O Anuário e suas leituras

O que o Anuário revela dos desembargadores paulistas

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21 de novembro de 2011, 13h53

ConJur
Construir um anuário não é tarefa fácil, sobretudo quando se está diante de um Tribunal de Justiça como o do Estado de São Paulo. Ali, tudo tem dimensão exponencial – o número de desembargadores, o número de câmaras, o número de juízes convocados, o número de servidores, o orçamento, o volume de casos novos, o número de decisões.

O espaço ocupado pela justiça paulista no conjunto da justiça nacional pode ser avaliado a partir de dados do Justiça em Números, levantamento estatístico sobre o judiciário divulgado pelo CNJ. Segundo aquelas estatísticas, a Justiça dos estados foi responsável por 73% das novas ações que ingressaram no Judiciário em 2010, por 81% dos casos pendentes e por 71% das decisões proferidas. A justiça de São Paulo sozinha respondeu por um terço destes percentuais. São Paulo recebeu 5,2 milhões de processos novos, mais do que o dobro do que a Justiça do estado do Rio Grande do Sul, que ocupa a segunda colocação em volume de demanda, com 2,2 milhões de novas ações.

Considerando-se apenas a justiça estadual de segundo grau, a média nacional de casos novos por desembargador foi de 1,1 mil processos. Em São Paulo, esta média atingiu 1,2 mil processos.

Esses dados quantitativos produzidos pelo CNJ representam, sem dúvida, um grande avanço em relação ao passado. O acesso a informações propicia indiscutíveis ganhos em conhecimento e em transparência. Por outro lado, revela por parte dos informantes compromissos com a instituição e com a prestação de contas.

O anuário da ConJur dá vida aos números da justiça do Estado de São Paulo, permitindo que se conheçam quem são os personagens por trás de números e decisões. Trata-se de um conjunto de dados abrangendo desde informações biográficas sobre desembargadores – idade, formação acadêmica, especialidade, origem, ano de ingresso no tribunal – até posições sobre temas relevantes.

Registrar informações implica selecionar, obriga a fazer escolhas e aceitar que necessariamente se deixará na sombra outros dados e características. Todo e qualquer registro permite compor retratos. Muitas imagens saltam aos olhos, outras exigem que se foque em ângulos e que se busquem detalhes.

O Anuário da Justiça São Paulo convida seu leitor a construir uma série de retratos do Tribunal de Justiça de São Paulo, de suas câmaras, de seus magistrados e de suas decisões. São muitas as imagens e diversas as aproximações possíveis.

Para compor o álbum, este texto colocará o foco em duas questões. Uma primeira extraída da Seção de Direito Público e outra a partir de registros da Seção Criminal. Essas questões permitem conhecer perfis e salientar aspectos constitutivos da identidade do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Primeiro retrato
Nosso primeiro retrato resulta de um colegiado constituído por 91 desembargadores, 24 juízes substitutos e cinco juízes auxiliares. Dentre outros ângulos, acentuaremos um que tem provocado acirrados debates, envolvendo operadores do Direito e administradores públicos. Trata-se de questão relativa à intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas, especificamente na área de saúde.
A imagem revelada mostra um grupo extremamente harmônico, com diferenças apenas na ênfase dada a distintos aspectos de um mesmo princípio.

Com efeito, o retrato resulta das posições em relação a uma série de indagações, todas elas sobre a mesma temática: a) o Judiciário pode intervir nas políticas públicas determinando que o Estado forneça remédio aos carentes; b) o Judiciário tem competência para determinar que o Executivo pague despesas de medicamentos e de tratamento de saúde individuais; c) para a concessão de medicamentos gratuitos, o Estado pode exigir formalidades administrativas; d) o município pode se isentar de fornecer medicamento sob a alegação de que o dever é do Estado; e) o Estado pode se negar a fornecer medicamento importado de alto custo por ser experimental e não estar na lista da Anvisa; f) portador de apnéia tem direito a receber gratuitamente aparelho para tratamento de distúrbio do sono.

As respostas apresentadas no Anuário mostram um grupo de magistrados com alto grau de convegência. Praticamente a totalidade dos desembargadores argüidos sobre o tema adota uma posição favorável ao ativismo judicial, apoiando esta sua posição no direito constitucional à saúde. Note-se que na extensa maioria dos posicionamentos não há qualquer menção à reserva do possível ou se faz algum tipo de ponderação ou ressalva quer em relação ao orçamento público, quer à lista de medicamentos aprovada pela Anvisa, ou ainda à possibilidade de reavaliação.

