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O Exame de Ordem, os cursos de Direito e o Urso Balú

Autor

  • Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

    é livre-docente e professor associado do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Membro do Comitê de Ensino Jurídico e Relações com Faculdades do Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados).

28 de outubro de 2011, 18h32

"Necessário, somente o necessário, o extraordinário é demais." (Urso Balú desenho “Mogli”, de Walt Disney).

Duas iniciativas caminhavam paralelas, ambas guardando dentro de si o perigoso germe da mediocridade, capaz de destruir vidas e bens. A primeira dizia respeito a uma ação perante o STF com o objetivo alcançar dispensa do exame de qualificação que a Ordem dos Advogados do Brasil realiza como condição para o exercício da nobre e imprescindível profissão de advogado.

Reconhecida a constitucionalidade do artigo 5º da Constituição Federal, o STF rechaçou a pretensão do autor sob o fundamento de que não se nega com a exigência do exame o direito ao trabalho, mas se seleciona, isto sim, quem pretende trabalhar como advogado. O requisito da qualificação profissional estabelecido em lei encontra-se precisamente atendido e isto só não vê quem não quer ou a quem não convém, ideológica ou economicamente. Esperemos que tenha se posto a definitiva pá de cal nessa insana pretensão, cabendo à OAB aperfeiçoar continuamente o seu processo de seleção objetivando um mercado cada vez mais complexo exigente.

Poder-se-ia até pensar, segundo modelos do direito comparado, em acesso escalonado à carreira, devendo o advogado aprovado no exame inicial ver sua atuação restringida a certo tipo de casos, para os quais não poderia, por exemplo, trabalhar sozinho, mas fazê-lo sob a tutela de um advogado mais experiente que já se encontrasse em um patamar superior na carreira. E a progressão se daria mediante comprovação de experiência adquirida. É uma ideia que se procurou introduzir no Brasil de certa maneira e sem sucesso na figura do antigo solicitador acadêmico.

A outra iniciativa refere-se ao famigerado projeto de lei voltado para flexibilizar a qualidade do corpo docente das universidades.

Seus defensores parecem desconhecer uma realidade notória, ou seja, que a grande maioria dos cursos de direito do País têm péssima qualidade e formam péssimos bacharéis. Como vimos acima, tais bacharéis para se erigirem à condição de advogados precisam por enquanto superar as dificuldades apresentadas pelo exame obrigatório.

No que diz respeito ao magistério superior, observe-se que nestes dias a USP comemora a inigualável marca de cem mil títulos de pós-graduação por ela conferidos durante muitos anos em seus inúmeros cursos. Esta é sua contribuição para a melhoria da qualidade do ensino universitário no Brasil, que divide com muitas outras entidades da espécie. Os mestres e doutores oriundos dessas universidades adquirem a capacidade da transmissão do conhecimento a outras gerações, dentro de um processo de contínuo aperfeiçoamento.

Muitos pós-graduados não seguem a carreira universitária, mas dão enorme contribuição qualitativa nos diversos setores de sua especialidade. Outros passam a habitar as salas de aula, que para os vocacionados se torna o lugar onde desenvolvem o prazer de aprender ensinando. É um verdadeiro sacerdócio diante de muitas circunstâncias negativas que cercam o magistério, como todos sabem.

Mas pagar um mestre ou um doutor custa caro (ou melhor, menos barato) e o que se deseja com essa pretensão é deixar em salas de aula os chamados especialistas, sem título de pós-graduação e que ganham bem menos do que os professores titulados. Muitos deles são até ótimos mestres, mas a grande maioria não recebeu as bases pedagógicas e científicas mínimas para o exercício da atividade do ensino. Trata-se de desmerecer quem se aplicou durante muito tempo para ser mestre ou doutor, em detrimento do interesse geral.

É notório que a proliferação indiscriminada de cursos de direito se dá como resultado de fatores sociais, educacionais, políticos e econômicos. Neste último caso as escolas particulares disputam acirradamente um mercado de centenas de milhões de reais anuais, que inclui as tetas do governo, concernentes aos recursos do Prouni. É um big business¸ ninguém nega. Não há qualquer problema em se ganhar dinheiro com a educação, mas é preciso que em contrapartida ao pagamento das anuidades o aluno receba um produto de boa qualidade. Para isto muitas vezes se torna necessário levar o aluno a refazer o seu curso médio, dando-lhe as bases mínimas necessárias para lidar com o mundo do direito.

O processo resulta de um círculo vicioso: alunos pobres que não podem frequentar boas escolas (que saudades dos bons tempos do ensino público da década de sessenta do século passado), estudando com dificuldades imensas, chegam aos trancos e barrancos no limiar da universidade e conseguem nela ingressar porque dentro de um universo muito amplo de escolas sofríveis o processo de seleção é uma verdadeira farsa. Só não entra quem não quer ou não pode pagar. E uma vez dentro, um dia saem formados. E são bacharéis que no caso dos cursos de direito poderiam chegar ao exercício da advocacia sem saber ler, compreender, pensar e escrever, caso o STF não tivesse barrado aquela esdrúxula ação judicial.

Em qualquer dos dois casos trata-se da síndrome do Urso Balú, que cantava o verso acima transcrito para o seu amiguinho Mogli. Para que fazer o extraordinário, se basta o necessário? Para que se esmerar no aprendizado se ele não será exigido para exercer a advocacia? E veja-se que até mesmo o necessário é dispensável quando alunos podem ser aprovados por aproximação, com notas inferiores à média mínima. É o caso da USP que aprova automaticamente o aluno que tem média 4,75, abaixo do mínimo que é 5. Um espanto, como diria alguém. O que ainda salva a USP é que ela conjuga três fatores extremamente favoráveis: bom corpo docente (a carreira começa pelo título de doutor, mediante concurso público), bom corpo discente (que venceu a enorme barreira do vestibular) e o mercado de trabalho onde não têm lugar os medíocres. Experimente alguém levar para uma entrevista de emprego em um bom escritório um currículo escolar recheado de aprovações por aproximação, ou mesmo com média baixa.

Ultimamente em nosso país quem se destaca em qualquer setor pelas suas qualidades pessoais logo é acusado de integrar a zelite, um tipo de crime em certas esferas da nossa sociedade. O bom é ser povão. Bem, a China começou praticamente do zero há poucos anos a por em prática um gigantesco processo educacional e já tem algumas universidades classificadas entre as melhores do mundo. Todo pai chinês quer que o filho entre para a zelite, deixe de ser povão. Enquanto isto, temos na USP a nossa melhor universidade, a qual no ranking internacional ocupa o modesto 175º lugar. E ainda assim é a melhor da América Latina, ou seja, em terra de cego, quem tem um olho é rei.

Por enquanto, então, em nossas plagas, somente o necessário, o extraordinário é por demais! Mas o nível está baixando! Cuidado!

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    é livre-docente e professor associado do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Membro do Comitê de Ensino Jurídico e Relações com Faculdades do Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados).

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