Jogo da vida

STF permite interrupção de gravidez de feto anencéfalo

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12 de abril de 2012, 20h29

O Supremo Tribunal Federal decidiu, nesta quinta-feira (12/4), que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo não pode sequer ser chamada de aborto. Na prática, os ministros descriminalizaram o ato de colocar fim à gravidez nos casos em que o feto não tem o cérebro ou a parte vital dele, no que alguns ministros chamaram de o "julgamento mais importante de toda a história da corte".

Por oito votos a dois, os ministros decidiram que médicos que fazem a cirurgia e as gestantes que decidem interromper a gravidez não cometem qualquer espécie de crime. Para sete dos dez ministros que participaram do julgamento, não se trata de aborto porque não há a possibilidade de vida do feto fora do útero. Para interromper a gravidez de feto anencéfalo, as mulheres não precisam mais de decisão judicial que as autorize. Basta o diagnóstico de anencefalia do feto.

O ministro Gilmar Mendes votou pela descriminalização da prática, mas considerou, sim, que se trata de aborto. Para o ministro, o aborto de feto anencéfalo pode se encaixar nas hipóteses de exceção previstas no Código Penal em que o aborto não é considerado crime — no caso, na regra que possibilita o aborto em caso de risco à saúde da mãe.

Mas venceu a tese de que a interrupção de gestação de feto sem cérebro não pode sequer ser considerada aborto. Assim, o crime é impossível. O decano do tribunal, ministro Celso de Mello, pontuou: “Não estamos, com esse julgamento, permitindo a prática do aborto. Essa é outra questão, que poderá vir a ser submetida a esta corte em outro momento. Se não há, na hipótese, vida a ser protegida, nada justifica a restrição aos direitos da gestante”.

Prevaleceu o voto do ministro Marco Aurélio, relator da ação em julgamento, para quem “anencefalia e vida são termos antitéticos”. O ministro afirmou que existe, no caso, um conflito apenas aparente entre direitos fundamentais já que não há qualquer possibilidade de o feto sem cérebro sobreviver fora do útero da mãe. O que estava em jogo, disse Marco Aurélio, é saber se a mulher que interrompe a gravidez de feto em caso de anencefalia tem de ser presa. Os ministros decidiram que não.

Os ministros se mostraram preocupados com a execução da decisão, especificamente com a segurança do diagnóstico de anencefalia. O ministro Gilmar Mendes propôs que o Supremo recomendasse ao Ministério da Saúde que editasse uma norma de segurança para que o diagnóstico seja seguro. A maioria, contudo, rejeitou a proposta após uma longa discussão.

Crisálida ou borboleta
O julgamento começou na quarta-feira (11/4) pela manhã e foi suspenso no começo da noite com o placar de cinco votos a um em favor da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS).

Retomado nesta quinta (12/4), o primeiro ministro a votar foi Ayres Britto. Na linha dos outros sete ministros, entendeu que não é razoável obrigar uma mulher a carregar em seu ventre um feto cuja possibilidade de vida não existe. Tampouco é justo colocar no banco dos réus aquelas que decidem interromper a gestação nestes casos.

Segundo Britto, a gestação de feto anencéfalo não passa de uma fraude, de “um arremedo de gravidez”. O ministro ressaltou que não há normas que identifiquem o início da vida. “À luz da Constituição, não há definição sobre o início da vida. É estranho criminalizar o aborto sem a definição de quando se inicia a vida humana”, afirmou.

O ministro não perdeu a oportunidade de fazer seus já conhecidos trocadilhos. “O feto anencéfalo é uma crisálida que nunca se transformará em borboleta porque jamais alçará vôo”, cravou. “Se todo aborto é uma interrupção voluntária de gravidez, nem toda interrupção voluntária de gravidez é aborto”, afirmou o ministro. Em outro ponto do voto, disse que “sobre o início da vida, a Constituição é de um silêncio de morte”.