Vale a pena reproduzir algumas das posições, para exemplificar, mesmo sabendo que os argumentos levantados não se referem a situações concretas, mas traduzem posicionamentos em tese:

É direito do cidadão receber do Estado os meios necessários à sua sobrevivência com relação aos tratamentos de saúde que necessita para combater ou minimizar os efeitos da doença de que está acometido. Sendo o cidadão hipossuficiente, não lhe basta atendimento médico; deve receber o efetivo tratamento, como medicação adequada” (Regina Zaquia C. da Silva);

A saúde é um direito de todos e um dever do Estado. É o que está esculpido no artigo 196 da Constituição Federal. Não se fale que o acolhimento da pretensão implicaria em ingerência indevida de um Poder na esfera de atuação do outro. O Judiciário nada mais faz que garantir um direito constitucionalmente assegurado” (Márcio Franklin Nogueira);

É direito de paciente com doença crônica obter o fornecimento de medicamento prescrito pelo médico, mesmo que não esteja padronizado pela rede pública de saúde. É obrigação dos órgãos públicos garantir atendimento salutar à saúde” (Danilo Panizza Filho);

O Judiciário não faz políticas públicas, apenas interpreta a Constituição e as leis infraconstitucionais. Assim, para fazer cumprir aquilo que está escrito, o Judiciário ao ser provocado pode sim determinar que o Executivo forneça medicamentos e tratamentos de saúde, direito garantido pela Constituição” (Luiz Edmundo Marrey Uint);

Quando a administração pública deixa de cumprir preceitos constitucionais, cabe ao Poder Judiciário intervir e tornar efetiva a norma protetiva” (Rui Stoco);

Havendo prescrição médica idônea, não cabe ao poder público questionar sua eficácia, nem tampouco exigir que a prescrição seja referendada por médico da rede pública” (Moacir Andrade Peres); “O fato de determinada medicação não possuir registro na Anvisa, por si só, não afasta o direito do portador de doença grave ao recebimento do remédio” (Teresa Cristina M.R. Marques).

Um posicionamento distinto dos anteriores é expresso pelo desembargador Régis de Castilho Barbosa e pelo juiz José Luiz Germano, apontando hipóteses restritivas. Diz o desembargador:

É dever do Estado oferecer os meios necessários ao cidadão para garantir sua sobrevivência em relação a tratamentos de saúde. Observa-se apenas que a medida fica restrita aos medicamentos discriminados na inicial e de acordo com a prescrição médica juntada aos autos; e sem prejuízo de reavaliação a qualquer momento”. 

O juiz também se refere a limites:

Aquele que pode pagar não pode se valer de recursos públicos, que poderão faltar para os que não têm condições de assumir os custos dos medicamentos”.

A preponderância de argumentos a favor do protagonismo judicial permite retratar um grupo bastante homogêneo quanto a este aspecto. Esta mesma característica, contudo, não é verificada quando o ângulo em destaque diz respeito ao posicionamento de desembargadores sobre o princípio da insignificância.

Segundo retrato
Uma das questões mais relevantes no debate sobre o direito penal contemporâneo diz respeito à aplicação do princípio da insignificância. Trata-se do reconhecimento da irrelevância penal de determinados comportamentos. Este princípio tem como conseqüência a descriminalização de certas condutas sem potencial de provocar ofensa real aos bens jurídicos tutelados. Muito embora não exista previsão legal para o princípio da insignificância, muitos magistrados têm aderido à interpretação segundo a qual, certas condutas não justificam a repressão penal devido à desproporcionalidade entre o grau da lesão e a atribuição de penas[1].

Argüidos sobre esta questão, os magistrados que compõem as câmaras que formam a Seção Criminal expressam posições divergentes. Três tipos de posicionamentos são expressos. O primeiro formado pelos que manifestam posições críticas em relação à sua aplicação; o segundo pelos que invocam restrições; e o terceiro, proporcionalmente menor, pelos que adotam o princípio.

Os argumentos dos integrantes do primeiro grupo, que congrega a maioria dos integrantes da Seção de Direito Criminal, são assim expressos:

O valor do bem furtado não é, por si só, capaz de configurar a insignificância do ato praticado, de modo que o acusado não pode passar impune, o que acarretaria estímulo para que voltasse a delinqüir” (Luiz Toloza Neto);

A consideração do princípio de valor ínfimo é inconstitucional; esbarra na consagração constitucional do princípio da legalidade, que tem como corolário o seu redutor, que é a tipicidade. Sob o ponto de vista ético-social, a conduta é reprovável e juridicamente configura delito de furto, portanto, típico passível de reprimenda. O pequeno valor da coisa subtraída poderá ser considerado quando da aplicação da pena para abrandá-la” (Ruy Alberto L. Cavalheiro);

