Direito do nascituro

Vida e liberdade são paradigmas para refletir o aborto

Autor

  • Hugo Barroso Uelze

    é advogado Membro da Comissão de Direito Tributário da 116ª Subseção da OAB-SP e mestre em Direito da Sociedade da Informação pela UniFMU.

11 de abril de 2012, 13h06

O aborto – a interrupção prematura da gravidez, com ou sem a expulsão do embrião ou feto, viável ou não, do útero da mulher –, pode se verificar de maneira espontânea, em decorrência de causas biológicas, ou de forma induzida. Enquanto a primeira espécie não acarreta maiores discussões por se tratar de um fenômeno natural e, muitas vezes, inevitável, a segunda provoca debates, não raro guiados pela intolerância.

O assunto contempla diferentes aspectos – éticos ou filosóficos, religiosos, científicos e jurídicos –, razão pela qual é preciso, antes de tudo, adotar como método a análise sem posições adrede concebidas. Em especial aquelas conduzidas pelo antagonismo destruidor –, no mais das vezes, apenas suscetível de produzir “juízos ligeiros”.

O debate não deve ser reduzido de forma sectária, a partir da qual só sejam consideradas determinadas variáveis e, a priori, rejeitados os argumentos em contrário. Mesmo porque, em termos filosóficos, ouvir as premissas alheias acarreta inequívoca vantagem: ou conduzirá a maior certeza ou, então, propiciará uma mudança de posição.

A discussão acerca do aborto, entretanto, traz ínsita uma dificuldade a mais: a da origem laica ou religiosa dos argumentos – e, mesmo, do próprio entendimento –, o que, todavia, parece partir de premissas equivocadas. Isto é, a de que a religião, seja ela qual for, não se encontraria apta à produção de elementos éticos, ou, então, que as pessoas não religiosas, por esse motivo, seriam antiéticas. Ou, ainda, que as pessoas religiosas se valeriam do conhecimento científico para fazer prevalecer questões meramente dogmáticas, posicionamento que, além de extremado, se afigura injurídico[1].

Assim, se almeja discutir o tema por meio dos paradigmas vida e liberdade[2] – e, a partir deles, empreender uma reflexão sobre outros elementos – sem as amarras quanto à sua origem , segundo os parâmetros filosóficos colhidos junto à Bioética[3], bem como os critérios fornecidos pelo Biodireito[4], desde que úteis ao debate[5].

Sob o enfoque filosófico, não parece difícil perceber que sem a vida se tornam impossíveis às demais aspirações e realizações humanas, para as quais a liberdade, embora importante, encontra limites, para que possível o convívio social[6]. Trata-se mesmo de um axioma: sem vida não existe liberdade. Ora, é justamente a maior ou menor prioridade conferida aos valores vida e a liberdade que determina a posição contrária ou favorável ao Aborto a partir de dois sistemas aparentemente herméticos.

O primeiro sistema enfatiza a vida e a liberdade da mulher e sua autonomia para decidir sobre o seu próprio corpo[7] –, razão pela qual confere maior importância ao fato de o desenvolvimento biológico se verificar no útero da Mãe do que à própria concepção. Sob esse viés, o embrião seria mero prolongamento do corpo da mãe[8], pois ausente o atributo liberdade e, mesmo, o status de pessoa, daí a possibilidade de a mulher, de conformidade com a sua autonomia, dispor da gravidez.

O segundo sistema, mais abrangente, contempla também a vida do feto. A partir de tal enfoque, não só o fato de o desenvolvimento se dar no útero da mãe deve ser considerado, mas a forma como que este se verifica. É que logo após a concepção[9], marco temporal no qual se observa a fusão dos caracteres genéticos, surge um novo organismo humano vivo, com carga genética própria, o zigoto[10] e, por isso, destacado dos gametas que lhe deram origem. Daí porque há que lhe ser reconhecida a necessária e inegável – em termos biológicos –, autonomia e, pois, a qualidade de pessoa e não coisa.

Destarte, reunidas as variáveis veiculadas, é possível perceber que a autonomia da Mulher sobre o próprio corpo apresenta uma contradição em seus próprios termos, pois se choca com a autonomia do feto, que, em maior ou menor escala, também possui o próprio corpo[11], razão pela qual resta presente a hipótese de prejuízo a direito alheio. O que, aliás, é reiterado pelo magno princípio da isonomia, segundo o qual, em síntese, são vedadas quaisquer discriminações aleatórias ou injustificadas, o que significa dizer que todos – recém-nascido, criança, adolescente, jovem, adulto e idoso –, são igualmente destinatários da proteção relativa à inviolabilidade da vida, inclusive o nascituro.

Quer dizer, não é lícito ao intérprete distinguir onde o legislador constituinte não diferenciou, daí porque a mulher e o homem encontram limites em suas aspirações [autonomia] e condutas [liberdade], em especial diante da inviolabilidade do direito à vida – intangível em termos jurídicos, face à sua condição de Cláusula Pétrea (artigo 5º, caput e III c./c. 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição Federal) –, o que, portanto, alcança todas as fases do ser humano.

