Justiça que legisla

Ativismo judicial vinculativo não é bom

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30 de março de 2011, 20h31

Aprendemos, ainda nos cursos de graduação, que a jurisdição compõe-se de alguns elementos a serem observados com vistas a se chegar à final aplicação do direito material ao conflito.

Na ordem, são eles: a notio ou cognitio (poder atribuído aos órgãos jurisdicionais de conhecer os litígios e prover à regularidade do processo), a vocatio (faculdade de fazer comparecer em juízo todo aquele cuja presença é necessária ao regular desenvolvimento do processo), a coertio (possibilidade de aplicar medidas de coação processual para garantir a função jurisdicional), o juditium (o direito de julgar e pronunciar a sentença) e a executio (poder de fazer cumprir a sentença), classicamente não compõe a jurisdição a possibilidade ou capacidade de criar leis.

Muito embora a jurisdição, como expressão do poder estatal soberano, seja una e indivisível, didaticamente costuma-se classificá-la quanto à sua graduação ou categoria (podendo ser inferior – correspondente à primeira instância – ou superior – correspondente à segunda instância ou outros tribunais ad quem), quanto à matéria (penal, civil, eleitoral, trabalhista e militar), quanto ao organismo jurisdicional (estadual ou federal), quanto ao objeto (contenciosa – quando há litígio – ou voluntária – quando é homologatória da vontade das partes), quanto à função (ordinária ou comum – integrada pelos órgãos do Poder Judiciário – ou extraordinária ou especial – quando a função jurisdicional não é exercida por órgãos do Poder Judiciário), quanto à competência (plena – quando o juiz tem competência para decidir todos os casos – ou limitada – quando sua competência é restrita a certos casos) e outras distinções feitas em prol do melhor estudo e compreensão do instituto da jurisdição.

A quem afirme [1] que deve ser garantido que o legislador somente promulgue leis, não exerça atos administrativos, ou do governo, ou profira sentenças, que o Executivo só concretize a lei e não as promulgue, e que a Justiça só aplique o direito e não crie disposições jurídicas [2].

Ao legislador, que representa a força invisível da presença pública, incumbe a feitura da lei que, em regra, deve valer de modo abstrato, ou seja, para todos.

É por isso que se diz que o povo é o construtor do direito, que tem, na lei, sua fonte primacial. É dessa idéia que se descortina, aqui, o importante princípio do devido processo legal, seja quando da elaboração da própria lei, seja quando de sua interpretação e aplicação in concreto.

Ao juiz, portanto, na condição de intérprete autêntico da Lei segundo Kelsen, incumbiria a criação da norma ou do direito que deve valer, em regra, tão só para o caso concreto.

A questão, então, como se faz polêmica é entender até que ponto a norma jurídica concretizada pode trazer, no seu bojo, contornos de abstração aptos a influenciar novos provimentos judiciais, ou em outras palavras, é compreender até que ponto, sob o manto da interpretação, permite-se a indisfarçável criação do próprio direito com eficácia que a todos vincule.

Eis a tensão que se vê entre o ser e o dever ser, ou entre o direito posto e o direito pressuposto [3] e que se acentua ainda mais agora, diante das inovações legais que se impuseram como modo de superar as crises de efetividade ou de força normativa da ordem constitucional.

Quando o Supremo Tribunal Federal produz determinada decisão em sede de Habeas Corpus, por exemplo, essa decisão deve valer apenas para as partes desse caso in concreto?

E se tal decisão ou seu fundamento determinante em sede de controle difuso confirmar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, decorrerá dessa confirmação obrigatoriedade para que todos a cumpram?

O que dizer, então, da edição de súmula vinculante com eficácia constitucional erga omnes? O que dizer ainda da Reclamação que, como recurso, é posta à disposição de todos com o objetivo de fazer valer as decisões do próprio STF? E o que dizer, enfim, da súmula impeditiva de recursos ou mesmo do precedente sumular que permite ao juiz extinguir ou arquivar de modo antecipado o processo sem julgamento do mérito?

