Liberdade de Expressão

Marchas da maconha e os limites do direito de reunião

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12 de outubro de 2011, 15h15

Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente em junho deste ano a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 187, ajuizada pela Procuradora-Geral da Republica em exercício, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, contra a proibição de manifestações públicas em defesa da discriminação do uso de drogas, como é o caso da Marcha da Maconha.

O pedido formulado na ADPF 187 é a subsunção do artigo 287[1] do Código Penal à Constituição, pela via da técnica da interpretação conforme, para “excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos” (p. 14 da inicial).

A pretensão declaratória fundamentou-se nos direitos de liberdade de expressão (art. 5º, incisos IV e IX, e 220 CF) e de reunião (art. 5º, inciso XVI, CF).

O relator da matéria, Ministro Celso de Mello, concluiu em seu voto que:

a defesa, em espaços públicos, da legalização das drogas, longe de significar um ilícito penal, supostamente caracterizador do delito de apologia de fato criminoso, representa, na realidade, a prática legítima do direito à livre manifestação do pensamento, propiciada pelo exercício do direito de reunião, sendo irrelevante, para efeito da proteção constitucional de tais prerrogativas jurídicas, a maior ou a menor receptividade social da proposta submetida, por seus autores e adeptos, ao exame e consideração da própria coletividade (pp. 57-58).

A decisão do STF franqueou, por conseguinte, a realização da Marcha da Maconha, e de eventos públicos similares em favor da legalização do uso de drogas, desde que, em vez de fazerem apologia do consumo de entorpecentes ilegais, defendam tão somente a descriminalização do uso dessas substâncias[2].

Em outras palavras, é possível derivar da decisão que quaisquer manifestações públicas em favor de ato tipificado como crime, seja qual for, não consubstanciam apologia de crime ou ato criminoso, desde que se restrinjam ao embate político contra a lei, e não descambem em promoção direta de condutas contrárias à lei.

Nota-se que o Supremo Tribunal Federal adotou uma decisão frouxa, genérica, que pode trazer graves problemas para a ordem pública. Se o direito brasileiro admite que manifestações públicas podem ser organizadas para pedir a revogação de qualquer norma jurídica vigente, como se deduz do acórdão em questão, o Estado não poderá intervir, por exemplo, se grupos de direita se organizarem para pedir a revogação das normas que segundo o próprio Supremo Tribunal Federal impedem, por exemplo, o racismo anti-semita.

No julgamento do Habeas Corpus 82424, a corte havia firmado o entendimento de que os impropérios proferidos por Siegfried Ellwanger contra os judeus configuraram crime de racismo.

É interessante destacar o seguinte trecho da ementa:

(…) 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo. 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma. 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial (…)[3] (grifou-se).

A ementa do acórdão menciona a antijuridicidade da prática de estimular e propagar a segregação racial, no que parece significar que essa prática se subsume no tipo penal que sanciona o racismo.

Caso se leia, porém, o voto do relator da ADPF 187 de maneira rígida, pode-se concluir que o Supremo Tribunal Federal não condenaria a conduta de Siegfried Ellwanger se, em vez de desferir diretamente seus impropérios contra a comunidade judaica, ele defendesse a descriminalização desta conduta.

A liberdade de expressão e o direito de reunião são garantias estruturantes da democracia e, por sua posição estratégica no ordenamento jurídico brasileiro, devem-se revestir-se de máxima efetividade.

A questão é que existem posições jurídicas igualmente importantes que podem ser abaladas se aqueles direitos fundamentais forem exercidos de forma abusiva.

A dificuldade de se estabelecer um limite razoável, a partir de critérios claros e lógicos ajudam a explicar por que o Supremo Tribunal Federal julgou a ADPF 187 de forma tão mecânica e superficial.

É de se esperar que a corte volte a se debruçar sobre o tema dos limites da liberdade de expressão e do direito de reunião para produzir um acórdão que corresponda à complexidade do problema.

De qualquer forma, o tribunal solucionou a questão de forma salomônica, porque pior seria impor quaisquer limites a essas liberdades sem uma longa e profunda reflexão.


[1] Apologia de crime ou criminoso

Art. 287 – Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime:

Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.

[2] A íntegra da decisão, ainda não publicada, é a seguinte: “O Tribunal, por unanimidade, rejeitou as preliminares de não-conhecimento da argüição e a de ampliação do objeto da demanda. No mérito, também por unanimidade, o Tribunal julgou procedente a argüição de descumprimento de preceito fundamental, para dar, ao artigo 287 do Código Penal, com efeito vinculante, interpretação conforme à Constituição, “de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos”, tudo nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso. Impedido o Senhor Ministro Dias Toffoli. Ausentes o Senhor Ministro Gilmar Mendes, representando o Tribunal na Comissão de Veneza, Itália, e o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, licenciado. Falaram, pelo Ministério Público Federal, a Dra. Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira e, pelos amici curiae Associação Brasileira de Estudos Sociais de Psicoativos – ABESUP e Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, respectivamente, o Dr. Mauro Machado Chaiben e o Dr. Luciano Feldens. Plenário, 15.06.2011” (http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoTexto.asp?id=3005994&tipoApp=RTF, acesso em 19.6.2011).

[3] Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, Habeas Corpus nº 82424, Rel. Maurício Corrêa. Julgamento: 17.9.2003. DJ 19.03.2004, p.17.

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