Além de Britto e do relator da ação, Marco Aurélio, votaram pela descriminalização os ministros Rosa Maria Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Celso de Mello. O ministro Gilmar Mendes fez diversas ressalvas em seu voto e uma crítica ao fato de o relator não ter admitido a participação de amici curiae no julgamento. Segundo Mendes, o fato de o Estado ser laico não significa que não devam ser levados em conta argumentos de entidades e organizações religiosas nestes casos. “É preciso ter cuidado com faniquitos anticlericais”, disse.

O ministro Marco Aurélio respondeu na volta do intervalo. Lembrou que, em 2008, foi feita uma audiência pública que durou três dias em que todos os interessados se manifestaram, sem qualquer espécie de restrição. Ou seja, houve a efetiva participação de interessados, inclusive diversas entidades religiosas, no processo. Em seu voto, Marco afirmou que “paixões religiosas de toda ordem hão de ser colocadas à parte da condução do Estado”.

Depois de Britto, votou Gilmar Mendes. O ministro trouxe dados que mostram que dos 194 países que fazem parte das Nações Unidas, 94 permitem a interrupção de gravidez de fetos anencéfalos. Na maioria dos países, disse, a discussão deu-se há mais de uma década.

Em seu voto, o ministro Celso de Mello também discorreu longamente sobre a importância de separação entre Igreja e Estado. De acordo com o decano do tribunal, o Estado não tem e nem pode ter interesses confessionais. “Ao Estado, são indiferentes os dogmas religiosos. Temas de caráter teológico ou concepções de índole confessional estão fora do alcance do poder censório do Estado. Daí porque essa Suprema Corte não pode resolver qualquer controvérsia com base em princípios religiosos”, disse.

Anencéfalo vive
Os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso votaram contra a ação. Lewandowski fundamentou boa parte de seu voto no argumento de que o tema é assunto para o Legislativo, não para o Supremo Tribunal Federal. “Os parlamentares, legítimos representantes do povo, já tiveram tempo de legislar sobre o tema e não fizeram”, disse Lewandowski. De acordo com o ministro, “quando a lei é clara, não há espaço para interpretação”.

Lewandowski afirmou que o juiz não pode contrariar a vontade manifesta do legislador e o Supremo só pode exercer o papel de legislador negativo. Ou seja, não pode criar novas hipóteses legais. Para ele, a permissão de interrupção de gravidez em casos de anencefalia “sem lei devidamente aprovada pelo Parlamento, que regule o tema em minúcias”.

Para o ministro Cezar Peluso, não se pode admitir que o feto anencéfalo não tenha vida. “A vida não é um conceito artificial criado pelo ordenamento jurídico para efeitos operacionais. A vida e a morte são fenômenos pré-jurídicos das quais o direito se apropria para determinado fim”, disse. “O anencéfalo morre. E só pode morrer porque está vivo. Não é possível pensar-se em morte de algo que não está vivo”, emendou.

De acordo com o presidente do Supremo, o aborto de feto anencéfalo é conduta vedada de forma frontal pela ordem jurídica. O ministro disse que “não há malabarismo hermenêutico ou ginástica dialética” que o leve a considerar que interrupção de gravidez de feto anencéfalo não é aborto. “Feto anencéfalo é sujeito de direito, não coisa, nem objeto de direito alheio”, defendeu.

O ministro Dias Toffoli não participou do julgamento. De acordo com seu gabinete, ele se declarou impedido por ter trabalhado no parecer da Advocacia-Geral da União em favor da ação, na época em que era o advogado-geral.

Pequeno esquife
O julgamento foi marcado por frases fortes. “O útero é o primeiro berço do ser humano. Quando o berço se transforma num pequeno esquife, a vida se entorta”, disse a ministra Cármen Lúcia. A ministra fez questão de ressaltar que o STF não está decidindo sobre o aborto, menos ainda sobre aborto eugênico.

