Tutela jurisdicional

Defensoria garante que hipossuficiente acesse Justiça

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2 de abril de 2012, 3h13

Os direitos coletivos são realidade e necessidade em uma sociedade massificada pelo hiperconsumismo, pela hiperlitigiosidade, pela hipersubjetivação[1] e pela judicialização de direitos, emergindo como forma de viabilizar o acesso à justiça e a efetividade da prestação jurisdicional. A par deste fato e diante do sistema de civil law adotado pelo Brasil, o legislador ordinário pelo sistema ope legis disciplinou taxativamente os legitimados para tutela de tão importantes direitos.

Entres os legitimados concorrentemente, o legislador ordinário outorgou à Defensoria Pública a tutela dos direitos coletivos, através da no artigo 5º, inciso II, da Lei 7.347/85 com a redação dada pela Lei 11.448, de 2007, e pelo inciso VII do artigo 3º da Lei Complementar 80, de 1994, com as alterações da Lei Complementar 132, de 2009, e sua adequação à finalidade constitucional.

É cediço, pois, que a Defensoria Pública tem sua atribuição definida constitucionalmente no artigo 134, como Instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV. Mas quais seriam os limites da atribuição constitucional? Quem seriam os hipossuficientes? Apenas os economicamente necessitados? Parece que não. O limite é a viabilização do acesso à justiça para o exercício da cidadania, que constitui fundamento da Constituição Federal de 1988, no Estado Democrático de Direito.

Sabe-se que a dificuldade na obtenção da tutela jurisdicional não se limita única e exclusivamente ao aspecto econômico e custoso das lides judiciais, o que Mauro Cappelletti[2] já vislumbrava nos direitos fragmentados, onde o prêmio para buscar a correção por vezes é pequeno demais para estimular a movimentação da máquina judiciária e o que comumente ocorre com consumidores lesados, titulares, em regra, de um direito que é apenas um fragmento de um direito difuso[3].

É certo que a hipossuficiência norteia a atuação da Defensoria Pública, mas é igualmente correto que a necessidade não está limitada ao aspecto econômico, já que o dispositivo, em sendo omisso nesse sentido, pressupõe interpretação conforme o texto constitucional e ao encontro do espírito garantidor da cidadania pretendido pelo legislador. Tanto que a Instituição tem atribuição atípica em áreas outras que não somente aquela típica que diz com a hipossuficiência econômica, como é o caso, exemplificativamente, da notória atuação na área criminal, na violência doméstica e na curadoria especial. O que norteia a atuação da Instituição nestas hipóteses são as garantias do acesso à justiça e à ampla defesa para pleno exercício da cidadania.

Diante disso, havendo vulnerabilidade no que diz com o acesso à justiça e exercício da cidadania, encontra-se perfeitamente justificada a atuação da Instituição. É o que ocorre no direito coletivo. Nesses direitos, a vulnerabilidade do lesado advém não somente da qualidade da parte, evidenciada por suas condições pessoais, mas também em decorrência da natureza da lide, diante do direito pleiteado.

A necessidade decorre de aspectos objetivos e subjetivos presentes no direito coletivo, que lhe são inerentes e que podem existir isolada ou cumulativamente, tornando o lesado pontualmente hipossuficiente, o que reclama a tutela atípica pela Defensoria Pública, na forma constitucionalmente atribuída.

É o que se observa na dificuldade advinda da fragmentação do direito e do ínfimo retorno pela movimentação individual da máquina judiciária, o que culmina por se deixar lesar, já que sem a tutela coletiva não se dispõe de meio hábil e eficaz para a tutela desses micro-direitos[4].

Por vezes, também, a zona de penumbra que se verifica entre as modalidades legais constitui empecilho ao conhecimento do direito material, relegado por aspectos processuais que diz com sua tutela.

Também não se pode olvidar que a relevância e a magnitude social da causa coletiva, situada entre o público e o privado, deixa o lesado em situação de evidente desvantagem frente ao causador do dano, o que, por óbvio, resulta em prejuízo formal e material para o lesado.

Não raras vezes o direito tutelado abarca ainda interesses de grupos de vulneráveis, compostos por idosos, mulheres vítimas de violência, crianças e adolescentes, encarcerados, portadores de deficiência, pessoas que simplesmente desconhecem que estão sendo lesadas, que são ou estão hipossuficientes, reconhecidos ou não como tal em seus respectivos estatutos e legislações especiais e que, portanto, necessitam da tutela atípica da instituição.

Veja-se que ainda que não fossem vulneráveis os integrantes dos grupos, no caso do direito coletivo poderiam se encontrar os lesados pontualmente vulneráveis no caso em concreto para organizarem-se na defesa do direito coletivo, o que Ada Pellegrini Grinover[5] denominava de vulneráveis organizacionais, situação esta que dificulta e até impede a defesa efetiva.

