Retribuição à Academia

Obra preenche vazio deixado pelas escolas de Direito

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10 de outubro de 2011, 15h09

Certa vez o ConJur publicou que, sendo Gilmar Mendes juiz e professor, o professor ajuda muito o juiz (pela alta dose de conhecimentos vindos da Academia, que enriquecem a fundamentação das decisões), mas o juiz só atrapalha o professor, em razão das limitações inerentes ao exercício desse alto cargo.

Com a publicação de Jurisprudência Constitucional — 2002-2010 (clique aqui para comprar a obra), o ministro Gilmar Mendes presta enorme retribuição à Academia, com uma coleção de suas intervenções jurisdicionais (vencedoras ou vencidas) em seus primeiros oito anos na Suprema Corte. O volume vem organizado com um resumo dos casos selecionados, seguido das respectivas íntegras, o que torna de fácil pesquisa e resgate as matérias versadas.

No Brasil, não temos esse hábito salutar de estudar a atuação individual de ministros em exercício, nem o de publicar uma coletânea de suas decisões. Tivemos publicações de antigos magistrados, como o clássico Um Triênio de Judicatura, do ministro Philadelpho de Azevedo (que é da década de 50) e de Do Outro Lado da Tribuna, de Técio Lins e Silva, (relato de sua experiência de dois anos no Conselho Nacional de Justiça). Sobre um passado mais remoto existe a coleção Memória Jurisprudencial, da Livraria do Supremo.

Os americanos são muito mais interessados nisso do que nós, sendo comuns, em suas Faculdades de Direito, o estudo do perfil constitucional dos integrantes da Suprema Corte, durante sua judicatura. A propósito, é curioso notar certos bacharéis — certamente não incluídos entre os de alguma vivência no STF, mesmo que seja aquém dos cancelos — dizem não ser ela “uma Corte” porque seus membros “não negociam soluções”, como se, para dar-se o título de “Corte” o Tribunal precisasse ser um Parlamento, que é onde soluções costumam ser negociadas. No órgão máximo da Justiça norte-americana os juízes, é verdade, têm mais oportunidade de rever suas opiniões antes da decisão, através de seus famosos memorandos internos. Mas, se aqui temos no STF “onze ilhas”, lá eles têm suas nove ilhas; não fosse assim e não haveria tantas declarações dissenting (votos vencidos) ou concurring (votos vencedores, mas com fundamentação diversa), sendo raríssimas as decisões per Curiam (nas quais não se identifica o relator, para enaltecer ao máximo a unanimidade).

Mas, se lá as escolas de Direito estudam os perfis constitucionais dos Justices, aqui nem sequer a jurisprudência do Supremo é estudada nas Faculdades. Portanto, nada como alguém preencher o vazio com a publicação organizada de suas decisões, não só pelo vetor que elas sinalizam, mas pela densidade de sua fundamentação, que haverá de ser sempre uma indicação para quem quiser estudar o Direito em sua concretização normativa.

Há uma atividade que deveria ser disciplina obrigatória nos cursos jurídicos, que é a crítica de jurisprudência. Ao que eu me recorde, somente o grande Heleno Cláudio Fragoso dedicou-se a isso com regularidade e, quando o Brasil o perdeu, acabou-se a prática benfazeja.

A obra que agora vem a lume traz a possibilidade de ressurreição desse bom exercício, ao mesmo tempo em que constitui inegável manifestação de humildade. Sim, ao dar ao público extra-forense o conteúdo de seus pronunciamentos, o autor se expõe à crítica, a muitas injustiças e, decerto, alguma justiça, pois ninguém é perfeito. A decisão jurisdicional sempre carrega consigo uma opinião pessoal e, de opiniões, pode-se discordar ou concordar. Tratando-se das decisões publicadas agora pelo autor, eu posso dizer que concordo com a ampla maioria, mas tenho também minhas discordâncias, o que é absolutamente usual e em nada diminui minha admiração por quem as adotou.

Durante sua passagem pela judicatura, dizia o ministro Nelson Jobim que a pior coisa que pode acontecer a um Tribunal é ser ele confundido por seus membros com a Academia. Isto é a pura verdade e desse mal Gilmar Mendes nunca padeceu. Conquanto acadêmico de origem, nunca se valeu da cadeira de juiz constitucional para dar vazão a debates teóricos, em desfavor da segurança jurídica.

Duas características chamam a atenção no desempenho da jurisdição de Gilmar Mendes que, embora não inéditas, tampouco são encontradiças. Uma delas é a sensibilidade para entender que as grandes questões constitucionais escondem-se, não raro, atrás de situações corriqueiras e prosaicas da vida cotidiana. Pedro Aleixo, com sua vivência de advogado criminal, temia, num regime de exceção, não o presidente da República, mas o guarda da esquina. Essa é a verdadeira essência da proteção constitucional, como anotam Canotilho e Ferrajoli. A Constituição seria reduzida a um pedaço de papel (como anseiam os nacional-socialistas e abominam os democratas) se ela não fosse levada às esferas mais rasteiras da vida em sociedade, pois é ali que ela ganha energia vital e passa a importar para o cidadão comum, em cuja homenagem ela foi redigida. Uma das claves da interpretação constitucional, o princípio da proporcionalidade (deixemos para a Academia a discussão sobre se existem princípios, se a proporcionalidade é um deles; para a Justiça o importante é que haja proporcionalidade) aparece tanto em altas questões de Estado (como a intervenção federal no Estado-membro de economia mais ativa no País ou o papel do Senado na suspensão da execução de leis declaradas inconstitucionais pelo STF) como em situações mais chãs, qual a obrigatoriedade de pesagem de botijões de gás à vista do comprador ou o mercado de reposição de pneumáticos. E também nas questões bizarras, como o caso dos 9 mil dólares guardados na segurança e sossego do Afeganistão ou da caneta que atira.