O relator, ministro Marco Aurélio, disse que na classe A, os abortos são realizados com toda a assepsia. No caso dos pobres, são feitos por açougueiros. O que indica isso, sustentou, é o fato de hospitais públicos fazerem 200 mil curetagens por ano por conta de abortos mal feitos. O ministro também frisou muito o fato de que a permissão de interromper gestação de feto anencéfalo não é aborto. “Existe distinção entre aborto e antecipação terapêutica do parto. O feto anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Não se trata de vida potencial, mas de morte segura”.

Em seu voto, o ministro enfrentou o tema sob todos os ângulos possíveis: sociais, religiosas, científicas, médicas e jurídicas. Marco Aurélio esclareceu que os argumentos de que a decisão pode levar à permissão de abortos eugênicos não fazem sentido. “afasto-os, considerado o viés político e ideológico contido na palavra eugenia”.

O ministro fez uma clara distinção entre pessoas que têm deficiências de qualquer ordem e a anencefalia. “O anencéfalo é um natimorto. Não há vida em potencial. Logo, não se pode cogitar de aborto eugênico. Não se trata de feto portador de doença grave, que permite vida extrauterina”, reforçou. Marco Aurélio também fez uma longa distinção entre Estado e Igreja.

De acordo com o relator, concepções morais religiosas, unânimes, majoritárias ou minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas às esferas privadas. O ministro frisou que o preâmbulo da Constituição – “sob a proteção de Deus” – não tem força normativa.

Marco Aurélio sustentou que o estado é laico, mas não laicista. “A laicidade, que não se confunde com laicismo. Laicidade é atitude de neutralidade do Estado. Laicismo é uma atitude hostil”. Mas ressaltou que a Constituição consagra a liberdade religiosa e a laicidade do Estado. “O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é neutro”. E ainda lembrou que ao Estado brasileiro é terminantemente vedado promover qualquer religião.

O ministro também trouxe dados sobre anencefalia no Brasil. De acordo com ele, os juízes já autorizaram a interrupção de três mil gestações de fetos anencéfalos no país. O que denota a importância de o Supremo pacificar a discussão. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde revelados por ele, o Brasil é o quarto país em número de casos de fetos anencéfalos. A incidência é de um em cada mil nascimentos, segundo os dados da OMS.

Marco Aurélio também rechaçou a tese de que os órgãos do feto anencéfalo poderiam ser usados para doação. “Se é inumano e impensável tratar a mulher como mero instrumento para qualquer finalidade, avulta-se ainda mais grave se a chance de êxito for praticamente nula”, disse, com base em dados que mostram que os órgãos não são viáveis para serem doados. O relator também trouxe, em seu voto, números que mostram que o risco à gestante de feto anencéfalo é muito maior do que em outros casos.

Sem chance de vida
A ministra Rosa Maria Weber, em um voto longo em que contestou o fato de que, muitas vezes, conceitos científicos são tomados como verdades absolutas, e que confundiu muitos que vislumbraram um voto contra a ação, também votou a favor. Rosa lembrou que “há relatos na literatura de sobrevida de fetos anencéfalos por meses, até por mais de um ano”.

A ministra também contou que recebeu a visita da menina Vitória em Cristo, com dois anos e dois meses, e que ficou tocada. Vitória, na verdade, não é vítima de anencefalia. Ou sequer estaria vida. Ela tem, sim, uma deformação na caixa craniana. Ao fim, contudo, a ministra disse que a anencefalia não é compatível com as características de compreensão de vida para o Direito e considerou que a Interrupção de gravidez de feto anencéfalo não é aborto.

Rosa Weber e Luiz Fux fizeram críticas ao Legislativo. Moderadas, é verdade, mas não deixaram de dizer que o Supremo só tem de decidir a questão por omissão do Congresso Nacional. “A supremacia judicial só se instaura quando o Legislativo abre esse espaço ao não cumprir sua função de representar o povo”, disse Fux.

O ministro esclareceu que o STF evidentemente respeita e vai consagrar o direito de mulheres que desejarem realizar o parto de feto anencefálico. “O que se examina aqui é se é justo colocar uma mulher vítima de uma tragédia no banco do júri”, afirmou. “Uma mulher que terá o filho para assistir a sua missa de sétimo dia”, completou.