O cidadão, enquanto integrante da coletividade, independentemente de sua condição financeira, está vulnerável, está hipossuficiente, pois tem minorada a sua possibilidade de acesso à justiça, de exercício de sua cidadania.

O lesado, inserido na coletividade, reclama legitimação autônoma[6], por se tratar de um ente coletivo reclama necessariamente um legitimado para a defesa do interesse ou direito em conflito, sob o risco de o bem da vida não ser pleiteado.

Vislumbra-se, pelo exposto, que o direito coletivo, pelas suas características peculiares, que envolvem tanto o titular como o próprio objeto litigioso, deixa o lesado em situação de desvantagem na prestação da tutela jurisdicional[7], o que reclama a atuação da Defensoria Pública na tutela coletiva, em perfeita sincronia com a atribuição constitucional atípica, cumprindo com o propósito institucional de assistência ao hipossuficiente e ao necessitado para viabilização do acesso à justiça, na forma preconizada pela nossa Constituição Federal.

Referências bibliográficas

CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Brian. Acesso à Justiça. Título do original: Acess to Justice: The Worldwide Movement to make rights effective. Tradução de: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 26.

_______. O acesso dos consumidores à justiça. Revista Forense. Abr./Jun. 1990. Rio de Janeiro: Forense, p. 53-63.

CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução de: JUSTEN FILHO, Marçal. Título original: L’Etat post-moderne. Belo Horizonte: Forum, 2009, p. 137.)

GRINOVER, Ada Pellegrini. Assistência Judiciária e Acesso à Justiça, in Novas Tendências do Direito Processual, 2. ed. Rio de Janeiro:Forense, 1990, p. 245.

LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 208.

NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. As ações coletivas no direito processual civil brasileiro: exame de alguns casos julgados pelos tribunais brasileiros. In: MILARÉ, Edis (Coord.). A ação civil pública após 25 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 605-635.

PORTO, Sérgio Gilberto & USTARROZ, Daniel. Lições de direitos fundamentais no processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 43-44.


[1] Jacques Chevallier observa que as sociedades contemporâneas atravessam profundas transformações em seus princípios de organização, salientando a “hipersubjetivação” dos direitos em proveito de conjuntos de categorias sociais, grupos sociais de vulneráveis, citando como exemplo pacientes de hospitais, homossexuais e não fumantes. (CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução de: JUSTEN FILHO, Marçal. Título original: L’Etat post-moderne. Belo Horizonte: Forum, 2009, p. 137.)

[2] CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Brian. Acesso à Justiça. Título do original: Acess to Justice: The Worldwide Movement to make rights effective. Tradução de: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 26.

[3] CAPELLETTI, Mauro. O acesso dos consumidores à justiça. Revista Forense. Abr./Jun. 1990. Rio de Janeiro: Forense, p. 53-63.

[4] Sérgio Gilberto Porto explica que na hipótese dos microdireitos, as relações jurídicas de direito material se assentam em atos individuais, por isso sugerem a presença de um direito nitidamente individual a regular as relações que quiçá não se enquadrem na categoria de direitos individuais homogêneos, eis que não têm origem comum, mas sim em diversos atos jurídicos idênticos ou assemelhados, mas que diante de sua ínfima repercussão individual, dificilmente ensejariam ações isoladas, pois o custo do processo é mais gravoso do que suportar o abuso. (PORTO, Sérgio Gilberto & USTARROZ, Daniel. Lições de direitos fundamentais no processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 43-44.)

[5] GRINOVER, Ada Pellegrini. Assistência Judiciária e Acesso à Justiça, in Novas Tendências do Direito Processual, 2. ed. Rio de Janeiro:Forense, 1990, p. 245.

[6] Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery defendem a superação da dicotomia clássica da legitimação em ordinária e extraordinária, pela existência de uma legitimação autônoma e disjuntiva para a condução das ações coletivas na defesa dos interesses difusos e coletivos, com base no que já está ocorrendo na Alemanha, onde a doutrina mais moderna fala em legitimação autônoma para a condução do processo e não mais em substituição processual. (NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. As ações coletivas no direito processual civil brasileiro: exame de alguns casos julgados pelos tribunais brasileiros. In: MILARÉ, Edis (Coord.). A ação civil pública após 25 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 605-635).

[7] Pedro Lenza, comentando acerca da legitimação da Defensoria Pública e a existência da ação direta de inconstitucionalidade, sustenta a “inexistência de qualquer vício de inconstitucionalidade trazida pela referida lei, especialmente em razão da tutela ‘molecularizada’ do processo coletivo e da indivisibilidade do objeto da ação coletiva” (LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 208.)

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