Semana histórica

Suprema Corte dos EUA começa a julgar Obamacare

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1 de abril de 2012, 9h40

Foram três dias como há muito não se via na Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Esta semana, os nove juízes do mais alto tribunal de Justiça do país – e a mais influente corte constitucional do mundo – arguiram os advogados que representam as partes em conflito na ambiciosa reforma do sistema público de saúde levada a cabo pela administração do presidente Barack Obama.

De segunda (26/3) a quarta-feira (28/3), os norte-americanos acompanharam a repercussão do que ocorria – a portas fechadas – no plenário do altíssimo tribunal de Justiça dos EUA. Além das famigeradas ilustrações (cabe tradicionalmente a um cartunista reproduzir os bastidores das sessões de sustentação oral), público e imprensa contaram ainda com a transcrição do áudio gravado durante a sabatina dos advogados promovida pelos justices, como são chamados os juízes, ou ministros, no nosso jargão, da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Desta vez, o interesse pelo conteúdo do que era discutido foi mais amplo do que o de costume, pois este é o caso de maior repercussão a tramitar na corte desde a decisão que confirmou George W. Bush como presidente da República em meio ao confuso resultado das eleições presidenciais de 2000.

No ultimo dia das argumentações, na quarta-feira, a bateria de perguntas e a discussão entre os juízes se concentraram no mérito acerca da constitucionalidade da lei como um todo. Ou seja, se a lei deve ser anulada em sua unidade ou se apenas as partes que supostamente entram em choque com a Carta do país. O outro assunto sobre o qual se detiveram os juízes é ainda mais grave e dá a dimensão da importância histórica do julgamento. Se a expansão universal do atual sistema público de saúde (restrito a idosos, a portadores de determinadas doenças e a um contestado critério de hipossuficiência econômica) fere o equilibrio federativo americano, a balança de poder entre os estados e a União.

São, ao todo, 26 estados que desafiam o Patient Protection and Affordable Care Act (Lei de Proteção ao Paciente e da Saúde Acessível). Não muda muito o mérito do que é questionado em cada uma das ações que atualmente tramitam entre primeira e segunda instância em tribunais do país e serão pacificadas pela jurisprudência gerada pela Suprema Corte no julgamento histórico. São preocupações quanto a extrapolação dos poderes da União ao dispor de uma inédita capacidade de barganha caso a lei seja aprovada; em relação a questão de tornar compulsória ao cidadão a cobertura médica, seja pública ou privada, até 2014; e sobre questões mais difusas, como liberdade individual e a iniciativa de se implantar um sistema de assistência social em tal escala.

As dúvidas consideradas mais pragmáticas dizem respeito aos custos da criação de um programa de saúde pública universal, uma vez que os recursos viriam tanto da União quanto dos estados. Do seu lado, o governo afirma que a lei não impõe mais custos aos estados, já que o governo vai arcar inicialmente com os gastos provenientes dos cidadãos recém elegíveis que devem aderir ao sistema, além de desobrigar os estados a manter o Medicaid, atual programa que cobre famílias hipossuficientes, quando observados alguns requisitos. O outro sistema, o Medicare, é voltado a idosos, crianças portadoras de necessidades especiais e pacientes renais em estágio terminal da doença.

O governo argumenta que uma derrota na Suprema Corte iria gerar instabilidade institucional sobre um das grandes ferramentas do Executivo norte-americano: “o poder de gastar dinheiro”, como disse reportagem do jornal The Washington Post sobre a semana de sustentações orais na corte.

Lei volumosa
Se a lei for aprovada uma das bases da arquitetura do sistema de assistência social nos EUA será completamente alterada. A lógica do mercado de planos de saúde no país também será reformulada, pois até então as empresas de seguro competem apenas entre si. Além disso, deve emergir um novo sistema de subsídios federais para auxiliar cidadãos economicamente desfavorecidos para que estes possam arcar com um plano privado se for da sua preferência. Serão ainda remanejados gastos para financiar novas aéreas de pesquisa médica, além da expansão e reformulação dos dois tradicionais programas em curso, Medicare e Madicaid.

Há ainda inúmeras novas regras sobre os mais diversos aspectos do funcionamento da saúde nos EUA, desde como proceder com mães em período de amamentação até impostos pagos por clínicas estéticas que oferecem bronzeamento artificial.