Não se pode confundir o pequeno valor da coisa subtraída com valor insignificante sob pena de fazê-lo contra legem, ante previsão do furto privilegiado, e por isso incabível em nosso ordenamento. Com a singela aplicação do referido princípio o Estado acabaria desprotegendo a coletividade com a estimulação à prática de pequenos delitos” (Renato de Salles Abreu Filho);

O nosso ordenamento jurídico ainda não acatou a teoria da bagatela ou da insignificância, não tendo, por isso, o ínfimo valor do bem ou do prejuízo nenhuma influência na configuração do crime” (Eduardo Braga);

O furto de bagatela constitui crime. Se o pequeno valor da res furtiva leva à aplicação da insignificância e ao reconhecimento da atipicidade, não haverá tutela penal ao patrimônio de estabelecimentos comerciais que trabalham com miudezas. O princípio da bagatela não possui previsão legal” (Euvaldo Chaib Filho);

Como explicar à sociedade ou à vítima que aquilo que lhe furtaram nada significou para a Justiça Criminal? A legislação brasileira não consagra nem nunca consagrou o princípio da insignificância ou do furto de bagatela. Se se violou a norma penal, inimporta o valor da coisa ou sua insignificância no contexto econômico ou no patrimônio da vítima” (Luís Soares de Mello Netto);

No caso de furto, não se pode confundir pequeno valor com valor insignificante. A falta de punição de pequenos furtos acarretaria exposição da sociedade a esse tipo de delito e corresponderia a uma verdadeira autorização judicial para que os criminosos continuem na prática de subtrações, desde que escolham sempre bens de pequeno valor.” (Willian Roberto Campos);

Se o bem subtraído é tão insignificante, por qual motivo o acusado o subtraiu? Mesmo que o delito seja de pequena monta, não pode ser considerado um indiferente penal. Pois a falta de repressão a tal delinqüência representaria um estímulo a pequenos furtos, cuja reiteração importaria em desequilíbrio da ordem publica e da paz social” (Edison Aparecido Brandão);

A teoria do princípio da insignificância não foi recepcionada pelo Código Penal e não é aplicável à espécie. A razão jurídica da punição do furto é a proteção ao patrimônio e o perigo que a conduta do agente representa para a sociedade” (José D. Pinheiro Machado Cogan);

O pequeno valor econômico da coisa não é suficiente para excluir o furto da moldura penal. Além disso, nosso ordenamento jurídico não acatou a teoria da bagatela ou da insignificância, não tendo por isso o ínfimo valor do bem ou do prejuízo nenhuma influência na configuração do crime” (Juvenal J. Duarte);

Não se tolera o incentivo à prática da subtração a pretexto do princípio da insignificância. A aplicação desse princípio deve ser restrita, sob pena de estimular a reiteração de pequenos delitos” (Sérgio Rui Fonseca);

Tal princípio fere os mais comezinhos princípios do Direito, além de que constitui verdadeiro escárnio à letra e ao espírito da lei pena. É impossível cogitar-se de atipicidade da conduta por tratar-se de crime de bagatela, visto que tal figura não é contemplada pelo nosso ordenamento jurídico, sendo, portanto, inaceitável seu reconhecimento” (Ricardo Cardozo de Mello Tucunduva);

Não se pode confundir o princípio da insignificância com a pura e simples inaplicabilidade da tutela penal, ao se considerar apenas o valor do bem protegido ou ameaçado. Até mesmo porque o que é bagatela para uns pode ser um bem indisponível para outros, não podendo o juiz, no caso concreto, aplicar critérios muito subjetivos em detrimento da sociedade, que é a destinatária da segurança jurídica” (Luiz C. Gomes do Reis Kuntz);

Impossível a aplicação do princípio da insignificância, por flata de previsão legal em nosso ordenamento jurídico. A criação da construção jurisprudencial do denominado delito de bagatela, aliás, não aceita de forma tranqüila pela doutrina, não encontra amparo legal, notadamente porque existe previsão da modalidade privilegiada do furto, com base no pequeno valor do prejuízo causado” (Marco Antonio Pinheiro Machado Cogan);

Não se pode classificar como ninharia a lesão jurídica quando o bem subtraído represente uma utilidade econômica ou um valor de uso para seu proprietário, mesmo quando e menor expressão pecuniária” (Alceu Penteado Navarro);

A pequena quantia subtraída ou o pequeno valor da coisa furtada não tornam atípica a conduta. Podem ter reflexos de outra natureza, como, por exemplo, se presentes os requisitos, dar origem ao reconhecimento do furto privilegiado, nas não autorizam a absolvição” (Nilson Xavier de Souza).