A outra característica que marca o desempenho da função de juiz constitucional por Gilmar Mendes é sua capacidade de entender e avaliar a importância, a grandeza e a significação constitucional da jurisdição criminal do Supremo, tão desprezada por alguns. Ao reconhecer que “direitos de caráter penal e processual penal cumprem papel fundamental na concretização do moderno Estado Democrático de Direito” (p. 29) , o autor mostra que compreendeu perfeitamente que a Constituição não pode ficar restrita às alturas, mas só se torna uma realidade quando voltada a atender as realidades do cotidiano, sendo a área criminal a mais sensível às violações. Num momento em que se esboçam críticas a uma das mais belas criações do pensamento jurídico brasileiro, que é a doutrina Pedro Lessa do habeas corpus e reafirmação da importância da jurisdição penal é contribuição de grande relevo.

Vistas essas duas premissas reitoras, resta ver o que de mais significativo há nesses oito anos de jurisdição constitucional. O autor classificou as decisões por assunto. Eu, para esta resenha, prefiro agrupar os comentários pelos requisitos para o exercício dessa atividade sublime que é a de julgar conflitos constitucionais.

O juiz constitucional precisa ter cultura jurídica, independência e isenção, senso de justiça e coragem. Quem não reunir essas quatro condições, não pode se dedicar a essa tarefa. E elas sobejam em Gilmar, como a seguir ver-se-á.

Se um juiz de paz na roça pode solucionar pendências com bom senso e equidade, do magistrado constitucional exige-se que toque por música e leia partituras sinfônicas, daí a importância da cultura jurídica. Nessa área sobreleva a contribuição do autor ao controle de constitucionalidade, tão expressiva que se fala numa “doutrina Gilmar Mendes” de controle de constitucionalidade.

No que diz com o controle concentrado, sua contribuição vem desde bem antes da chegada à Corte, pois é notório seu relevante papel na legislação que rege as ações respectivas. Se, por um lado, nossa Constituição ainda é tímida no assunto – como, por exemplo na limitação excessiva dos possíveis autores dessas ações — por outro representou significativo avanço em relação à ordem decaída, sendo desenvolvida nas leis de regência, às quais a Corte tem dado salutar aplicação.

O fato de não mais se restringir o debate às partes, por via das audiências públicas e da liberal admissão de amici curiæ, revitaliza o processo e traz novas luzes para a avaliação, pelo Tribunal, da questão de mérito objetiva. Desse caráter objetivo e dessa abertura deflui, como conseqüência, a aceitação da causa petendi aberta, libertando o debate constitucional de restrições de forma (ou ao menos de algumas, como se viu na QO-ADI 2.182).

Relevante, também, o papel assumido pela Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, sempre defendida pelo autor, cuja aceitação se dá até mesmo quando existe a possibilidade da utilização de remédio processual subjetivo.

Outro progresso de monta no controle de constitucionalidade foi a dessubjetivização do recurso extraordinário, que trouxe ao controle difuso um caráter objetivo, admitindo até mesmo a admissão de amici curiæ e – pasmem os que vivenciaram o Supremo da ditadura! – causa petendi aberta.

Na ditadura, quando o Tribunal tinha função legislativa para, em seu Regimento Interno, dispor sobre processos de sua competência, criou-se um cipoal de obstáculos ao conhecimento do RE, que o emparedavam na forma mas, nem com o julgamento secreto das argüições de relevância, conseguiu dar ao dito “apelo nobre” a importância que tem hoje, graças – em parte – à cláusula de repercussão geral, mas também ao arcabouço de conhecimentos de pessoas como o autor. E assim vai ganhando vida um novo ramo do processo civil, que é o direito processual do controle constitucional.

Mas nem só de cultura jurídica se faz o juiz Gilmar Mendes. Trata-se de alguém que, inequivocamente, exerce a jurisdição com total independência e imparcialidade. Sim, trata-se de um magistrado que consegue jogar sobre os autos um campo cirúrgico, de modo que só lhe permite enxergar as teses em debate, nada mais.

E, como consequência disso vêm, por exemplo, decisões em favor de pessoas publicamente pré-condenadas, arrostando a grita da turba. Sempre me recordo do grande Evandro Lins e Silva, ao dizer que Imprensa precisa de notícia e notícia quem dá é a Polícia ou a Acusação, até porque inocência não é notícia. Assim, a mídia se compromete com a versão acusatória, mesmo quando impregnada de mentiras e absurdos. Ressoando a Polícia, chegou-se a noticiar em tom sério que um suspeito envolvido em investigação dispunha de informações privilegiadas do FED norteamericano!

