Ideías do Milênio

Terremoto de Lisboa, em 1755, mudou a história

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18 de março de 2011, 9h57

Até o terremoto e o tsunami que arrasou o Japão na semana passada, não havia dúvida, que o maior desastre natural dessa natureza fora registrado em Portugal, em 1755. No dia 1º de novembro daquele ano um terremoto de igual intensidade ao do Japão, também seguido de um violento maremoto e um devastador incêndio arrasaram a cidade de Lisboa e causaram a morte de 40 mil pessoas – um quinto da população da cidade. É sobre essa tragédia que o escritor inglês David Paice, autor do livro A Ira de Deus, recentemente lançado no Brasil, fala nessa entrevista concedida ao jornalista Silio Boccanera, transmitida no programa Milênio, da GloboNews. A entrevista foi concedida emjaneiro deste ano, bem antes do terremoto no Japão, e sua publicação permite traçar paralelos entre os dois eventos. Assim como a tragédia no Japão desencadeou o debate sobre os riscos do uso da tecnologia nuclear, o desatre de Lisboa há há mais de 250 anos provocou uma profunda revolução filosófica para a humanidade e consequências geopolíticas que afetaram até mesmo a História do Brasil.

O Milênio é transmitido pela Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça-feira, às 5h30 de quarta e às 7h05 de domingo.

Leia a seguir a transcrição da entrevista:

Portugal, novembro, 1755. Auge da riqueza trazida pelo ouro e por outras preciosidades do Brasil Colônia. Sem alerta, Lisboa se transforma em palco de um dos maiores terremotos registrados em todos os tempos. Magnitude avaliada hoje acima de 9 na escala Richter. Epicentro no mar. Sinais do tremor chegaram tão longe quanto Escandinávia, Suíça, África, até o Caribe. Numa cidade iluminada na época por velas, incêndios logo se espalharam. Em seguida, um gigantesco tsunami inundou Lisboa. Milhares de pessoas morreram, casas, prédios, palácios, foram destruídos. Até o rei foi levado a acampar no jardim. Riquezas arruinadas, comércio interrompido, economia arrasada. O megadesastre natural afetou até a Inconfidência Mineira no Brasil através de aumentos de impostos que irritaram a elite pró-independência de Vila Rica. A tragédia em Lisboa gerou discussões filosóficas entre Voltaire e Rousseau sobre a natureza do bem e do mal. Cientistas passaram a estudar mais o interior da terra. O arrasador e influente terremoto de Lisboa de 1755 inspira o livro recém-lançado no Brasil com o título A Ira de Deus do historiador britânico Edward Paice, que o Milênio entrevistou em Londres.

Silio Boccanera — Seu livro trata de um fato que pode parecer distante para muita gente: um terremoto de 200 anos atrás. Mas que, na verdade, foi muito relevante em vários aspectos. Só para entender a dimensão do que aconteceu, o senhor menciona que, no final do século 20, cientistas importantes ainda se referiam ao desastre de 1755 como “talvez o maior terremoto jamais registrado.” Para dar uma ideia de sua magnitude, seria possível compará-lo ao recente terremoto e tsunami na Indonésia há cerca de cinco anos?
Edward Paice — É uma pergunta muito interessante. Em termos de magnitude, intensidade e duração, os dois desastres são muito semelhantes. O terremoto em Sumatra-Andaman durou entre oito e dez minutos. O de Lisboa durou entre sete e dez. Foram os desastres naturais de maior duração já registrados. Eles são bem semelhantes nesse sentido, em termos da duração. Em termos da magnitude, ambos foram de 8,75 a 9 graus na escala Richter, o que os coloca entre os terremotos mais devastadores da História (Nota da Redação: o terremoto no Japão, atingiu 9 graus na escala Richter). Eles se equivalem. Outra coisa muito interessante, na minha opinião, foi o aniversário do Terremoto de Lisboa ser menos de um ano depois do terremoto da Indonésia. Ainda assim, embora o terremoto da Indonésia estivesse bem vivo na lembrança das pessoas um ano depois, por motivos óbvios, aqui na Grã-Bretanha e na maior parte da Europa, ninguém se lembrou do Terremoto de Lisboa além dos portugueses, logicamente, que comemoraram seus 350 anos. 

