Ameaça à toga

"O sistema é complicado porque as leis são complicadas"

Autor

30 de outubro de 2011, 8h50

Mailson Santana
É preciso oferecer ao juiz a segurança que ele precisa. A maneira como fazer isso é que complica a proposta. A desembargadora Maria Helena Cisne, presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que abrange o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, já sentiu na pele as dificuldades inerentes à segurança do juiz. Foi ameaçada quando juíza e, anos depois, quando assumiu a corregedoria do Tribunal.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico para o Anuário da Justiça Federal, a desembargadora contou que, quando juíza, assumiu um caso envolvendo uma fraude bilionária no INSS. Por conta disso, passou a ser ameaçada. “Na época, colocaram dois agentes na minha casa. O que adianta dois agentes se eu tenho sete filhos e saio para trabalhar?” O jeito encontrado pela Polícia Federal foi usar um carro comum, com várias placas, de números inexistentes, e trocar aquele que a juíza utilizava. “Eu ia deitada atrás do carro e a cada dia ele fazia um caminho diferente. Passei nove meses desse jeito”, contou. “Eu era uma juíza ameaçada. E quando há vários, como é que faz? É preciso um contingente muito grande para cuidar 24 horas de uma pessoa.”

Maria Helena Cisne também contou dos projetos que tem para o tribunal. Um é construir um novo espaço para abrigar 27 desembargadores — além de outros 20 previstos para ingressar no tribunal nos próximos cinco anos. O outro é a implantação do processo judicial eletrônico. Por fim, quer intensificar a conciliação. “Se eu conseguir isso, já posso partir tranquila, fiz o que eu queria: fui juíza, cheguei à Presidência do Tribunal e, na Presidência, consegui as três coisas que eu me propus a fazer.”

A desembargadora, de voz baixa e fala pausada, pode dar uma impressão totalmente equivocada para quem não a conhece. Quando se depara com uma situação que a deixa indignada, muda a expressão e o tom de voz. “Infelizmente nós ainda temos muitos problemas. Não sobra dinheiro para fazer um sistema penitenciário digno. E não sobra porque roubam tudo antes de chegar lá. Toda hora tem um roubo”, diz, demonstrando incoformismo.

Nascida no Espírito Santo, filha de fazendeiro, a desembargadora conta que via seu pai resolvendo os problemas que os colonos tinham, até mesmo briga de marido e mulher. “Foi observando meu pai que eu resolvi ser juíza”, diz. O pai queria que ela fosse professora e a desembargadora chegou a estudar para isso. Depois, continuou os estudos em Vitória. Mudou-se para o Rio de Janeiro e fez concurso público.

“Comecei a trabalhar em coletoria, local onde as pessoas iam pagar os impostos. Depois fiz concurso para fiscal e passei. Fui trabalhar no Conselho de Contribuintes e crescendo na carreira. Até que resolvi fazer concurso para o Ministério Público Federal, porque eu não gostava de ser fiscal. Mas eu ganhava muito bem nessa época, porque os fiscais tinham participação na arrecadação do Estado. Fiz concurso para ganhar um terço na Procuradoria da República. Eu gostava muito. Depois, fiz concurso e passei a ganhar menos também na magistratura.”

Leia a entrevista

Conjur — Quais são os projetos da sua gestão para o Tribunal Federal da 2ª Região?
Maria Helena Cisne — Eu estou no final da carreira, a dois anos de cair na compulsória e vim exercer uma função que, realmente, não tem muito a ver comigo. Eu gosto mesmo é de julgar. Mas a gente precisa aprender a enfrentar os desafios e correr em busca dos sonhos. E eu sempre tive o sonho de construir um Tribunal. Estou lutando para isso e já dei um grande passo nesse sentido. Já conseguimos a aprovação para a construção e o terreno. Em todas as outras regiões, os prédios dos Tribunais são prédios construídos e preparados para o Tribunal. O daqui foi um arranjo. Está muito apertado e com problemas.