Essas questões retratam para onde caminha a prestação jurisdicional em nossos dias, questões relevantes as quais a sociedade ainda não debateu.

E por que relevante o debate? Ora se, contra o legislador, pode o Poder Executivo vetar a lei ou buscar no Poder Judiciário a declaração de inconstitucionalidade se, contra o abuso do Executivo, pode-se da mesma forma socorrer-se do Judiciário. O que se poderá fazer contra o Judiciário quando, a pretexto de julgar, extrapola os limites da separação dos Poderes, criando, disfarçadamente, normas jurídicas de eficácia abstrata?

Quem, senão o próprio Judiciário pode impedir sua atuação como legislador positivo? “Há algo de podre do reino da Dinamarca.”[4].

O que se tem como certo, portanto do ponto de vista positivo, é que o legislador constituinte derivado, ainda que de modo contraproducente, em busca de efetividade, promulgou a Emenda Constitucional 45 /04, da qual decorreram inúmeras leis ordinárias, dentre as quais, a Lei 11.276 /06, cujo artigo alterou a redação do artigo 518 do Código de Processo Civil para: “Art. 518 (…) – 1o – O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal”.

E a Lei 11.277 /06 acresceu no CPC , o artigo 285-A, com a seguinte redação: “Art. 285-A – Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. 1o – Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de cinco dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação. 2o – Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso.”

Ora, o que seriam, assim, como acima se fez mencionar, os casos idênticos? Seriam casos de litispendência ou da própria coisa julgada? Sabemos que não há casos idênticos, apenas semelhantes.

Imagine-se, desse modo, diante das normas ut supra, a situação absurda de determinado autor que, inconformado com sentença em processo do qual sequer houve citação, decida reclamar. Aí então é possível que o juiz não receba tal recurso, desde que sua sentença esteja em conformidade com súmula do STF ou do STJ.

Tal situação absurda afronta, induvidosamente, de uma só vez, vários princípios constitucionais como, por exemplo, o de acesso à Justiça, o do devido processo legal, o do contraditório e o da ampla defesa.

Há ainda a Lei 9.756 /98, anterior à EC 45 /04, deu nova redação ao artigo 557 do CPP, não falando, ali, apenas de súmula, mas de jurisprudência dominante: “Art. 557 – O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.”. O que é jurisprudência dominante?

Como se vê, as decisões do STF têm sempre muita importância no contexto geral do direito, atualmente na arena política. Já se sabe, ademais, que o STF, em processos objetivos, não pode legislar positivamente, podendo, quando muito, assim o fazê-lo de modo negativo, quando decide ou quando fundamenta os motivos determinantes em decisão, por exemplo, de ação direta de inconstitucionalidade de lei ou de atos normativos. É claro que, em tais processos ditos objetivos, a decisão definitiva do STF terá eficácia erga omnes e efeitos vinculantes.

Entretanto, nos processos de natureza subjetiva, tal eficácia e tal efeito não podem ocorrer, porque, em primeiro lugar, a própria Constituição Federal pontua, no inciso II do artigo 5o , que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei e obviamente lei não é a mesma coisa que decisão judicial. Eis a essência do princípio da legalidade que difere do princípio da reserva legal. E em segundo lugar porque, é da essência da decisão judicial, salvo quando em processos objetivos criar normas com eficácia entre partes sob pena de, em se admitindo tal eficácia erga omnes, desrespeitar, com relação a quem se faça interessado, a ampla defesa e os recursos a ela inerentes.

Não pode prevalecer, por conseguinte, o argumento de que a reserva de plenário, de que trata o artigo 97 da CF, possibilite eficácia erga omnes e efeito vinculante à decisão, em processo de controle difuso, que declare a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo [5].

Com relação às súmulas, sejam vinculantes ou não, temos de lembrar que súmulas não são leis, pois o Poder Judiciário não pode legislar positivamente, do mesmo modo como não pode deixar de proferir provimento para a solução de conflitos que lhe são encaminhados.