Silio Boccanera — Vamos falar nisso mais detalhadamente, mas o terremoto de Lisboa teve consequencias históricas comparáveis às dos atentados de 11 de Setembro.
Edward Paice — Acho a comparação bastante razoável. Se analisarmos outras comparações… Um importante historiador, especialista em Portugal, Charles Boxer, do King’s College de Londres, comparou o desastre com o impacto da bomba atômica de Hiroshima. Trata-se de um evento dessa relevância. Os europeus tinham consciência disso mesmo um século depois do terremoto de Lisboa. Mas parece que ele foi esquecido. A memória histórica se desvaneceu.

Silio Boccanera — Assim como na Ásia, além do terremoto, houve um tsunami. As pessoas acham que tsunami é algo novo, porque a palavra, uma palavra japonesa, é relativamente nova. Mas houve um tsunami gigantesco na época. O senhor afirma que, na época, as pessoas falavam de ondas de 40 pés – o que equivale a 12 m de altura – chegando à costa a 600 km por hora. É a velocidade de um jato!
Edward Paice — Pelo que eu sei, o que ocorreu em Lisboa na manhã de 1º de novembro de 1755 foi um desastre triplo e sem paralelos. Só para explicar a sequencia de eventos: o primeiro terremoto, que foi resultado da acumulação de três tremores, ocorreu por volta das 9h45. O primeiro tremor secundário ocorreu cerca de uma hora depois, por volta das 11h, o que é muito importante. A esta altura, o segundo grande problema já estava atingindo a cidade: o fogo se espalhou por toda parte. É dia de Todos os Santos, há velas e vestimentas por todo lado. Todas as igrejas da cidade estão ornamentadas para o Dia de Todos os Santos. As igrejas tombam, as velas caem dos altares, as pessoas estão fora de casa, indo para a igreja, não estão tomando conta dos fogões e das cozinhas, e começam a aparecer nuvens de fumaça em várias partes da cidade. E é a essa altura, no meio da manhã, que, em Cascais, as pessoas começam a ver, primeiro, o mar se retrair cerca de 5km.

Silio Boccanera — Como se retraiu na Indonésia.
Edward Paice — Exatamente. Se quiser imaginar o que aconteceu com o mar, pense nas apavorantes imagens que os cinegrafistas amadores fizeram na Ásia Oriental e que nós todos vimos durante o tsunami. Foi exatamente o que aconteceu. E essa é a velocidade com que a energia se desloca na água.

Silio Boccanera — E, em reação, veio a onda.
Edward Paice — Em reação, veio a onda.Talvez, em locais próximos ao epicentro, no meio do Atlântico, em Sagres, por exemplo, as ondas tivessem 30 metros de altura. 

Silio Boccanera — E o efeito no resto do mundo? Ele foi sentido em várias partes.
Edward Paice — Exato. E você perguntou sobre o teletsunami. O tsunami, como eu descrevi, subiu o rio Tejo, e arrastou várias pessoas que esperavam nas margens. O instinto natural das pessoas, depois do terremoto e do 1º tremor secundário no meio da manhã de 1º de novembro, foi correr para o campo, sair da cidade, ou tentar fugir da cidade indo até o Tejo e cruzando o rio para a margem sul. Logicamente, no Mar da Palha, a parte mais larga do rio Tejo, havia um grande número de barcos disponíveis. Assim que eles começaram a cruzar o rio novamente, cerca de uma hora depois do terremoto… Todos estavam tentando embarcar. Portanto, havia muitas pessoas na beira do rio, o que aumentou consideravelmente o número de mortos. É impossível saber exatamente o número de pessoas que foram arrastadas pelas ondas. Mas se sabe, pelo depoimento de testemunhas, que, num maravilhoso píer de mármore que tinha acabado de ser construído naquele ano, na frente da Praça do Comércio, a principal praça do paço, havia cerca de mil pessoas esperando. Além de essas pessoas terem sido arrastadas, o próprio píer desapareceu completamente, nunca mais foi encontrado. Temos informações bem precisas sobre o efeito do tsunami no centro de Lisboa pelo fato de um capitão britânico, um capitão de navio, ter ficado ancorado naquela manhã em frente ao Terreiro do Paço e ter podido ver tudo e relatar o que viu. Não há registro disso em nenhuma fonte portuguesa. Não há nenhum outro relato tão abrangente do que aconteceu no Terreiro do Paço, hoje Praça do Comércio. Temos muita sorte por esse ter sido o primeiro desastre natural a ser tão bem documentado com tanta riqueza de detalhes.

