Senso incomum

Fetiche da lei, cidadania terceirizada

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5 de abril de 2012, 7h58

Caricatura Lenio Streck [Spacca]Em As Aventuras de Gulliver, Jonatah Swift apresenta um interessante problema acerca do que seja o fetiche da lei, quando o personagem “gigante” se depara com uma curiosa guerra travada entre dois reinos que fazem parte de uma espécie de “federação” (Blefuscu e Lilliput). Os dois povos estavam lutando já há muitos anos, tudo porque o filho do Rei de então, ao quebrar um ovo pela manhã, fê-lo pelo lado mais duro, ferindo-se no dedo. Em decorrência, o Rei editou um decreto (espécie de medida provisória – minha licença poética) determinando que, a partir daquele dia, todos “deveriam quebrar os ovos pelo lado mais delgado”. Isso gerou uma controvérsia e posterior revolta. Centenas de livros foram escritos, sustentando teses opostas. Dizem que até uma súmula vinculante foi feita! Até que veio a guerra, com dezenas de milhares de mortos. Gulliver, então, indaga: e o que diz a Constituição (ele, por certo, estudara controle de constitucionalidade em terrae brasilis ou adjacências)? E o rei responde: a Constituição é clara: “todos os fiéis quebrarão os ovos pela extremidade mais cômoda”. E então?

Eis o fetiche da lei. Interpretamos a lei como os liliputianos. E, depois, guerreamos. Apostamos tudo na “lei”. Como se a lei fosse uma coisa e nela estivesse o seu conteúdo substancial, objetificado. Um cachorro ladra. E lá vai a vizinha ao Juizado Especial exigir a aplicação da Lei das Contravenções Penais. Que não foi recepcionada pela Constituição. Aliás, o porteiro do STF deveria declará-la não-recepcionada. Ela é da década de 40 do século passado e pretendia controlar os comportamentos sociais. No entanto, continua aí. Ontologizada. E assim por diante. O Código Penal, fosse filtrado hermeneuticamente, viraria pó em grande parte. Graças a esse atraso, a desproporcionalidade das penas é de chorar. Furto qualificado e lavagem de dinheiro: penas quase iguais. Com a diferença de que temos milhares de pobres patuleus presos por furto qualificado e nenhum por lavagem…! Por suposto que sempre há um não-dito nessa história. A lei não tem um sentido em-sí. Mesmo que não existisse essa desproporcionalidade, ainda assim restaria o problema da aplicação, dependente de um intrincado jogo discursivo, que esconde as relações de poder (que, por vezes, chamamos de “teoria do bem jurídico”)…! Cada época tem a sua teoria do bem jurídico. O Código do Império foi feito para pegar escravos; o de 1890, para pegar ex-escravos… e assim por diante.

Sigamos. Terceirizamos a cidadania. Os vereadores, ao invés de fazerem política, correm ao gabinete do Ministério Público (e agora da Defensoria Pública). Em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, o primeiro ato do defensor público foi ingressar com ação contra o Poder Público, para compeli-lo a comprar um ônibus para o transporte das crianças no interior do município. Louvável a atitude, pois não? Sim e não. Mas o que fizeram ou fazem os vereadores, o Prefeito e os secretários? Quem governa o município é a troica Juiz, Promotor e Defensor (este chegado recentemente, para aumentar o ativismo judicial)? Em uma Capital do Nordeste, a Defensoria pretendeu a construção de milhares de casas pela Prefeitura… imediatamente. Sob pena de multa! Poderia ser “sob pena de chicoteamento do alcaide municipal”.

Crimes de corrupção, etc. E o que fazem os deputados? Uma CPI? Não. Correm ao Gabinete do Ministério Público. E tiram fotografias, entregando o documento com as “contundentes denúncias”.

É o fetiche da lei. Gostamos que alguém nos determine algo. Perdemos a capacidade de organização. E, com isso, a capacidade de indignação (com todos os problemas de anemia significativa que essa palavra possui). Os governos, ao invés de fazerem políticas públicas de saúde, visando a atender a população como um todo, “resolvem” tudo pelo modo mais simples: fornecem um advogado para o utente entrar em juízo. “Não te dou saúde; dou-te um advogado”. Assim, o Poder Executivo atende apenas aqueles que conseguem as liminares em juízo. E, assim, vai levando com a barriga.

As grandes companhias (telefônicas, etc) confiam em uma espécie de “cidadania atuarial”: atendem mal, mas mal mesmo, ao máximo de pessoas e apostam em um cálculo de custo e benefício… Não mais que 5% entram em juízo. Destes, alguns desistirão. Além disso, quem quiser reclamar deve enfrentar as filas dos Juizados Especiais. E o mal humor dos juízes leigos. E dos togados. E dos meirinhos, que parecem donos do fórum. E um sujeito gritando: quem quer conciliar, fique à direita; quem não quiser, à esquerda. Parênteses: como seria uma crônica à la Machado de Assis sobre “uma tarde nos Juizados Especiais”?