De outra parte, a proteção a direitos que se apresentem apenas em termos potenciais, como os do Embrião ou Feto, não caracteriza propriamente uma novidade em face das chamadas tutelas de urgência, tal como decorre da “garantia das garantias”, o livre acesso ao Poder Judiciário [artigo 5º, XXXV da CF], que abarca tanto os casos de lesão, quanto os de ameaça, razão pela qual, em caso de dúvida, deve se priorizar a inviolabilidade do direito à vida – fonte primária das demais faculdades individuais e, nunca, ao contrário –, interpretação que, aliás, parece encontrar eco no “garantismo penal” [12], pois ao nascituro, embora cativo no estágio intra-uterino, não pode ter as suas prerrogativas essenciais anuladas ou, mesmo, relativizadas, nem tampouco desconsiderada sua autonomia ontológica.

Outro aspecto que merece atenção é a assertiva de que as novas excludentes que se almeja sejam incluídas no futuro Código Penal – entre elas a anencefalia e seus diferentes graus, tema que aguarda julgamento perante o Supremo Tribunal Federal (STF) –, se justificariam por questões de saúde pública. Aqui, duas ponderações devem ser feitas. A primeira reside em saber se as citadas definições legais resistem ao teste de compatibilidade em face dos conceitos constitucionais do direito à vida, à isonomia e à liberdade. A outra consiste em indagar se as ficções ou presunções – instrumentos jurídicos para transformação do mundo natural , irão cumprir o seu papel, embora cientes de antemão, que as diferenciações erigidas somente beneficiarão uma parcela dos sujeitos relacionados à questão – as mulheres adultas –, o que, além de suscitar um conflito ético, parece indicar a escolha de um discrímen aleatório ou injustificado: entre os nascituros haverá considerável percentual de mulheres.

Por fim, a partir dos paradigmas aqui propostos, pode se concluir que a vida – fonte primária dos demais direitos –, mesmo que se apresente em termos potenciais, merece prioridade, e, por esse motivo, se afigura suscetível de impor restrições ao exercício da liberdade – valor que embora relevante, não se mostra absoluto. Daí à inviolabilidade ou intangibilidade do embrião, como sujeito de direito – pessoa e não coisa –, e, por isso, dotado de dignidade, pois pertencente ao mundo dos fins e não dos meios –, razão pela qual o nascituro, embora cativo, seja em face do caráter magno das tutelas de urgência, seja por analogia ao “garantismo penal”, não pode ser relegado ao abandono ou desamparo, nem tampouco ter desprezada sua autonomia, em termos biológicos dada pela fusão dos gametas no momento da fecundação e, desta forma, esquecida a sua origem – a história de todos nós –, porque “o embrião é aquilo que fomos”[13].


[1] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 41.

[2] Ao citar o pensamento de Bobbio sobre o surgimento de direitos de quarta geração em decorrência dos avanços da pesquisa biológica, Renata da Rocha pondera se o fenômeno não caracterizaria um “[…] mero retorno àqueles ditos de primeira dimensão ou geração, tais como o direito à vida, à liberdade, à igualdade […].” In: Os desafios do século XXI e o biodireito: utilitarismo ou valores? Revista de Direito Constitucional e Internacional. Revista dos Tribunais. v. 17, n. 68, p. 249, jul./set. 2009.

[3] “Bioética é a parte da Ética, ramo da filosofia, que enfoca as questões relativas à vida humana [e, portanto, à saúde]. A Bioética, tendo a vida como objeto de estudo, trata também da morte […].” SEGRE, Marco. Definição de Bioética e sua Relação com a Ética, Deontologia e Diceologia. In: SEGRE, Marcos; COHEN, Cláudio [Organizadores]. Bioética. 3ª ed., São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008, p. 27.

[4]“[…] ao Biodireito cumpre […] estabelecer as normas e os princípios relacionados à origem ao desenvolvimento e ao término da vida humana, […] em sentido estrito, […] o Biodireito procura alcançar os domínios cronologicamente anteriores ao nascimento completo e com a vida, projetando-se para além do termo personalidade jurídica.” ROCHA, Renata da. Op. cit., p. 256.

[5] Sob esse enfoque, bastante sugestivo o título escolhido por Dom Odilo P. Scherer, porque considera, a um só tempo, tanto os direitos da Mulher, quanto os do Embrião: “Pela vida da mãe e de seu filho.” In: O Estado de São Paulo, São Paulo, 10 mar. 2012, Primeiro Caderno, p. A –2.

[6]Liberdade interna [chamada também de liberdade subjetiva, liberdade psicológica ou moral e especialmente liberdade da indiferença] é o livre arbítrio, como simples manifestação da vontade do mundo interior […]. A questão fundamental, contudo, é saber se feita a escolha, é possível determinar-se em função dela. […]

[…] Neste sentido, autoridade e liberdade são situações que se complementam. É que a autoridade é tão indispensável à ordem social – condição mesma da liberdade –, como esta é necessária à expansão individual. […] `O problema está em estabelecer entre a liberdade e a autoridade, um equilíbrio […] necessário à perfeita expressão de sua personalidade´.” SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9ª ed., São Paulo: Malheiros, 1993, p. 210-211.