Silio Boccanera — Outra coisa que dá uma dimensão muito interessante do tamanho do desastre de acordo com o seu livro, foi ele ter sido percebido a grandes distâncias, seja pelo movimento das marés ou pelos tremores de terra. Fale sobre os locais distantes onde ele repercutiu.
Edward Paice — Sabe-se com certeza, devido a estudos científicos posteriores, assim como a provas da época, que a terra tremeu, que o terremoto foi sentido, em termos científicos a 2.500 quilômetros de distância. Os efeitos do terremoto foram sentidos a mais de 3.200km de distância. O local mais distante em que houve mudanças que podem ser relacionadas por meio do horário ao terremoto foi num rio na Finlândia, a 3.000 quilõmetros de distância do epicentro do terremoto. . Passando pelo Norte da África.

Silio Boccanera — O terremoto foi sentido até no Caribe.
Edward Paice — Bom, o tsunami, sim. Já o terremoto, seus efeitos foram notados a mais de 3.000 km de distância. Mais tarde naquela manhã, surgiu um tsunami, que foi o primeiro teletsunami registrado com um certo grau de precisão científica na história dos fenômenos naturais. Um teletsunami é um tsunami que percorre uma distancia maior que 1.000km. Obviamente, o mesmo tsunami, a mesma força explosiva sob as águas do Atlântico provocou um tsunami que foi em direção ao Mediterrâneo, em direção a Lisboa… Os efeitos foram prontamente visíveis nos portos do sul da Inglaterra, por exemplo. Mas o tsunami também partiu em outra direção, cruzando o Atlântico em direção ao Caribe. A ligação entre os fatos só foi feita bem mais tarde, quando vários cientistas amadores, por assim dizer, pessoas que se interessavam por ciências naturais, registram, por todo o Caribe, o surgimento de ondas de até seis metros, por lá também.

Silio Boccanera — Especialmente num lugar onde o mar é tão calmo…
Edward Paice — Exatamente. E, por fim, todos esses relatos, não apenas do tsunami, mas também de turbulência em rios e lagos na Europa, como por exemplo na Escócia, na Romênia, por toda parte, foram relacionadas pela Royal Society em Londres. Foi o primeiro conjunto significativo de relatos de testemunhas sobre um terremoto na história da Ciência.

Silio Boccanera — Apesar da indiferença das pessoas ou da ignorância sobre o assunto, o senhor disse que, na época, ele causou grande impacto. Duas pessoas que trabalharam o impacto do terremoto de Lisboa e do tsunami num nível filosófico foram Voltaire e Rousseau, que começaram a discutir o assunto. Fale sobre isso. 
Edward Paice — Essa área não é a minha especialidade, portanto, tenho que ter cuidado para não desagradar os profundos conhecedores de Filosofia, mas, para os leigos, que é como eu me considero, havia uma filosofia reinante na Europa Ocidental conhecida na época como Otimismo. Não é igual àquilo que chamamos de “otimismo” hoje em dia, que significa uma tendência a ver o futuro de forma favorável, ou que vê o lado positivo das coisas. Otimismo significava a crença em uma Providência divina, e Voltaire resumiu isso negando tal ideia no Poema Sobre o Desastre de Lisboa, que ele apresentou seis semanas depois de tomar conhecimento do desastre. Ele queria refutar a impressão de que vivíamos “no melhor dos mundos possíveis”, e a ideia de uma Providência benigna que, segundo ele, era absolutamente incompatível com o ocorrido em Lisboa.

Silio Boccanera — Por outro lado, Rousseau tentou justificar.
Edward Paice — Com certeza. Com o Poema Sobre o Desastre de Lisboa, Voltaire causou muita reflexão, mas talvez tenha ido ainda mais longe com a publicação de Cândido, em 1759, quatro anos depois do terremoto.

Silio Boccanera — O famoso romance de Voltaire.
Edward Paice — Isso, o famoso romance de Voltaire que acabou refutando definitivamente os pontos de vista de Leibniz e Alexander Pope no início do século 18, que promulgavam uma adesão irrestrita ao Otimismo. Alguém afirmou que seria o último desastre natural da História em que Deus teria o papel principal. Acho fantástica essa descrição. Começamos a ter, por causa de Voltaire, uma visão mais humanista. O homem passa a ter o papel principal. Não significa o fim da religião.