Sim, fetiche da lei. Um Procurador da República ingressa com ação para retirar o Dicionário Houaiss, por causa do verbete “cigano”. O dicionário teria tecido “comentários” politicamente incorretos. Acho que ele acredita que a palavra “cigano” tem uma essência de “ciganidade” (como a ranidade da rã em Aristóteles). Expungindo o verbete, resolve-se o problema. Já li isso em algum lugar… Lembrei: 1984, de George Orwel. É a Novilíngia. O Ministério da Guerra era chamado de Ministério do Amor… O da Fome se chamava Ministério da Fartura…! Assim os juristas atribuem sentidos às leis… Dá-se o nome que se quiser. Depois ocorre a ontologização. E, pronto: a realidade estará “transformada”. Do fetiche se passa à reificação. Idéias (ou palavras) são transformadas em coisas (Verdinglichung). Também podemos denominar esse fenômeno de objetificação (Versachlichung). Parte da comunidade jurídica e´, por assim dizer, “ontológica” (mormente no sentido vulgar). Acreditam que há essências. Com isso, coisa julgada parece ser uma “senhora forte”; litisconsorte ativo parece ser um sujeito magro… Primeiro “criamos coisas”, para, depois, delas retirar a essência, com o que extraímos o sentido. Por vezes, chamamos a isso de natureza jurídica. Ou “conceito ontológico” mesmo. Por isso se pensa que, alterando a palavra, fiat lux: tudo está solucionado.

O fetiche do ativismo… Em prisões brasileiras, juízes deferem (ou poderão deferir) 3 dias de remição de pena por cada livro lido. Fundamento legal? E precisa? Projeto da Secretaria de Justiça do Paraná. Alguém pensaria que deve haver uma autorização legislativa para tal. Afinal, em uma democracia, o parlamento faz as leis. Consta que o fulcro legal estaria na LEP (7210/84), recentemente alterada pela Lei 12.433/2011. Tal lei incluiu o §2° ao art. 126 da LEP que passou a permitir que “As atividades de estudo a que se refere o § 1o deste artigo poderão ser desenvolvidas de forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e deverão ser certificadas pelas autoridades educacionais competentes dos cursos frequentados”. Ler livros e fazer fichas de leitura estariam dentro das possibilidades semânticas destacadas pela Lei? Isso é “ensino à distância”? E quem corrige a ficha? E o que é uma “ficha”? O que é uma “resenha”? Juiz seria “autoridade educacional”? Os presos serão avaliados? Notas de um a dez? Nota sete passa sem exame? E quais os livros passíveis de enquadramento? Somente aqueles que o estabelecimento prisional oferecer? O Pequeno Principe pode? Paulo Coelho é legal? Dizem que Fernandinho Beira Mar é um voraz leitor. O que quero dizer é que, se de um lado há o caráter fetichista da lei, de outro, nem os assim denominados “limites semânticos” (uso essa expressão para além das teorias analíticas da linguagem) “seguram” os sentidos. Não parece que a LEP permita esses “movimentos”. Entretanto, faz-se a interpretação que se quer. Dá-se aos textos os sentidos pragmaticistas que mais convierem ao intérprete. Como fez a “Juíza” Pórcia, em O Mercador de Veneza. Aliás, se os presos têm direito a receber livros e, ainda por cima, receber prêmio pela leitura, as demais pessoas também terão acesso a esses livros? Aviso: antes que alguém caia de pau nisso que estou dizendo e me chame de reacionário, deixo claro que parece óbvio que é melhor os presos lerem do que ficarem no ócio. Literatura sempre faz bem. Entretanto, cada atitude voluntarista desse naipe tem efeitos colaterais. Além de não ter amparo legal. Se é que isso importa.

Fetiche das palavras… O diário oficial publicou, em 2009, que um acampamento de sem-terras passou a se chamar “Deputado Adão Pretto”. Depois, veio a “retificação”: o correto seria “Adão Negro”. Que coisa, não? Esqueceram que Pretto era o sobrenome… Esse “imaginário ONG” já está enchendo a paciência. Sobre ele escreverei na semana que vem.

Fetiche da “linguagem cênica”… No Rio Grande do Sul, a Associação que congrega Lésbicas ingressa com pedido para a retirada dos crucifixos dos prédios públicos (parece que, no caso, só do judiciário). Sem entrar no mérito neste momento acerca se devemos retirar tais símbolos, a pergunta que se põe é: e o Judiciário decide isso assim, de chofre? Sem ouvir ninguém? Quem sabe um pequeno exame da legitimidade? Essa Associação representa a população? Mais um sintoma dessa fetichização que nos persegue desde a Lei da Boa Razão baixada por Pombal lá no século XVIII.