Conjur — Onde será o novo Tribunal?
Maria Helena Cisne — Próximo à passarela do samba. Nosso terreno é de frente para avenida Presidente Vargas. Eu acho que vai ficar muito bom. Aquela área está valorizando e nós vamos fazer concursos de projetos. Essa obra não será para que eu usufrua dela. Mas acho muito bom saber que o Tribunal um dia vai ter o seu próprio prédio. Outra questão pela qual estou lutando é a do processo judicial eletrônico. Se Deus quiser, nós conseguiremos implantar um processo eletrônico de forma a dar mais agilidade à Justiça. E meu outro sonho é conseguir fomentar ao máximo a conciliação. Se eu conseguir isso, já posso partir tranquila: fui juíza, cheguei à Presidência do Tribunal e, na Presidência, consegui as três coisas que eu queria. Tive os filhos que eu queria e os netos que os outros quiseram. E, terminando meu tempo no tribunal, pretendo ir para a literatura, que eu gosto muito.

Conjur — Como juíza, a senhora atuou em casos importantes. Como foi essa fase?
Maria Helena Cisne — Quando ingressei na Justiça, nós estávamos discutindo o Sistema Financeiro da Habitação. Todos os juízes, com a exceção de dois, estavam impedidos de julgar por serem mutuários. Recebi, na época, quatro mil processos a mais do que os outros. Foi uma luta danada. A gente não tinha computador. Eu fiz uma sentença longa, de 53 laudas, em que abarquei todas as questões que eram discutidas na maioria dos processos. Só trocava a ultima folha do relatório e do processo. Fazia audiências coletivas com 70, 80 pessoas. Hoje, esses processos estão sendo objetos de acordo. Houve outras ações que eu achei muito importante, como uma envolvendo o INSS.

Conjur — Como foi essa?
Maria Helena Cisne — Eu consegui aperender os bens dos fraudadores. No início, quando foram criados, os TRFs tinham 14 juízes. Eu não subi para o TRF na primeira composição. Ficamos dois juízes na primeira instância. Um dia, era tarde, eu ainda estava trabalhando, chegou o superintendente do INSS e me contou que tinha havido uma fraude de 20 bilhões de cruzeiros, com envolvimento de perito e juiz, e que eles já tinham levantado o dinheiro. Ele me mostrou as ordens de pagamento e contou que havia entrado com ação cautelar. Pensei comigo e achei melhor não pegar o processo, porque, quatro anos antes, eu havia feito uma excursão com um dos fraudadores. Depois, decidi que não me daria por suspeita. Imaginei que os juízes novos não teriam peito para segurar esse processo, não conheciam ninguém além de não terem experiência. Na época, eu falei: “Vou ficar com esse processo. E, se esse cara fez essa sujeira, ele vai se arrebentar comigo.” Como juíza antiga, liguei imediatamente para o presidente do Banco Central, identifiquei-me e expliquei que estava acontecendo uma fraude de 20 bilhões. Determinei que bloqueasse a conta de todos ainda naquele dia que, no seguinte, meu ofício chegaria às mãos dele. Ele já conhecia minha voz, já me conhecia de nome, e fez. Liguei para o corregedor do Estado, expliquei a situação e pedi que mandasse avisar todos os cartórios para não vender bem nenhum daquela turma. Enquanto eu não dei a sentença nesse processo, eu sofri muito, porque fui ameaçada de morte, recebia telefonemas em que me diziam um monte de besteira, falavam dos meus filhos. Depois da sentença, o processo foi para o estado e aquelas pessoas foram condenadas. Com base na minha ação, o caso se transformou em um processo criminal e eles foram presos, além de conseguirmos recuperar quase todo o dinheiro.

