Justiça estrangeira

Colonizadores criaram anomalia jurídica na África

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17 de novembro de 2011, 13h16

Ao sul do Saara, na África, o réu pode não ter ideia do que está se falando ou se passando no tribunal. O idioma oficial no julgamento pode ser o inglês (ou francês, português ou espanhol, dependendo de quem foi o colonizador do país) — e não o local. O juiz pode ser britânico. Advogados e promotores não precisam falar uma palavra do idioma local. "Na África subsaariana, a Justiça é estrangeira", escreve o professor universitário Ali A Mazrui, diretor do Instituto de Estudos Culturais Globais da Universidade Estadual de Nova York, em artigo publicado no The Southern Times, da África do Sul.

O idioma oficial de quase todas as constituições africanas é europeu. Nesse sentido, a legislação constitucional é quase que inteiramente um resultado do eurocentrismo (uma visão europeia do mundo na formação da sociedade moderna). "Cada direito e cada liberdade civil têm de ser interpretados em termos do significado no idioma eurocolonial relevante", diz o autor do artigo. Por isso, a maioria dos africanos não conhece seus direitos constitucionais ou quaisquer outros direitos consagrados no mundo. Expressões como "direitos civis", "liberdades civis", "direito à privacidade" e outras tantas sequer têm equivalentes em idiomas nativos.

O fato de a lei ser escrita em um idioma europeu, na maioria dos casos não entendida pelo réu, somado ao fato de que a própria substância da lei é culturalmente derivada do Ocidente, pode estabelecer para um africano "um caso especial de dupla condenação", diz o autor. Todo o sistema é basicamente um grande exercício de tradução — frequentemente má tradução. "O conceito de devido processo se dilui" nos procedimentos, afirma. "Se a Justiça tem de ser feita, ela tem de ser feita de uma maneira que é entendida, o que não é o caso na maioria dos países africanos", argumenta.

O judiciário é dominado por estrangeiros. A convergência do conteúdo com o idioma das leis criou, em muitos casos, uma excessiva dependência da metrópole, obrigando tribunais africanos a contratar juízes no antigo poder colonizador. O Quênia, por exemplo, vem substituindo juízes estrangeiros por juízes nativos "com muita lentidão", diz o autor. Há exceções: em Uganda, logo depois da independência, um juiz nigeriano, Sir Udo Udoma, foi presidente do Supremo Tribunal. Um dos ministros mais conceituados do Supremo Tribunal da Tanzânia era das Índias Ocidentais.

A contratação de juízes estrangeiros confronta os princípios do estado de direito, de diversas maneiras. Um problema, é que o réu pode ser julgado e condenado por estrangeiros em sua própria terra. Mas o problema maior é que o Judiciário, por ser o menos africanizado dos poderes, perde sua independência do Executivo (e também do Legislativo). Essa tem sido uma crença popular em países africanos. Juízes estrangeiros no Quênia e em Malavi (ou Malawi) têm agido, de forma rotineira, como se o Judiciário fosse uma extensão do Executivo. Isso leva a rumores sobre a excessiva manipulação do Judiciário pelos governos dos países, diz o autor do artigo.

Juízes africanos, por sua vez, fizeram história por tomar decisões contra seus próprios governos, correndo grandes riscos pessoais. O caso mais famoso foi o do presidente do Supremo Tribunal de Uganda, Benedicto Kiwanuka, que decidiu um caso na Justiça contra o então ditador Idi Amin Dada, em 1972, e pagou o preço supremo por isso. Ele foi sequestrado em seu próprio gabinete, em Kampala, por um grupo de militares e nunca mais se teve notícias dele. O juiz ugandês é tido como um mártir do estado de direito.

Não há registros de juízes ingleses terem feito a mesma coisa durante o regime de Idi Amin Dada, a não ser por uma exceção, que ficou famosa. Um juiz inglês tomou uma decisão contrária à vontade do ex-ditador, mas ordenou a seus auxiliares que não a divulgassem antes de ele fugir do país. Depois de escrever e assinar sua decisão, ele tomou o primeiro avião para a Inglaterra. De qualquer forma, ele não se submeteu à vontade de Idi Amin, considera o autor.

No entanto, essa confluência de idioma europeu, lei e constitucionalismo nos países africanos tem favorecido o pan-africanismo — um movimento que pretende unificar o povo africano ou, em outras palavras, criar uma comunidade africana, explica a Wikipédia. Ironicamente, o movimento também é chamado de afrocentrismo, em oposição ao eurocentrismo, com o apoio dos negros americanos que disseminaram a ideologia de identificação afro-americana que emergiu durante o movimento de direitos civis nas décadas de 60 e 70.

Um efeito prático, no campo jurídico, é que a adoção generalizada do idioma e das leis originárias da Commonwealth facilitou a atuação de advogados em vários países e isso, muitas vezes, beneficia réus que, de outra forma, ficariam desprovidos de assistência jurídica. O mesmo é válido para promotores e juízes. Esse aspecto é celebrado pelos defensores do pan-africanismo como um efeito colateral positivo do estrangeirismo imposto aos países africanos.

A convergência de idiomas e tradições jurídicas também permite aos advogados africanos construir redes de solidariedade com juristas internacionais. Os advogados da Nigéria e do Quênia são particularmente ativos na defesa de direitos humanos e processos democráticos. E são parcialmente protegidos contra retaliação governamental por uma rede internacional de juristas e constitucionalistas, diz o autor.

"Nós definimos estado de direito como a dimensão jurídica do processo democrático — a dimensão que procura assegurar que as decisões governamentais sejam impessoais e sujeitas às restrições jurídicas. E a dimensão que protege a liberdade individual contra a arbitrariedade governamental e garante ao indivíduo o direito ao devido processo da lei", ensina o o professor Ali A Mazrui. Mas a imposição de idiomas europeus e leis europeias aos países ao sul do Saara, na África, é uma anomalia que tem persistido, porque os cidadãos africanos sequer os entendem,  declara.

Para ele, a África está pagando um preço pela adoção do euroconstitucionalismo mais alto do que os africanos se dão conta. O fato das constituições africanas serem escritas quase que exclusivamente em idiomas europeus, raramente traduzidas, vem retardando o desenvolvimento de uma nova cultura constitucionalista na África. Milhões de cidadãos africanos não aprendem a raciocinar em termos de constituição, em grande parte porque vivem em sistemas políticos que reprimem o desenvolvimento de um vocabulário constitucional nativo. A colonização estrangeira criou um vácuo no universo intelectual do cidadão comum, afirma.

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