Luiz Fux também disse que o aborto é questão de saúde pública, não de Direito Penal. No caso da anencefalia, afirmou, “é o punir pelo punir, como se fosse o Direito penal a panaceia de todos os problemas sociais”.

O ministro Joaquim Barbosa também acompanhou o voto do ministro Marco Aurélio. Barbosa lembrou que chegou a formular um longo voto sobre o tema em outro julgamento, que foi interrompido anos atrás pelo Supremo. Depois, o pedido de Habeas Corpus perdeu o objeto porque o bebê nasceu antes da decisão do Supremo.

Aborto impossível
Antes do voto de Marco Aurélio, o advogado Luís Roberto Barroso, que representa a CNTS, e o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, defenderam a descriminalização da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos.

Barroso afirmou que o tribunal decidira sobre o direito que a mulher tem de não ser um útero a serviço da sociedade. Mas de ser uma pessoa plena. O advogado ressaltou que todas as entidades médicas garantem que o diagnóstico de anencefalia é 100% certo e a letalidade ocorre em 100% dos casos.

Para Luís Roberto Barroso, não se trata de caso de aborto, que pressupõe vida, o que não é possível em casos de anencefalia. O advogado ressaltou que obrigar a mulher a carregar um feto que não tem expectativa de vida é violar sua integridade física e psicológica.

“A mulher não sairá da maternidade com um berço. Sairá da maternidade com um pequeno caixão. E terá de tomar remédios para cessar o leite que produziu para ninguém. É uma tortura psicológica”, afirmou Luís Roberto Barroso. O advogado defendeu que o Estado não tem o direito de dizer como as pessoas vão lidar com a própria dor e que a criminalização da interrupção de gravidez de fetos anencéfalos é um fenômeno do subdesenvolvimento. “Nós estamos atrasados. E com pressa”, disse.

Em referência a declarações do ministro Ayres Britto, Barroso disse que se os homens engravidassem, o aborto estaria permitido, não apenas neste caso, mas em todos os outros. E lembrou que a discussão encerra um dramático problema de saúde pública e discriminação das mulheres pobres.

“A criminalização é seletiva, faz um corte de classe, penaliza as mulheres pobres. Dia sim, dia não, morre uma mulher como consequência de aborto clandestino no Brasil. E criminalização do aborto não diminui o número de abortos”, sustentou. E completou: “Quem é a favor da vida, tem de ser contra a criminalização do aborto”.

O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, lembra que a PGR emitiu dois pareceres em sentido contrário, o que revela a polêmica do tema. O primeiro foi emitido por Cláudio Fonteles, quando este era o titular da PGR. O segundo por Deborah Duprat, quando assumiu interinamente a Procuradoria-Geral da República.

Gurgel endossou a posição de Deborah Duprat. De acordo com o procurador, 65% dos fetos anencefálicos morrem no período intrauterino. Os que sobrevivem, não passam de algumas horas depois do parto. Na maioria dos casos, sobrevivem apenas alguns minutos.

Ao final de seu voto, Marco Aurélio discorreu sobre os direitos das mulheres. Para ele, o Estado obrigar a mulher a carregar um feto que não tem expectativa de vida é intrometer-se em sua integridade física e psicológica. Segundo o ministro, o ato de obrigar a mulher a manter a gestação de feto anencéfalo coloca-a em cárcere privado em seu próprio corpo. Assemelha-se à tortura. “Não cabe impor às mulheres o sentimento de meras incubadoras ou caixões ambulantes, nas palavras de Débora Diniz”, disse.

Depois do término do julgamento desta quinta-feira, Luís Roberto Barroso afirmou que “a decisão do Supremo Tribunal Federal significa o reconhecimento da liberdade reprodutiva da mulher e dá início a uma nova era para a condição feminina no Brasil. Quando a ação foi proposta, em 2004, o tema era tabu e o êxito improvável. Oito anos depois, o direito de a mulher interromper a gestação nesse caso tornou-se senso comum”.

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