Silio Boccanera — É o Iluminismo.
Edward Paice — Estamos falando sobre o Iluminismo, exatamente. Três décadas depois, em 1789, veio a Revolução Francesa, quando todo o pensamento ocidental está mudando. Mas tudo isso começou precisamente em 1º de novembro de 1755, na reação de Voltaire com o poema sobre o desastre, e a resposta de Rousseau, nos últimos estertores do Otimismo. Em 1760, após um intervalo de cinco anos, é possível ver que os cientistas, pela primeira vez, estão tentando separar Deus daquilo que a maioria das pessoas acredita hoje ter se tratado de um fenômeno estritamente natural.

Silio Boccanera — O que é um passo enorme.
Edward Paice — É um passo enorme. E, na minha opinião, o interessante é a rapidez com que tudo aconteceu. John Mitchell, que é considerado o pai da sismologia moderna, em seus escritos de 1760, desacreditou completamente a velha visão aristotélica de interpretação dos terremotos. O que era completamente único e original na tese de Mitchell de 1760 era a teoria das ondas sísmicas e a existência das falhas geológicas. Esses dois elementos… Suas ideias foram aceitas imediatamente, mas, depois, aos poucos, foram sendo colocadas de lado até a ciência da Sismologia começar a crescer muitíssimo no início do século.

Silio Boccanera — Vamos falar sobre a reconstrução e o dinheiro ou a falta de dinheiro para a reconstrução. Pombal estava encarregado da situação. Ele precisava reconstruir Lisboa o mais rápido possível, mas os recursos de Portugal, na época, vinham do Brasil, eram o ouro do Brasil.
Edward Paice —
Com certeza.

Silio Boccanera — E ele precisava de mais ouro para poder construir. Isso tem uma ligação direta com a história do Brasil. O ouro vinha de Minas Gerais, da cidade de Vila Rica na época, hoje Ouro Preto. Pombal resolve não só melhorar a cobrança de impostos mas cobrar ainda mais, o que deixou irada a burguesia daquela região e precipitou o movimento de emancipação. Portanto, uma decisão de Pombal como consequência do terremoto gerou essa movimentação no Brasil. Tenho certeza de que isso aconteceu por toda parte, em todas as colônias portuguesas.
Edward Paice — O Brasil era a grande galinha dos ovos de ouro. Portugal está numa situação bastante delicada, está totalmente falido. E é a descoberta de ouro e diamantes no Brasil – de diamantes a partir de 1720 – que permitiu a Portugal, como se dizia na época: “fazer bonito na Europa”. Foi isso que salvou Portugal. Se não fosse isso, de acordo com muitos de seus vizinhos, não havia sentido para a existência de Portugal. O que era Portugal? No que dizia respeito à Europa, à época do terremoto de 1755, para todos os seus parceiros comerciais, Portugal era o Brasil. Portugal era a ponte. A situação em 1750 é que Portugal tem um enorme déficit na balança comercial, especialmente com a Inglaterra. A Inglaterra fornece todos os bens de que Portugal necessita, de roupas a brinquedos e relógios. É um pesadelo econômico. O déficit da balança comercial de Portugal era de cerca de um milhão de libras anuais. É uma quantia gigantesca.

Silio Boccanera — E eles não tinham recursos próprios. Precisavam garantir que os recursos do Brasil viessem com mais frequência e em maior quantidade, para poderem bancar os reparos, a reconstrução.
Edward Paice — O maior erro do governo português na primeira metade do século 18 foi não diversificar a economia. Esse é um problema que conhecemos bem hoje, especialmente se considerarmos os países africanos, ricos em recursos naturais, mas sem indústrias. Era o mesmo problema: era “a maldição holandesa” como se chama hoje em termos econômicos.

Silio Boccanera — “Se podemos extrair tudo do Brasil, por que fazer outra coisa?”
Edward Paice — Algumas pessoas que pensam mais à frente, como o próprio Pombal, que havia sido embaixador, tinham consciência da gravidade do problema. Vários outros, como embaixadores e cientistas, também tinham essa consciência, mas não opinavam no governo. Tratava-se de um governo absolutista durante o reinado do pai de D. José I. Não há espaço para discussões. Quem tinha ideias brilhantes migrava para o Brasil – como meio milhão de portugueses fizeram durante o século 18 – ou iam morar no estrangeiro.

