Justiça Tributária

Fisco age como se Constituição e leis não existissem

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

9 de abril de 2012, 8h40

Spacca
Recentemente, numa escola pública, um aluno recusou-se a participar de uma oração coletiva, informando à professora que o seu direito de não orar estava previsto na Constituição. A professora não aceitou a explicação, alegando que “essa lei não existe”. Ao que parece não é só a professora que pensa assim.

O nosso fisco vem ignorando a CF e até mesmo leis de hierarquia inferior. Já se tornaram comuns atos administrativos emanados do Poder Executivo pretendendo criar obrigações acessórias a serem cumpridas pelos contribuintes, quase sempre tentando impor-lhes sanções pesadas ante o não cumprimento.

Um exemplo recente disso é o estabelecimento de restrições à emissão de nota fiscal eletrônica pelos estados e municípios quando supostas irregularidades forem atribuídas aos emitentes ou mesmo aos destinatários.

No município de São Paulo criou-se uma tal Instrução Normativa, cujo nome pomposo não lhe empresta qualquer legitimidade, por se tratar de ato nulo, que contraria várias súmulas do STF e mais de uma norma do artigo 5º da Constituição Federal. Talvez o rótulo — Instrução Normativa — seja bonitinho, mas o produto é uma porcaria administrativa de nenhum valor, elaborada por burocratas jejunos em questão de Direito. Se algum dos pais desse ato for versado em Direito, pior fica, pois não lhe favorece a atenuante da ignorância.

Em matéria tributária o que está ruim sempre pode piorar. No Estado, fizeram uma tal Portaria CAT-161 e depois um comunicado CAT 05, ambos com suposta base num Ajuste Sinief 10/2011. Vê-se que não se fala em lei. Pensa esse pessoal que a Assembleia Legislativa serve apenas para dar nome a viadutos e estradas ou então conceder títulos honoríficos, homenagear a festa da pamonha ou coisas dessa relevância.

Ainda que alguns servidores fazendários não gostem, estamos num Estado Democrático de Direito. Isso implica obediência à Constituição Federal, cujo preâmbulo diz que o nosso estado democrático é “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança… a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna”.

O artigo 5º da CF no inciso II diz com clareza: “ninguém será obrigado a fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Ao criar normas baseadas num “ajuste” que nada mais é que decisão tomada por servidores fazendários, o fisco cria um nada jurídico, uma norma de nenhum valor, absolutamente contrária à CF. Esta, no artigo 37, ordena:

Artigo 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Esse primeiro princípio, o da legalidade, é justamente o cumprimento do artigo 5º II, ou seja: legalidade é só criar obrigação com base em LEI, o que qualquer aluno de colégio sabe ou deveria saber que é produzida pelo Poder Legislativo.

Todo esse desvio normativo, toda essa falta de respeito ou de conhecimento das normas constitucionais, gera inúmeros problemas e causa graves prejuízos para a sociedade e para o próprio erário.

Quando o contribuinte deixa de fazer uma venda por culpa de uma besteira burocrática qualquer, terá que compensar sua perda de alguma forma. Pode ser a dispensa de um empregado, pode ser aumento no preço das mercadorias ou atraso no pagamento de imposto.

A criação de normas irregulares também dá ensejo a processos judiciais, que causam perdas ao poder público, seja com custas, seja com o trabalho dos procuradores que poderiam, por exemplo, dar andamento aos milhares de processos de execução fiscal que estão prestes a prescrever.

O relacionamento entre fisco e contribuinte precisa ser modificado urgentemente. Não podem se considerar inimigos e suas relações devem ser feitas de forma respeitosa e cortês, levando sempre em conta que ambos dependem da eficiência do outro. Se o contribuinte não obtém resultados em seus negócios, não terá como pagar o tributo que se destina ao bem estar da sociedade e ao salário do servidor. Mas se este criar dificuldades desnecessárias que podem até inviabilizar a empresa do contribuinte, não haverá proveito para ninguém.

Tanto o contribuinte quanto o servidor devem seguir as normas éticas de suas atividades. Para o serviço público federal existe o Decreto 1.171 de 22/6/94 que trata do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, onde, dentre outros pontos interessantes, vemos que:

“VIII — Toda pessoa tem direito à verdade. O servidor não pode omiti-la ou falseá-la, ainda que contrária aos interesses da própria pessoa interessada ou da Administração Pública. Nenhum Estado pode crescer ou estabilizar-se sobre o poder corruptivo do hábito do erro, da opressão ou da mentira, que sempre aniquilam até mesmo a dignidade humana quanto mais a de uma Nação.”