O ativismo judicial avança sem constrangimento na direção de sua índole vinculativa. Isso não é bom, pois nega a própria essência do Estado Democrático de Direito.

A teoria pura do Direito, como idealizada por Hans Kelsen, em contraposição à idéia do Direito Natural, tende a significar a própria teoria do positivismo jurídico. O positivismo deu azo à discricionariedade ou ao decisionismo, ou seja, o intérprete solitário em busca da norma jurídica.

Porém, o juiz, quando cria a norma jurídica diante do caso difícil ou fácil que tem de decidir, não pode se valer tão só do julgamento moral que sua consciência dita.

Não se pode ignorar que o pós-positivismo [6] permitiu a reaproximação do Direito com os valores morais, propiciando, também, os paradigmas dos princípios e da consideração de imperiosa ênfase da relação sujeito-sujeito, e não mais sujeito-objeto, ou seja, da imprescindível intersubjetividade [7].

O juiz nesse momento do pós-positivismo, portanto, quando aplica a norma, não o faz unicamente como produto de sua vontade e de sua discricionariedade, nem é escravo da lei, pois pode avançar na busca do Estado Democrático de Direito, pelo insondável mundo das intersubjetividades.

Mas tal avanço não tem nada a ver com ativismo judicial ou com a judicialização da política, pois o Direito deixa de ser mero regulador para ser transformador dos direitos sociais e fundamentais. Mas qual Direito? O Direito que emerge da sociedade e não da visão parcial do Poder Judiciário.

A doutrina diz como o Direito deve ser. A Justiça diz como o Direito é. Neste sentido, é certo imaginar que o Judiciário, quando, por índole política, elege a decisão que entenda mais correta e que atenda aos reclamos do Estado Democrático de Direito, adquire, assim, ares de autêntico Poder democrático.

O Direito, portanto, resultante do ato de interpretar, não é produto nem da objetividade plenipotenciária do texto e tampouco de uma atitude solitária do interprete: o paradigma do Estado Democrático de Direito está assentado na intersubjetividade, o que torna a compreensão dessa categoria fundamental.

É possível afirmar que o Estado, representado por seus poderes funcionais (Executivo, Legislativo e Judiciário), pode e deve exercer império sobre os cidadãos. Entretanto, o homem, na riqueza de suas relações intersubjetivas e na grandeza de sua dignidade humana a que se insere o Estado Democrático de Direito impõe-se em primazia sobre os interesses do próprio ente estatal, ma deve submeter-se ao interesse público [8].

É por isso que o princípio da segurança jurídica, por exemplo, é um superprincípio do qual não se pode prescindir quando de qualquer provimento judicial. Como sabido, todo poder emana do povo [9], que age através de seus representantes eleitos [10] para atingir o fim maior do Estado Democrático de Direito, qual seja, o bem comum.

Além disso, é certo que a atividade legiferante cabe somente àqueles que estão investidos legitimamente em cargos eletivos, possuindo, portanto, o múnus legislativo, como bem observa Maria Helena Diniz quando afirma que é certo que, tanto na França como no Brasil, o juiz não tem o poder de legislar, ora, o costume é oriundo do povo, e este, salvo exceção, como nos casos de plebiscito, não possui também o múnus legislativo [11].O ativismo judicial, portanto, como aqui superficialmente abordado, não pode sobrepor-se ao paradigma do Estado Democrático de Direito que se assenta na intersubjetividade, como ensina Lenio Streck. [12].


[1]http://www.jusbrasil.com.br/noticias/773288/sumula-nao-e-lei-ja-que-judiciario-nao-pode-legislar-positivamente

[2] Teoria do Estado. Doehring, Karl. (apresentação de Ingo Sarlet). Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2008, pág. 284.

[3] Grau, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. 6a edição.

[4] Hamlet , de Shakespeare.