Conjur — A senhora contou que já foi ameaçada. Como avalia a segurança dos juízes federais hoje?
Maria Helena Cisne — A segurança dos juízes sempre foi um caso muito sério. O responsável pela segurança do juiz federal é a Polícia Federal, que não tem contingente suficiente. Quando começaram a me ameaçar, por conta desse caso do INSS, ligavam para minha casa no meio da noite. Não tinha bina ainda. E eles ficavam falando dos meus filhos. Na época, colocaram dois agentes na minha casa. O que adianta dois agentes se eu tenho sete filhos e saio para trabalhar? A Polícia Federal me arranjou várias placas, de números inexistentes, e os agentes iam trocando a placa do carro em que eu andava. Eu ia deitada atrás do carro e a cada dia ele fazia um caminho diferente. Passei nove meses desse jeito. A segunda vez que precisei foi na época da corregedoria quando descobri coisas muito graves mesmo. Foi pior, porque além das ameaças, havia também cartas anônimas dizendo coisas absurdas a meu respeito. Bandido é assim, quando não tem nada concreto, eles tentam atacar a moral. Foi um esquema montado para me colocar na corregedoria, porque, antes, um colega juiz havia arranjado um emprego para um dos meus filhos. A intenção era enrolar o meu filho e eu. Mas eles se esquecem que eu sou carne de pescoço. Foi nessa época que meu filho sofreu um atentado, com quatro tiros, enquanto vinha do Espírito Santo para o Rio. O ministro da Justiça mandou que me dessem segurança 24 horas por dia.

Conjur — Eles a acompanhavam em todo lugar?
Maria Helena Cisne — Sim. Se eu ia para uma festa, eles iam comigo, no cinema, a mesma coisa. Achei muito difícil. Mas eu era uma juíza ameaçada. E quando há vários, como é que faz? É preciso um contingente muito grande para cuidar 24 horas de uma pessoa. Eu já pedi tanto ao presidente do STJ como ao presidente do CNJ, carro blindado para os juízes e que não tenha placa oficial. Do contrário, não adianta. Eu sei que tem que resolver essa questão da segurança, porque a gente vai incorporando a violência no nosso cotidiano, acostumando com a violência nas ruas, a violência da carga tributária altíssima, todo tipo de violência. Na época das eleições, eu mandei 16 milicianos para as catacumbas. Os milicianos, agora, estão ameaçando meu filho [que é agente penitenciário], em Campo Grande [MS]. Tem três meses que eu estou pedindo a transferência dele. E eu ainda não consegui. As coisas são difíceis de resolver. Fala-se muito e faz-se pouco. A verdade infelizmente é essa.

Conjur — A senhora atuava em Turma com especialidade penal. Acha que a burocracia judiciária dificulta o exame de mérito dos processos que envolvem crime contra a ordem financeira?
Maria Helena Cisne — O nosso sistema judiciário é complicado, porque nossas leis são complicadas. Outro dia eu tomei um susto quando me disseram que o Código Penal admite a possibilidade de 57 recursos. Quem pratica crimes financeiros leva muito dinheiro e pode pagar advogados muito bons. E advogado muito bom sabe usar dos argumentos e dos expedientes para não deixar o processo andar. Acho que a PEC dos Recursos, do ministro Peluso, em que o processo transita em julgado no segundo grau, vai ajudar muito.

Conjur — É verdade que só se prende pobre?
Maria Helena Cisne — Não é que só se prende pobre. O pobre, normalmente, tem um advogado mais fraco, não sabe defender da forma que os grandes sabem. É aí que deveria entrar a justiça gratuita. Infelizmente nós ainda temos muitos problemas. Não sobra dinheiro para fazer um sistema penitenciário digno. E não sobra porque roubam tudo antes de chegar lá. Toda hora tem um roubo. Antigamente, eram milhares, agora se roubam milhões. Eu já vi roubo até de bilhões. Um país riquíssimo, lindo, que tem um monte de coisa boa, não vai para frente, porque roubam tudo pelo caminho. Todos querem que a Justiça funcione. Decidiram criar os Juizados Especiais, que está completando 10 anos agora. Foi uma panacéia.

Conjur — Por que uma panaceia?
Maria Helena Cisne — Porque criaram os juizados e não criaram cargo de juiz nem de funcionário para os juizados. A gente pegou o Judiciário, que já era moroso, e dividimos por dois. Se não fazem direito como é que querem que funcione? Eu rezo para Deus enviar seus anjos e modificar o pensamento desses homens do mundo que fazem a diferença, para ver se eles agem em prol do povo. Se isso não acontecer, não vai modificar. No Brasil, estão tentando criar outro imposto. A gente já trabalha cinco meses para pagar imposto. E o dinheiro que está no bolso dos bandidos. É difícil concertar. Precisa de mais juízes, funcionários, tecnologia para o Poder Judiciário. Mas é uma dificuldade louca para se conseguir as coisas. Nós não vamos para frente mais depressa, porque o dinheiro vai para outro lugar. Não são só os crimes financeiros. É também o tóxico, o roubo, o dinheiro desviado para o caixa 2, 3, 4, se procurar tem muito caixa por aí.