Silio Boccanera — E eles ainda precisavam de mais.
Edward Paice — Precisavam de mais. Os recursos precisavam continuar fluindo porque a sobrevivência de Portugal… Havia um grande medo, de certa forma justificado, por parte de Pombal e muitos portugueses, de que Lisboa precisa continuar sendo a ponte para que o ouro e os diamantes do Brasil fluam para a Europa, especialmente para os mercados de Londres e Amsterdã, para saldar a dívida comercial… Se Lisboa deixasse de fazer a ponte para o fluxo desses tesouros, não haveria mais interesse em Portugal. E estávamos às vésperas do primeiro conflito global, a Guerra dos sete anos. Mas foi o primeiro conflito que se refletiu nas colônias também. Os conflitos já estavam ocorrendo na América do Norte. Inglaterra e França já estavam em guerra como sempre estiveram desde 1754. Portanto, a guerra já havia começado. Portugal estava muito temeroso. S e a Inglaterra não cumprisse seu papel habitual de defensora de Portugal em épocas de conflitos pan-europeus, ninguém mais o faria. E o país seria invadido.

Silio Boccanera — Eles precisam continuar comprando produtos ingleses. Para continuar comprando os produtos, agradar os ingleses e garantir sua proteção, eles precisam dos recursos do Brasil. Quando o terremoto acontece, eles precisam de mais recursos, aumentam os impostos, o que no Brasil é chamado de “Derrama”, uma grande demanda por mais dinheiro. Aí, o pessoal de Minas Gerais decide que era melhor se tornar independente para não ter que pagar todos aqueles impostos. Há um elo enorme com a nossa história.
Edward Paice — Com certeza. Eu não sou especialista nos movimentos de independência do Brasil, mas é possível, como você mencionou antes… Essa data, 1º de novembro de 1755, é uma data marcante na história do Brasil, uma data importantíssima. Ela muda o jogo completamente. E apenas 53 anos depois, a família real acaba fugindo para o Brasil.

Silio Boccanera — E em termos dos números? A tentativa da Igreja e das autoridades portuguesas de camuflar o número de vítimas fez com que o terremoto não parecesse tão grave. Por que fizeram isso? Estavam se sentindo humilhados?
Edward Paice — Creio que por dois motivos básicos. O Marquês de Pombal era, em essência, o primeiro-ministro do rei, e ficou encarregado da contenção de danos e da reconstrução de Lisboa. Era um equivalente de Richelieu, do século anterior, na França. Pombal compreendia, creio eu, que o mundo com o qual Portugal negociava, percebia o pais como uma nação pequena. A estimativa da época é de que a população fosse de 2 milhões a 3,5 milhões de pessoas, no país inteiro.

Silio Boccanera — Lisboa tinha 200 mil.
Edward Paice — Uns 200 mil habitantes. Era a quarta maior cidade da Europa. Sabemos que Pombal estava extremamente preocupado. Se Portugal fosse visto pelos estrangeiros como um país devastado por causa do número de vítimas do desastre, poderia haver uma certa hesitação entre seus parceiros comerciais, o que tornaria a reconstrução de Lisboa e do país uma tarefa muito difícil, além de abrir portas para uma possível anexação por parte da França, da Inglaterra… Uma anexação da metrópole, de Portugal, ou das colônias… No tocante à Igreja, acho bastante interessante. A Igreja queria, logicamente, pintar o desastre como um castigo para os pecadores. A ira de Deus.

Silio Boccanera — O problema para a igreja seria como justificar a morte de religiosos.
Edward Paice —  O fato é que muitos dos que morreram eram religiosos. As estimativas variam, mas um em cada seis pessoas em Lisboa pertenciam a alguma ordem religiosa. Então, A Igreja quis diminuir as mortes entre os religiosos pelo menos. Se você olhar para a Freguesia de Santa Catarina, é o pé do Barro Alto. Havia mais pessoas registradas como padres nos registros da Freguesia do que comerciantes ou vendedores. Eram 223 padres somente nessa freguesia. Isso dá uma idéia da situação. A Igreja estava em uma posição complicada porque ela queria dizer que o que ocorreu foi uma punição divina, mas não poderia admitir ao mesmo tempo que tantos religiosos tivessem sido sacrificados.

Silio Boccanera — E crianças…
Edward Paice — Crianças em quantidades colossais.

Silio Boccanera — O senhor mencionou que Lisboa tinha 200 mil habitantes. No seu livro, o senhor diz que um quinto da população morreu.
Edward Paice — Existe um consenso geral, olhando as taxas de vítimas prováveis, de que o numero de mortes em Lisboa está entre 30 e 40 mil.