[7] “Estado democrático de direito […] não se confunde com ditadura da maioria. As liberdades individuais só podem ser limitadas se – e somente se – o exercício de uma determinada autonomia provocar dano a outrem. […]

[…]

A grande batalha jurídica do século XXI será pela libertação dos corpos das normas impostas pelo arbítrio da maioria. Somos herdeiros de uma cultura religiosa que nos impôs ao longo da história uma infinidade de restrições morais e, posteriormente jurídicas, ao uso de nossos próprios corpos.

[…] Se uma conduta não lesa nem gera riscos de lesão a direitos alheios, não há por que ser proibida.” VIANNA, Túlio. O direito sobre o próprio corpo. Revista Forum, São Paulo, jan. 2012. Disponível em: < http://www.revistaforum.com.br/conteudo/detalhe_materia.php?codMateria=9386/o-direito-ao-próprio-corpo>. Acesso em 20 mar. 2012

[8] SEGRE, Marco. Limites Éticos da Intervenção sobre o Ser Humano… In:SEGRE, Marcos; COHEN, Cláudio [Organizadores]. Op. cit., p. 135.

[9] “Neste sentido, o citado Paulo Otero afirma, que, desde o momento em que cientificamente se possa determinar existir vida, o Direito tem, imperativamente, de estabelecer meios de a garantir e proteger.

Assim, diz ele com referência à Constituição de Portugal e nós, com referencia à Constituição de 1988, que ao afirmarem o direito à vida, não fazem distinção sobre a natureza extra-uterina ou intra-uterina dessa vida. Não fazendo distinção, compreendem `todas as formas de manifestação dessa mesma vida´.

Essa garantia de inviolabilidade envolve, portanto, um direito à existência de todos os seres humanos já concebidos. […]” GARCIA, Maria. Espécie humana, a última fronteira: instrumentalização e ética no uso de embriões humanos. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Revista dos Tribunais. v. 18, n. 72, p. 261, jul./ set. 2010.

[10] “Do ponto de vista da Embriologia […]: `O desenvolvimento humano é um processo contínuo que começa quando um ovócito de uma mulher é fertilizado por um espermatozoide de um homem. […].

[…] Moore e Perseaud indicam três pontos que já estão bem definidos: 1. o desenvolvimento humano começa na fertilização; 2. o zigoto e o embrião inicial são organismos humanos vivos; 3. durante a oitava semana, o embrião adquire características tipicamente humanas, tais como a perda da cauda e o aspecto do rosto.

Essa questão do desenvolvimento, já está definitivamente fixada no continuum – zigoto, embrião, bebê, criança, jovem, adulto, velho.

Ervim Schrödinger, uma das maiores autoridades no campo da física quântica, Prêmio Nobel de 1933, colocou-o muito bem no seu clássico O Que É Vida?:

`Permitam-se usar o termo `padrão´ de um organismo, no sentido que o biólogo o emprega: `o padrão tetradimensional´, querendo dizer não apenas a estrutura e o funcionamento daquele organismo na fase adulta, ou em qualquer outra fase em particular, mas todo o seu desenvolvimento ontogenético, desde a célula-ovo fertilizada, até a maturidade, quando o organismo começa a se reproduzir. Sabe-se que todo o padrão tetradimensional é determinado pela estrutura daquela única célula: o ovo fertilizado.´

[…]

Os especialistas em reprodução humana, em Medicina Legal, os geneticistas, enfim, os estudiosos do assunto sabem das qualidades da célula ovo. Em nenhum momento da história humana, encontramos tanto potencial dentro de uma única célula: sua extraordinária força germinativa, seu DNA inconfundível, seu rico quimismo celular.

A concepção é, portanto, um instante especial da existência: o zigoto ou célula-ovo não ultrapassa a dimensão de 130 micrômetros […], no entanto, ela tem um aumento ponderal de dez mil vezes, nas primeiras quatro semanas de desenvolvimento. Essa velocidade jamais se repetirá em nenhum momento da existência do indivíduo.

Hoje não resta dúvida alguma a esse respeito: o zigoto concentra em si mesmo toda a potencialidade de desenvolvimento ontológico. Nele, inicia-se a vida do ser humano.” NOBRE, Marlene. O clamor da vida: reflexões contra o aborto internacional. São Paulo: FE, 2000, p. 5-6.

[11] “A vida física constitui valor fundamental, exatamente porque sobre a vida física, fundam-se e desenvolvem-se os demais valores da pessoa humana. Assim, o direito sobre o próprio corpo é um direito de vulto na defesa da personalidade humana, pois é o instrumento pelo qual a pessoa realizada sua missão no mundo fático.” LOUREIRO, Claudia Regina Magalhães. Introdução ao biodireito. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 84.

[12] NUCCI, Guilherme de Souza. Prisão e liberdade: as reformas processuais penais introduzidas pela Lei 12403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: RT, 2011, p. 13-14.

[13] GARCIA, Maria, Op. cit., p. 261.

Autores

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    é advogado. Especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diretor da Comissão de Bioética e Biodireito da 116ª Subseção da OAB-SP.

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