Conjur — O rigor contra esses tipos de desvio, principalmente do dinheiro público, deveria ser maior do que com os demais crimes?
Maria Helena Cisne — Não dá para comparar um homicídio, um estupro de uma criança, com um crime financeiro. São coisas distintas. Outro dia, o Plenário [do TRF-2] queria diminuir a pena de quem falsifica remédio com o argumento de que deveria ser a mesma de quem vende droga. De jeito nenhum. Quem compra e usa droga sabe que está se arrebentando, foi uma opção dele. É diferente daquele que está lutando para viver, toma remédio na expectativa de que, ao fazer isso, sua saúde vai melhora, e, no entanto, o medicamento é falsificado. O falsificador está enganando, está piorando a situação do outro. Esse merece uma pena muito maior, no meu entender. Nesse caso, eu fiquei vencida. Não se pode, também, comparar o crime cometido por uma pessoa que teve educação, oportunidade, amor, tudo, com aquele pobre, infeliz, que roubou, às vezes, para comer. Tem uma parte dos evangelhos que diz: “Daquele que muito foi dado, muito será pedido.” Aquele que muito tem, precisa pagar mais caro, sim.

Conjur — Qual a avaliação que a senhora faz das operações da Polícia Federal iniciadas no Rio? Algumas, que começaram em São Paulo, tiveram suas provas anuladas pelo STJ, caso da Castelo de Areia e Satiagraha. Que conclusão se pode tirar?
Maria Helena Cisne — Eu não sei te responder, não parei para pensar nisso. Eu acho a Polícia Federal muito séria. Além de eles terem cuidado da minha segurança por dois anos, tenho contato com vários superintendentes. Eu sei que há problemas como em todos os locais. Nós somos seres humanos, e dentre nós há os que não entenderam o seu papel nesse mundo. Mas, em termos quantitativo, acho que há poucos policiais federais envolvidos em problemas. Nós, do Judiciário, também já tivemos. E sei que o mal que esse pequeno grupo faz é tão grande que parece uma coisa de outro mundo. No caso daqui, saiu como se o Tribunal fosse um balcão de negócios. Havia alguns que não entenderam a importância do papel de juiz, andaram fazendo besteiras e pagaram — ou estão pagando — por isso. Isso quer dizer que os outros juízes não são bons? De maneira alguma; são juízes magníficos.

Conjur — O Tribunal está com projeto para aumentar o número de desembargadores. Caso ele seja aprovado, como o tribunal pretende organizar os novos membros, aumentando o número de turmas ou incluindo-os nas turmas já existentes?
Maria Helena Cisne — No projeto, são mais quatro por ano, em um total de 20 novos integrantes. Se Deus quiser, em cinco anos, nós já teremos nosso novo prédio. Por enquanto, alguns andares que abrigam a parte administrativa do tribunal darão lugar para a criação de quatro gabinetes já no próximo ano.

Conjur — No Tribunal, há muitos juízes convocados. Essa convocação prejudica a consolidação da jurisprudência?
Maria Helena Cisne — Atrapalha, porque, dependendo da composição da turma, a jurisprudência muda. Isso não é bom não. Além disso, o primeiro grau está precisando de juízes. Nós estamos com 48 vagas de juízes. Meu pai sempre dizia que o homem é obrigado a lutar, não é obrigado a vencer. Vencer depende dos outros. Eu luto; estou conseguindo vencer em alguns pontos. Os desafios estão aí para serem enfrentados.

Conjur — O Tribunal tem procurado atender as metas de produtividade? A senhora acha que elas prejudicam a qualidade das decisões?
Maria Helena Cisne — Tem procurado. Mas duas subsecretarias que estão atrapalhando nosso sistema, porque não estão publicando os acórdãos. Quanto à qualidade das decisões, eu acho que não. Nossos funcionários e juízes são muito bons. Talvez prejudique um pouquinho, mas acho que vale a pena. Não dá para uma pessoa esperar 30 anos pelo resultado de um processo.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!