Silio Boccanera — Não é um número grande, mas quando você considera que é um quinto da população…
Edward Paice — …é um número muito grande. Para colocar em contexto, é um número 1,5 vez maior que a taxa de mortes em Londres na época, naquele ano. E Londres era uma cidade com uma população 4 vezes maior. Como eu digo no livro, que isso ocorra em qualquer cidade, e em certo ponto, a cidade era o estado, foi um desastre demográfico

Silio Boccanera — O terremoto e o tsunami tiveram efeitos na Escandinávia e no Caribe.
Edward Paice — Se você me permite, queria terminar sobre os efeitos do terremoto em Lisboa. Pesquisas científicas recentes, feitas nos últimos cinco anos, mostrou que pedras de 25 toneladas do Tejo foram deslocadas 30 metros ou mais. Há muito trabalhos interessantes, o que mostra que na comunidade científica este não foi um desastre esquecido. Na hora em que a onda chegou na região central de Lisboa, a praça principal, no rio, hoje em dia conhecido como a Praça do Comércio, a onda tinha seis metros de altura, e avançou 200 metros no continente.

Silio Boccanera — Que referencias o senhor poderia nos dar sobre as regiões destruídas em Lisboa?
Edward Paice — A Baixa está localizada em um leito de um rio pré-histórico indo para onde hoje está a Avenida Liberdade. Essa foi a região que sofreu maior dano. Do rio à Praça do Comércio, até o Rocio, da Avenida Liberdade até a estátua do Marques de Pombal, tudo ali foi destruído. Se você olhar para as margens do rio pre-histórico, de um lado você tem o morro onde fica o Castelo de São Jorge, do outro lado você tem o Bairro Alto. Embora haja uma formação rochosa, foi virtualmente destruída, ou seja, todos os edifícios foram danificados ou completamente destruídos. Lateralmente, o palácio do rei em Belém que fica a 8 quilõmetros mais ou menos, também sofreu danos significativos. O rei teve que sair do palácio e viver no jardim por muitos anos. Diziam que ele ficava muito nervoso de dormir sob um teto não apropriado. Logo após o terremoto, as pessoas se perguntavam se Lisboa seria reconstruída. Havia uma crença de que a família real se mudaria para o convento de Mafra, que foi uma criação colossal do seu pai, a 30 quilômetros da costa. A rainha acabou com esse rumor dizendo que seu marido não dormiria debaixo de um teto de pedra nunca mais.

Silio Boccanera — Uma das consequencias do terremoto foi fazer com que o que nós conhecemos hoje como cientistas desenvolvessem métodos de coletar dados e procurar explicações naturais.
Edward Paice — Sim. Em relação a isso, Portugal e Pombal também tiveram papel importante. Não foram apenas as testemunhas oculares reunidas pela Royal Society aqui em Londres. Pombal também pediu que todas as freguesias respondessem um questionário detalhado sobre o que havia ocorrido durante o terremoto, uma lista longa de perguntas. Na época não foi feito muita coisa com essas evidências. Mas representa a maior quantidade de informações sobre um terremoto até então. Foi a primeira documentação, que nós chamaríamos hoje de científica.

Silio Boccanera — Pombal teve um papel muito importante não apenas durante o terremoto, mas em toda a história de Portugal. Um homem que teve um impacto enorme, com um talento enorme como estadista. E ele cuidou do terremoto, da reconstrução, porque o rei não queria se envolver. Era ele que estava no comando em Portugal.
Edward Paice — A administração do dia-a-dia não era papel dos reis naquela época. Nós temos que lembrar isso. Enquanto o rei é pesadamente criticado em alguns livros por querer continuar gastando muito dinheiro em…

Silio Boccanera — O rei era José I.
Edward Paice — Exatamente. José I. Que tinha assumido o trono em 1750 com a morte de seu pai. Ele era um jovem, e tinha cinco anos de reinado

Silio Boccanera — Se divertindo, com mulheres.
Edward Paice — Gostava de mulheres menos do que o seu pai. A administração secular não estava em seu radar. E isso não era raro.

Silio Boccanera — Por sorte ele tinha o Marques de Pombal.
Edward Paice — Exatamente. Se você gosta ou não do Marques de Pombal, e eu acho difícil gostar dele, é difícil não ter um respeito enorme por ele.

Silio Boccanera — Não gosta dele por ser autoritário?
Edward Paice — Muito autoritário. No seu esforço para salvar a nação depois do terremoto, ele dificultou muito o comércio com a Inglaterra. Há muitas reclamações nos registros históricos ingleses sobre ele.

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