[5] Esta questão segue sub judice no âmbito do STF, na Reclamação 4.335.

[6] Paulo Jorge Scartezzini Guimarães em sua obra "A publicidade Ilícita e a Responsabilidade Civil das Celebridades que dela Participam" – ed. RT, afirma que a fase pos – positivismo, inaugurada nas ultimas décadas, caracteriza-se pela saída dos princípios do direito privado (código), ingressando no direito publico (constituição). Essa corrente traz a hegemonia dos princípios, uma vez que passam a ser constitucionalizados. Nessa nova fase, já não são institutos supletivos da lei, mas sim, orientadores das demais normas.

[7]“… pela perspectiva da intersubjetividade, o conhecimento depende de outras pessoas e a idéia não é dada pela mente, mas pelo uso da palavra numa determinada comunidade, em práticas coletivas. Aceita, por isto, as “impurezas” e trabalha com elas, considerando o conhecimento não como um dado da idéia, mas como fruto da relação interpessoal ou intersubjetiva, a qual, por sua vez, é produto da linguagem, vista não como instrumento, porém como uma prática lingüística de uso comum. A verdade nunca é subjetiva, pois não se forma nenhuma essência e não se considera o agente conhecedor como sujeito (sub jectum = o que jaz dentro) cuja mente filtra essências, mas como um ser vivente ou existente na linguagem, que só existe na ação praticada em comunidade.

Em virtude de considerar a vivência, o objeto do conhecimento é sempre aquilo que aparece (fenômeno), porém sem necessidade de ser internalizado na mente, logo, a experiência é sempre uma vivência retirada ou recolhida da comunidade à qual pertence o agente conhecedor. A verdade é sempre relativa, mas o critério de verdade não é o agente ou sua mente e sim a convicção de verdade recolhida pelo agente dentro da comunidade.

A justificação da verdade depende das práticas sociais comuns e é sempre fornecida concretamente por modelos situacionais ou por situações, variando o critério da simples existência até a mais ampla comunicação. A situação funciona como modelo para uma analogia de ponderação (recolhimento e sopeso) e não como moldura. A razão não é instrumento de medida, mas de recolhimento, de colheita do significado do discurso num primeiro momento e de sopeso, ponderação de encontro do sentido diante da prática comum, num segundo momento.

O horizonte ou a atmosfera em que está inserido o agente é considerado em sua ideologia, crenças, conceitos, pré-conceitos e cosmovisão, que auxiliam no balanceamento do sentido, não precisando ser afastados. O significado do discurso coletivo já não tem uma essência, mas apenas sentido, por isto a atividade do agente conhecedor não é analítica, mas hermenêutica em si mesmo, dependendo ou do discurso pragmático ou da compreensão da atmosfera lingüística vivenciada. Seu instrumental é a analogia por ponderação do discurso, funcionando a dogmática apenas como elemento de partida, permitindo o constante questionamento do discurso e buscando sempre uma finalidade social-comunitária dentro da mesma comunidade. Não há retórica argumentativa, mas uma sintaxe argumentativa no sentido de estruturar e organizar hermenêutica ou pragmaticamente a polifonia do discurso. Há uma análise “poiética” (criativa) do discurso a permitir ou a hermenêutica ou a pragmática lingüística.”, conforme: http://pordentrodalei.blogspot.com/2008/05/subjetividade-e-intersubjetividade.html

[8] O interesse público seria resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelos simples fato de o serem, conforme Celso Antonio Bandeira de Mello, citado por Márcio Soares Berclaz, in http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3545

[9] Constituição Federal, Art. 1º, § único.

[10] Maximilianus Cláudio Américo Führer e Maximiliano Roberto Ernesto Führer, Resumo de Direito Constitucional, 4ª edição, São Paulo, Malheiros, 2003, pág. 62.

[11] Maria Helena Diniz, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 9ª edição, São Paulo, Saraiva, 1997, pág. 292.

[12] Streck, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2008. pág. 216.

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