No geral, os juízes da Suprema Corte se dividiram, ao longo desta semana, sobre a necessidade de se revogar toda a lei. A juíza Ruth Bader Ginsburg lembrou que a lei abarca um vasto grupo de disposições que não estão necessariamente ligadas ao seu núcleo e nem com os aspectos contestados judicialmente. “Há tantas coisas nessa lei que são inquestionavelmente bem formuladas. Por que então solicitar ao Congresso que tudo seja refeito?”, disse Ginsburg na quarta-feira.

O conteúdo da lei é volumoso, ocupando ao todo 2.700 páginas. O juiz Antonin Scalia observou, também na quarta-feira, as dificuldades de revisar a lei em sua integridade. Falando a Ginsburg, Scalia disse que seria irreal julgar a lei como um todo. “Você realmente quer que nos debrucemos sobre essas 2.700 páginas?”, disse o juiz, de acordo com a transcrição dos audios. “Não seria totalmente irrealista analisarmos esse diploma gigantesco, item por item, para determinar se o Congresso a adotou na inobservância de suas atribuições?”, questionou.

O tabloide americano semanal de assuntos da Justiça, o The National Law Journal, observou que, na quarta-feira à tarde, após os três dias de sabatina, o destino da lei ainda era incerto. “O destino da lei está mais incerto do que nunca”, comentou a correspondente veterana do NLJ, ao fim da última audiência, em breve comentário gravado, da sede da Suprema Corte, para posterior transmissão online.

Como não costuma ser diferente, os dois lados da batalha ouviram perguntas formuladas pelos juízes que foram descritas como “duras”, “agressivas” e “céticas”. O estilo e a performance dos advogados e membros do governo que se alternaram respondendo o questionamento dos justices também foi amplamente avaliado por analistas e especialistas na cobertura jornalística da Suprema Corte, sobretudo por veículos voltados para a advocacia e Justiça.

A "semana histórica da Suprema Corte” colocou também de lados opostos dois pesos-pesados da advocacia, acostumados a suportar o “tranco” promovido pelos juízes do alto tribunal. Não foi a primeira vez que Donald Verrilli Jr. e Paul Clement estiveram atuando em lado opostos mesmo em questões envolvendo saúde pública e mercado de seguros na Suprema Corte, mas, sem dúvida, é o caso mais importante de ambos junto ao tribunal. Verrilli é procurador-geral dos Estados Unidos, responsável por representar o governo na Suprema Corte. Já Clement é sócio da banca Bancroft, de Washington, e representa os 26 estados que questionam a constitucionalidade do “Obamacare”.

Outros advogados também se alternaram, falando contra e a favor de aspectos distintos da lei durante os três dias. Um dos mais renomados nomes da advocacia dos EUA, presente no plenário da Suprema Corte esta semana, foi H. Bartow Farr III, da banca Farr & Taranto, de Washington.

Farr ficou incumbido de defender a decisão da 11ª Corte de Apelação do Distrito de Columbia, que julgou por inconstitucional a cláusula da lei que torna compulsória a cobertura médica nos EUA. Descrito como “advogado de advogados”, o próprio fez questão de afirmar que era o único não-expert na lei da saúde de Obama presente entre as estrelas da advocacia que se apresentaram aos juízes.

“Tenho certeza que ele leu tudo o que existe sobre essa lei. O que ele não gostaria é que pensassem que pode ser influenciado por pessoas com agendas políticas pré-estabelecidas”, disse Joseph Onek, experiente advogado de Washington, em depoimento feito por conta da participação de Farr no caso.

“Farr é um advogado de advogados, não é um advogado político e sequer um advogado de Washington”, disse Onek justo quando a imprensa americana começou a publicar perfis de Farr em razão de sua participação na “semana histórica”.

O resultado do julgamento é esperado para sair até o fim do semestre quando a corte entra em recesso. De acordo com o analista de assuntos legais da CNN, Jeffrey Toobin, os juízes, na quarta-feira, deram a entender que podem escolher por invalidar separadamente certos dispositivos da lei sem que para isso a rejeitem como um todo. Porém, para Toobin, invalidar apenas os artigos questionados ainda assim colocaria a viabilidade do Affordable Care Act em risco.

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