Os entrevistados classificados no segundo grupo acentuam condições para a aplicação do princípio da insignificância. São apresentadas as seguintes justificativas:

Esse princípio não tem aplicação automática a todos os casos em que a res furtiva tenha pequeno valor. Outros requisitos devem estar presentes. Um deles é a primariedade do agente. Ou seja, essa justificativa não se aplica aos reincidentes” (Antonio Luiz Pires Neto);

Não há como não reconhecer o princípio da insignificância. Na verdade, tal instituto penal decorreu algumas vezes da falta de repercussão patrimonial da subtração, como ocorre com a subtração de uma caixa de fósforos, de restos de grãos caídos em local de desembarque, de alguns alfinetes etc. Fato diverso é a subtração de coisa com valor irrisório, pois para tanto a lei penal tem tratamento específico, que é o furto privilegiado” (Ivan Marques da Silva);

Insignificância não se confunde com pequeno valor. O primeiro, para quem admite a incidência do referido princípio, conduz a um irrelevante penal; já o segundo, a menor grau de reprovabilidade da conduta autorizadora de condenação, privilegiando com o abrandamento da pena” (Luiz Antonio Cardoso);

A aplicação do princípio da insignificância restringe-se aos casos de ínfima lesão ao bem jurídico tutelado, como por exemplo nas hipóteses de furto de bens de valor irrisório, como um palito de fósforo ou grãos de arroz, coisas que nem sequer têm valor econômico individualmente” (Antonio Carlos Tristão Ribeiro);

O pequeno valor não se equipara a valor insignificante. É insignificante o que não tem relevância econômica, o que não afeta o patrimônio da vítima. Pequeno valor tem previsão expressa na lei. Em se tratando de atentado patrimonial que desfalca minimamente o patrimônio, objetividade jurídica protegida, é do furto privilegiado que se há de cogitar” (Ericson Maranho);

São necessários quatro quesitos para configurar a insignificância: a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada” (Francisco J. Aguirre Menin);

A verificação da lesividade mínima da conduta, apta para torná-la atípica, deve levar em consideração a importância do objeto subtraído, a condição econômica do sujeito passivo, as circunstâncias e o resultado do crime, a fim de determinar subjetivamente se houve ou não relevante lesão ao bem jurídico tutelado, cuidando-se, ainda, para que os furtos de pequeno valor não sejam equiparados àqueles praticados por agentes que possuem personalidade para a prática delituosa, até para que o Estado não acabe estimulando a prática reiterada de pequenos delitos” (Roberto Mário Mortari);

Conforme têm decidido os tribunais superiores, a aplicação do princípio da insignificância é admissível no Brasil. Mas para isso não basta o pequeno valor do bem, sendo preciso que esse valor seja irrisório” (Ronaldo S. Moreira da Silva).

Por fim, os posicionamentos dos adeptos do princípio da insignificância, claramente minoritários entre os desembargadores, são assim explicitados:

A tendência atual é a de excluir do âmbito da proibição penal as infrações consideradas leves, que na contenham danosidade social acentuada. O STF reconheceu a plena possibilidade de aplicação do princípio da insignificância quando a lesão ao bem jurídico protegido não tem valor relevante” (Márcio Orlando Bártoli);

É chegada a hora de dar vida à exata proporcionalidade entre a pena criminal e a significância do bem jurídico vilipendiado. E, nos casos em que a afetação deste for de grandeza diminuta, sem conseqüências maiores para a ordem social estabelecida, deve-se entender ausente a razão para a imposição de reprimenda penal, diante da pequenez da significação social do fato cometido” (Antonio Sydnei de Oliveira Júnior);

O Direito Penal só deve ir até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico, não se ocupando com bagatelas. A adoção do princípio da insignificância, por conseguinte, é o caminho sistematicamente correto e com base constitucional para a descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atinjam de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal” (Carlos Vico Mañas).

Tanto a homogeneidade demonstrada em relação ao direito à saúde, quanto a pluralidade de posições em relação à adoção do princípio da insignificância mostram faces do Tribunal de Justiça de São Paulo. Muitos outros retratos podem ser revelados. O Anuário oferece tantos ângulos que se coloca como um convite aberto à análise de todos.


[1] Pesquisa coordenada pelo Professor Pierpalo Bottini, “O Princípio da Insignificância nos crimes contra o patrimônio e contra a ordem econômica: análise das decisões do Supremo Tribunal Federal” mostra que no STF o reconhecimento do principio da insignificância cresceu significativamente, sendo que o numero de decisões reconhecendo a insignificância triplicou entre 2007 e 2008.

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Autores

  • Brave

    é doutora em ciência política, professora do Departamento de Ciência Política da USP e diretora de pesquisa do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais.

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