Já ocorreram várias situações em que o contribuinte não recebeu tratamento respeitoso. Fiscal municipal compareceu a uma empresa lá deixando intimação para que livros e documentos fiscais fossem levados à repartição em determinado dia e horário.

Ora, o contribuinte deve ser fiscalizado no estabelecimento e não pode ser considerado como empregado ou auxiliar do fiscal para levar documentos. Pode e deve recusar-se a essa tarefa. O fiscal que relacione os documentos e os leve, deixando recibo.

Já um fiscal estadual, tempos atrás, entregou uma espécie de formulário, mandando que o contribuinte o preenchesse com os dados de seu passivo em vários exercícios. O formulário era uma planilha destinada a amparar levantamento fiscal. O contribuinte só é obrigado a prestar informações previstas em lei. A planilha não era. O fiscal pode arrecadar os documentos e com eles fazer planilhas, mapas, demonstrativos ou seja lá o que entender bom para ser trabalho.

Já vem se tornando comum ainda que o contribuinte seja intimado para comparecer à repartição a fim de prestar “depoimento”. Quando comparece, ele é interrogado (às vezes por várias pessoas) sobre seus negócios e suas declarações são reduzidas a termo. Ora, fiscal é fiscal, polícia é polícia. Esse pessoal anda vendo muito filme americano. Nenhum contribuinte deve sujeitar-se a ser interrogado por fiscais.

No Estado de São Paulo vigora a Lei Complementar 939/2003, que garante no seu artigo 4º aos contribuintes um adequado e eficaz atendimento pelos órgãos e unidades da Secretaria da Fazenda e ainda igualdade de tratamento, com respeito e urbanidade, em qualquer repartição pública do Estado.

Já o artigo 8º da mesma lei ordena que “a Administração Tributária atuará em obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, interesse público, eficiência e motivação dos atos administrativos.”

Outrossim, os procuradores da fazenda (federal, estadual e municipal) também não são exemplos de bom comportamento. Na procuradoria da fazenda nacional advogados são mal recebidos e quase sempre após demorado agendamento. Há uma procuradora que simplesmente não recebia advogados e, em certa ocasião, decisão judicial só foi cumprida após intervenção da Comissão de Prerrogativas da OAB e sob ameaças de desobediência. Uma outra, do estado, chegou a questionar o fato do advogado sentar-se para tratar de assunto de interesse do cliente. O advogado invocou o artigo 7º da Lei 8.906, que lhe dá o direito de sentar-se sem a licença de ninguém. Nos municípios não é diferente.

Mas todos esses procuradores lembram-se de que são advogados quando aspiram indicação ao quinto constitucional. E os conselheiros da OAB, por excesso de generosidade ou falta de memória, acabam acolhendo esses maus colegas, cuja maldade primeira é se imaginarem melhores que os outros. Penso que nós, advogados autônomos, devemos enviar mensagem a todos os conselheiros, sempre lembrando-lhes tais fatos quando houver algum procurador inscrito ao quinto. Quem maltrata advogados não merece nosso apoio. Simples assim.

Os contribuintes não podem aceitar exigências absurdas e ilegais. Não podem aceitar também as grosserias, a ausência de boas maneiras. Afinal, é toda a sociedade que paga o salário dessas pessoas.

Em cada repartição pública e mesmo no fórum, deveria ter placas com os dizeres: “Sintam-se à vontade. Tudo aqui pertence ao povo, a quem todos servimos”. E deveriam ir para o lixo aqueles avisos ridículos, da época da ditadura onde se menciona que “Constitui desacato…etc.”. No lugar deste deveria ser mencionado o seguinte: “Constitui crime de abuso de autoridade qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional, nos termos da Lei 4.898/65 .”

Os contribuintes, isto é todos os cidadãos (quem consumir qualquer coisa já é contribuinte) devem, através dos seus advogados, reagir a qualquer ilegalidade. Para que tal procedimento tenha sucesso, o respeito deve estar presente sempre. Não podemos participar de atos ilícitos. Corrupção é crime tanto ativa quanto passivamente. Se participarmos de algum ato dessa natureza, passamos a ser cúmplices de um ou mais criminosos. De igual forma o tráfico de influência também é crime, tipificado como prevaricação.

Temos, como cidadãos, o dever de respeitar os servidores públicos, exigindo igual forma de tratamento. O nosso comportamento rigorosamente ético pode ser capaz de afastar qualquer oportunidade para que o ato delituoso esteja presente nesse relacionamento. É disso que precisamos. Não parece ser difícil.

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  • é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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