Império da semântica… Sim, talvez por isso o Código de Águas diga que “águas subterrâneas são as que correm por debaixo da terra”… Aliás, a Constituição diz que “são bens da União aqueles que lhe pertencem”. Show de semântica. De todo modo, estão “justificados”, assim, aqueles que fazem “doutrina” no direito, quando sustentam que “agressão atual é a que está acontecendo” e “iminente é a que está por acontecer”… E que “coisa alheia” no furto é “aquela que não pertence a pessoa… Ou, melhor ainda: “escalada é subir em alguma coisa”. Por isso o sucesso dos gêmeos xifópagos em concursos públicos. E dos pretendentes a se transformarem em lagartos (não esqueçamos, jamais, da questão n. 10 do Concurso da Defensoria Pública-RJ de 2010). Tudo indica que aqueles que escrevem livros “descomplicados” acreditam mesmo que o direito e a faticidade se “descomplicam” com um simples toque de “Midas semântico”. Algo como “a concepção realista das palavras”. Palavras como “simplificação” ou “descomplicação” devem ter uma substância “descomplicadora”. De todo modo, a julgar pelo que se transformou o ensino jurídico e o modo como se produzem as decisões, de fato parece que eles têm razão. Ao menos assim parece, porque os compêndios estão ali, nas bancadas dos fóruns e tribunais. Já notaram como as grossas lombadas desses manuais nos olham de soslaio?

Há lei para tudo. Tem uma lei que regulamenta o churrasco. Logo surgirá alguém para escrever “Teoria do Churrasco Simplificado”. E um churrasco que não segue a legislação poderá ser inconstitucional. Uma portaria qualquer do Ministro da Fazenda “vale” mais do que a Lei Orgânica da Advocacia Geral da União (falo da Portaria 75, de 26 de março de 2012, pela qual o Ministro determina que os advogados públicos estão impedidos de ajuizar execuções iguais ou menores de 20 mil reais). Pergunto: por que alguém, a partir disso, pagará dívidas de até 20 mil? País rico… E, agora, descaminho de até 20 mil não será mais punido, porque será enquadrado no conceito de “insignificância”. Mais: agora temos uma discussão fantástica. Com a edição da Portaria 75, aqueles que são réus de ações de até 20 mil reais já estão pleiteando a extinção do feito. O que seria, afinal, a parametricidade constitucional? No Sri Lanka, uma Portaria vale menos do que a Constituição. Em Liliput também. Já em terrae brasilis… Lembro-me de ter lido uma discussão interessante do tempo do Império: foi baixado um decreto limitando as penas corporais a 50 chibatadas por dia. Ocorre que muitos escravos desmaiavam no segundo ou terceiro dias. Discussão hermenêutica: quando o escravo estivesse curado, as chibatadas reiniciariam do zero ou do número já chibateado? Depois de 10 anos, veio a solução “sumulada”: começa do zero. Ou seja, a suspensão era interruptiva e não suspensiva. Como acham que será resolvida a questão da Portaria 75? Com certeza, a “viúva” perderá!

Numa palavra: o fetiche da lei e o fetiche do poder nos fragiliza. Enfraquece a cidadania. Já não lutamos. Nem nos reunimos em praças. Para protestar contra a impunidade, reuniram-se não mais de dez mil pessoas. Qualquer causa religiosa ou passeata de minorias reúne trezentas mil pessoas. Administrativizamos ou terceirizamos o exercício de nossas prerrogativas. E de nossos direitos fundamentais. Acreditamos que o simples aumento de penas resolve o problema da criminalidade. E que fazendo uma lei (sempre uma lei) trocando a palavra “crack” por “pedra da morte” – como um projeto de uma importante Câmara de Vereadores – estará resolvido o problema do flagelo da drogadição. A Lavagem de Dinheiro é crime. Faz 13 anos. Só que desde lá (1998) foram condenados apenas 17 pessoas. Furto e estelionato também… só que, neste mesmo período, mais de cem mil pessoas foram condenadas por esses delitos. E então? Onde está o problema? Uma tradição patrimonialista nos prende ao passado. Mas isso não explica tudo. E, por isso, há assunto para outras colunas.

Fetiche da lei, fetiche das palavras… A linguagem não é uma terceira coisa entre um sujeito e um objeto. Ela é condição de possibilidade. Logo, ela não é mero instrumento. Ela não está à minha (ou nossa) disposição (Ge-stel). Do mesmo modo, o direito não pode ser visto como uma mera racionalidade instrumental. Não é uma mera técnica. Para aqueles que tem a crença de que, trocando as palavras se trocam as coisas, lembro que a palavra “bomba” não explode. Pode ser apenas uma “notícia forte”, bombástica. Na rosa não está o seu perfume, para usar um exemplo antigo. Não precisamos falar, neste pequeno espaço, dos usos sociais da linguagem, etc. Apenas quero dizer que não podemos dar às palavras o sentido que queremos e tampouco podemos pensar que, trocando-se os nomes, as coisas mudam (pelo menos da noite para o dia). Não adianta querer erradicar a febre amarela por decreto, como queria Papa Doc, no Haiti (antes que alguém reclame, sei, sim, da importância da lei; aprendi isso lendo Senhores e Caçadores, de Edward Thompson, que dizia: a lei importa e por isso nos importamos com isso tudo). É isso. Os liliputeanos guerrearam durante anos, até a chegada de Gulliver. E a “Constituição” deles era muito clara, pois não? Claríssima…!

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