta a cada página lida. Deixar que o texto vá apontando os caminhos, descobrir seus segredos, para com isso realizar a catarse transformadora.

Parece que tudo isso falta à leitura realizada pelo colega Marco Antonio Villa. Ao iniciar seu texto com a pergunta “O encerramento do mandato de Cezar Peluso à frente do Supremo Tribunal Federal pode significar uma mudança positiva no rumo daquela Corte?”, ele deixa claro de antemão que irá cometer um texto agressivo. E com esse apriorismo, acabou lendo exatamente o que procurava na entrevista concedida pelo ministro, não o que aquela narrativa propunha de reflexão.

Após comentar a breguice da cerimônia de posse do novo presidente do STF, ministro Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto, com a “constrangedora a presença de Daniela Mercury cantando (mal) o Hino Nacional”, seguida pela récita de um poema da lavra do atual presidente da Corte, e das perspectivas de o Supremo operar desfalcado de dois membros (Peluso e Ayres se aposentam no segundo semestre), o historiador comenta trechos da longa entrevista de Peluso a este site. Escreve:

“Peluso saiu da presidência atirando. Foi sincero. Demonstrou o que é: autoritário, provinciano, conservador, corporativista e com uma questionável formação jurídica”. Afiada a espingarda do historiador, e rico seu repertório de adjetivos. De quebra, coloca em dúvida a seriedade do ensino da Faculdade Católica de Santos e a lisura de um dos orientadores do ministro, Alfredo Buzaid, ministro da Justiça do presidente Médici, como se o jurista fosse um monólito. Villa vai fundo: Peluso “Não viu nada de anormal. Devia comungar das ideias de Buzaid”, deduz, numa típica tradução de um pensamento dualista, fruto de um cartesianismo mal digerido. Ou claro ou escuro, não há meio-tons e o pensamento triádico passa longe, até por tornar difícil a demonstração de equações, que ficam mais no terreno das ciências exatas e menos no das humanas, em que muitas vezes vale a terceira margem do rio.

Sobre as reuniões de estudos de que Peluso participava (não disse na entrevista que as promovia) nos anos de chumbo, com a participação de Leonardo Boff e Gustavo Gutiérrez, o historiador pinça essa pérola: “[Peluso] relatou que ficou impressionado quando Gutiérrez alertou sobre a importância do ato de comer na Bíblia. Sim, leitor, o que chamou a atenção de Peluso, na Bíblia, foi a comida”.

Como Marco Antonio Villa seguramente não foi seminarista e leu pouco sobre teologia da libertação, darei uma breve explicação: o que Gutiérrez provavelmente pontuou e estava implícito na fala do ministro, foi a importância do povo bem alimentado, em partilhar o pão, em alimentar os desassistidos da sorte (vale lembrar que a “igreja dos pobres” foi um dos pilares da teologia da libertação). A comida e o ato de acolher o outro é algo muito diferente de “se impressionar com a comida”.

O historiador parece também desinformado ao tratar das reposições salariais dos funcionários da Justiça, classificando-as como “ganhos eventuais”.

Quando, mais adiante, Villa escreve que o ex-presidente do STF foi descortês com os colegas da Corte, afirma que ele “insinuou que Joaquim Barbosa não gosta de trabalhar.  Que frequentava bares. E que não tinha nenhuma doença nas costas”.

Peluso disse textualmente: “O especialista Paulo Niemeyer no Rio diz que ele não tem problema na coluna, tem problema no quadril. Mas o certo é que alguma coisa ele tem, mesmo”. Não ouvi nenhuma menção do ministro ao fato de Barbosa frequentar bares. Mas esse acréscimo, de lavra própria de Marco Antonio Villa, era a escada necessária para o historiador poder concluir que “O estereótipo sobre Barbosa é tão vil como aqueles produzidos logo após 13 de maio de 1888”.

Na repercussão das entrevistas do ex-presidente do STF o que se viu foi um excesso de leituras em busca das agulhas, e não a leitura desarmada de quem tem interesse em ouvir o que o outro tem a dizer. A própria reação do futuro presidente do STF, ministro Joaquim Benedito Barbosa Gomes, à entrevista revela que tampouco ele, com todo o seu preparo jurídico, soube fazer uma leitura atenta. Pois ao atacar tão duramente o presidente recém-saído, apenas confirmou o comentário de que “tem um temperamento difícil” e “dá a impressão que de tudo aquilo que é absolutamente normal em relação a outras pessoas para ele parece ser uma tentativa de agressão. E aí ele reage violentamente”. Foi o que se viu.

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