Mas nada disso impediu o autor de aplicar o Direito à situação de fato que lhe era apresentada, totalmente alheio ao nome das partes.

Há outra virtude essencial à jurisdição constitucional, sine qua non, que é o senso de Justiça, sem o qual de nada vale um magistrado. Um dos refrões dos anos de chumbo era “o Supremo não é casa de justiça, mas órgão de uniformização do Direito nacional” (naqueles tempos não se dava grande relevo ao controle de constitucionalidade). Ora, quem não é casa de justiça não tem direito ao título de Tribunal. É certo que o Supremo assumiu “definitivamente a função de Corte Constitucional, abandonando-se a função de Corte de Revisão” (p. 115) mas isso não desimpregna suas decisões do caráter de atos de justiça, afigurando-se correto falar em Justiça Constitucional.

Clara manifestação dela é a invocação da proporcionalidade em prol dos direitos individuais, contra os abusos do Estado: “O princípio da proporcionalidade – também denominado princípio do devido processo legal em sentido substantivo ou, ainda, princípio da proibição do excesso – constitui exigência positiva e material relacionada ao conteúdo de atos restritivos dos direitos fundamentais, de modo a estabelecer um ‘limite do limite’ ou uma ‘proibição de excesso’ no cerceamento de tais direitos. Em síntese, a aplicação do princípio da proporcionalidade se dá quando ocorre restrição a determinado direito fundamental …” (p. 23).

Ou seja, trata-se da antítese da cabal injustiça verberada no histórico HC 95.009, de alegar proporcionalidade para afirmar que “não há direitos absolutos”. “E, tal como tem sido em nosso tempo pronunciada, dessa máxima se faz gazua apta a arrombar qualquer garantia constitucional” (voto do relator, Min. Eros Grau, item 34).

A Justiça Constitucional aparece, sem dúvida, na modulação dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade, de modo a valorizar a segurança jurídica e, muitas vezes, preservar situações construídas de boa-fé sob a vigência da lei estigmatizada. Também na superação da Súmula 343 (restritiva da ação rescisória) e, em decorrência, da jurisprudência da “irretroatividade da interpretação mais benéfica ao réu” (RE-ED 328.812), ou na coibição ao abuso no uso de algemas (SV 11).

Não menos importante é a valorização do habeas corpus, reconhecendo-o “como garantia fundamental apta a levar ao conhecimento do Poder Judiciário situações de constrangimento ilegal ou de abuso de poder que, a depender do caso, podem transcender a esfera de locomoção propriamente dita da pessoa do paciente” (p. 46), como no caso de afastamento de magistrado que se eternizava em razão da duração não razoável de ação penal (HC 90.617).

Todavia o juiz só se completa se tiver a coragem de decidir como lhe manda a consciência. De Gilmar Mendes cobrou-se uma coragem quase além dos limites humanos e ele não se intimidou nem por um momento, não fugiu aos desafios, não vergou.

Uma das grandes virtudes da publicação dessa coletânea de julgados é a de nos rememorar tempos tão amargos que sua lembrança acaba se esvaindo em nossa memória: ninguém gosta de rememorar coisa ruim, ainda que isso seja indispensável para não reincidirmos na desdita. Foram tempos das mais desabridas investidas do Estado policial contra o cerne da estrutura do ordenamento jurídico. Tempos em que houve “um tipo especial de concerto entre algumas autoridades da Polícia Federal, do Ministério Público e do Judiciário para superar ordem emanada da Presidência do Supremo Tribunal Federal” (p. 38). E, “como sói acontecer, havia método na loucura” (p. 34).

Mas as pressões criminosas sobre o autor já vinham de antes. Como relator da chamada “Operação Navalha” Gilmar foi grampeado, chantageado, ameaçado, vítima de deliberada calúnia, nem assim se curvou.

Foi como presidente do Supremo que ele enfrentou e derrotou essa investida descarada do Estado policial, que saiu em retirada estratégica para tentar o bote na próxima oportunidade. Gilmar Mendes enfrentou o concerto maligno com toda a bravura e destemor. Não usou meias palavras para qualificar os atentados que foram dirigidos a ele e à Casa. Denunciou com coragem as tentativas vãs de intimidação. Firmou a autoridade do Tribunal como suprema, tal como deve ser e a Constituição determina.

Os que contra ele delinquiram, que se valeram do grampo telefônico ilegal, da escuta ambiental ilegal, das informações falsas dolosamente divulgadas à mídia, recorreram a todo tipo de pressão indevida, ao final — e contra seus desígnios —prestaram-lhe um serviço.

Gilmar Mendes, com sua postura e retidão, com sua bravura e indignação, alçou-se ao patamar de Ribeiro da Costa. E no meu vocabulário não há palavras que expressem um elogio maior. Ambos nos salvaram das forças do obscurantismo. O Brasil muito deve aos primeiros oito anos do autor no Supremo. E anseia pelos outros 14 anos.

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