Republicanos ou Publicanos?

Queremos Portugal republicano ou meramente publicano?

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17 de outubro de 2011, 13h23

Haverá ainda alguma coisa a dizer sobre a República?

As comemorações oficiais, e as anti-comemorações monárquicas, com direito a troca de bandeira em edifícios públicos e outras acções de propaganda (graves, mas redimidas pelo bom humor), não esgotaram já o tema?

Que interesse pode ainda ter essa questão de regime, quando pesa sobre nós o permanente espectro não se sabe bem do quê (mas nada de bom) decorrente de, aparentemente, alguns terem gasto o que não era deles, tendo nós agora que pagar, não se sabe bem como?

A verdade é que, como muito argutamente observou Chesterton, mesmo quando Roma arde é preciso estudar hidráulica. É o que se passa com a República.

Temos de continuar a reflectir sobre a nossa II República (não III República, porque o Estado Novo não foi República, mas ditadura), e só reflectindo é que se poderá agir para, renovando-a, a concretizar. Porque ninguém creia que ela foi concretizada – basta ler a Constituição e comparar com a realidade.

Só concretizando a Constituição se poderá então julgar a II República. Alguns pretendem uma IV República (curiosamente não pedem uma III). Mas para quê mudar de figurino se este ainda não foi devidamente estreado? Ao mesmo tempo que alguns clamam por nova República (ou uma restauração) na verdade visa-se impedir que a II República seja ela mesma: com o retrato que dela está na Constituição.

Cem anos se celebraram da implantação da I República, que, como foi abundantemente dito, não pôde obviamente ser um regime perfeito, mas foi incomensuravelmente mais justa e livre, e até mesmo financeiramente eficiente (chegou a ter o tão invejável superavit), que as nossas monarquias.

A sua promessa social não conseguiu, é certo, efectivar-se, mas progrediu-se imenso na educação, e deram-se alguns passos noutros domínios (por exemplo, no domínio da família), conforme o agonismo social, a conjuntura internacional e as disponibilidades do tesouro foram permitindo.

Concede-se que os governos se sucederam rapidamente, mas tal não é tão grave quanto o querem fazer crer os incensadores da pretensa estabilidade salazarista, esquecendo por um lado que, na época, as coisas não dependiam tanto do governo (e disso havia então plena consciência, ao ponto de ser afirmado na imprensa), e, por outro, que o próprio Salazar, exemplo magno de estabilidade, abatia os seus ministros, despedindo-os frequentemente, e por via de um simples cartão.

Outra das grandes críticas à I República é a que deriva da questão religiosa.

Estudos novos, e olhares mais tolerantes de parte a parte já compreenderam que o fanatismo anticlerical foi localizadamente de certos grupos, que os governos rapidamente procuraram as pazes com a Igreja e que, afinal de contas, esta viria a ganhar com a sua separação do Estado, porque se encontrava, afinal, sob tutela da

coroa durante o período monárquico. Acresce que a separação das coisas de César das de Deus é lição original do evangelho cristão, curiosamente esquecida por alguns.

Claro que houve abusos, vexames a membros do clero, e alguns perpetrados à sombra da lei. Mas a História viria a provar que os herdeiros da República aprenderam a lição.

E nos tempos difíceis de 1975, muitos republicanos e católicos estiveram de mãos dadas pelas liberdades. Esses momentos fundariam afinal a nossa II República. Laica, certamente, e exemplo de boa convivência entre duas entidades que jamais tiveram existência pacífica ao longo de toda a monarquia – alguns reis foram mesmo excomungados, e pelo menos um foi-o duas vezes…

A I República e a Constituição de 1911, pela sua prática, legaram assim lições que fomos aprendendo.

Não temos hoje nada a temer em instabilidade governativa, porque, precisamente a lição da que ocorreria na I República (fruto de uma elaboração apressada do texto e da mudança brusca e não consequente de modelo: do presidencialismo para o

parlamentarismo) já permitiu que a vigente Constituição, de 1976, tenha encontrado mecanismos correctivos de governabilidade. E podemos afirmar sem vergonha o nosso Parlamentarismo moderno: não precisamos de lhe chamar, à francesa, “semipresidencialismo”.

Nada igualmente há a temer de radicalismos ideológicos, nem intolerâncias, porque também essas lições já foram também aprendidas.

Contudo um perigo subsiste. A I República caiu pela falta de élan, pela descrença, pelo abatimento, pela apagada e vil tristeza em que se afundam os regimes que perdem a alma, porque alguns (nunca todos!) a vendem ao diabo.

Os Estados precisam, obviamente, de finanças sólidas. É tão óbvio que não se entende a monomania financista que ameaça secar em seu torno qualquer outra temática pública. Mas as Repúblicas em especial não podem contentar-se com o valor seguro da moeda. Precisam do mais fundante valor dos valores: de uma ética que, antes de mais pelos políticos, difunda o exemplo das virtudes cívicas.

Não são estas, mais uma vez, recordações da casa dos mortos da Antiga Roma.

São necessidades momentosas e vitais para a nossa República, e para a grande Res Publica européia. Casa comum ainda com algumas cabeças coroadas, é certo, mas que constitucionalmente já adotaram o princípio republicano de governo. E isso é, na verdade, o mais importante: embora poucos o queiram entender.

O esforço a fazer, se queremos ser mesmo republicanos, é muito exigente: antes de mais, educarmo-nos e às novas gerações para a exigência, o rigor, o sacrifício, mas também para o júbilo do serviço à Coisa Pública.

A alternativa é hoje muito simples: queremos um Estado republicano ou um Estado meramente publicano?


Micro-Bibliografia:
CLEMENTE, Manuel, 1810-1910-2010. Datas e Desafios, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009.
FERREIRA DA CUNHA, Paulo, O Essencial sobre a I República e a Constituição de 1911,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011.
____, Para uma Ética Republicana, Lisboa, Coisas de Ler, 2010.
RIBEIRO, Renato Janine, A República, 2.ª ed., São Paulo, Publifolha, 2008.
SALGADO DE MATOS, Luís, Tudo o que Sempre Quis Saber sobre a Primeira República. Em 37 mil palavras, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2010.
____, A Separação do Estado e da Igreja, Lisboa, Dom Quixote, 2011.

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