Incoerência legal

Lei Maria da Penha contraria indisponibilidade

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17 de março de 2011, 17h24

A Lei 11.340/06, alcunhada de Lei Maria da Penha, atendendo às reivindicações internas (artigo 226, parágrafo 8º, da CF) e internacionais,[1] trouxe ao ordenamento jurídico pátrio a proteção especial destinada às mulheres, como forma de coibir a violência praticada no ambiente doméstico, familiar ou de intimidade.

Dentre os debates que advieram na nova legislação deu-se especial atenção à necessidade (ou não) de representação no crime de lesão corporal de natureza leve, comumente praticado nos aludidos ambientes, prevalecendo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de que o referido delito apenas poderia ser processado mediante representação.[2] Diante disso, nos termos do artigo 16 da lei, os crimes de ação penal de iniciativa pública condicionada à representação (por exemplo: crime de ameaça), somente poderiam ter renunciada à representação na presença do juiz, antes do recebimento da denúncia, como forma de assegurar a manifestação espontânea da vítima. Porém, apesar do avanço derivado da nova lei, há mais que se caminhar nesta matéria, eis que até agora não se solucionou (ou sequer discutiu-se) outro problema levantado, isto é, a previsão da retratação da representação depois do oferecimento da denúncia, visto que se trata de procedimento – numa análise lógico-jurídica – impossível dentro da sistemática presente na Constituição Federal e da legislação ordinária.

Primeiramente, há que se realizar a distinção entre renúncia e retratação da representação, visto que aquela consiste no ato unilateral efetuado pela vítima antes da representação, enquanto esta seria a revogação da representação já externada. Numa tentativa de solucionar a má redação do legislador, Luiz Flávio Gomes assevera que a lei somente permitiria a renúncia antes do oferecimento da representação, situação na qual logicamente não haveria denúncia, pois, ausente representação da vítima não há que se falar sequer em instauração de procedimento investigatório. Nessa situação específica, aplicar-se-ia o artigo 16 da Lei 11.340/06, pois o termo antes do recebimento da denúncia foi empregado de forma errônea (palavras inúteis), permanecendo a hipótese de retratação da representação regida exclusivamente pelo artigo 25 do Código de Processo Penal.[3] Por outro lado, para Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto a lei incorreu em verdadeiro equívoco ao utilizar o termo renúncia,[4] porque buscava mencionar a retratação da representação. Diante disso, numa análise da jurisprudência, conclui-se que não há qualquer distinção na aplicação do artigo 25 do CPP e do artigo 16 da Lei 11.340/06, como proposto pela primeira corrente, prevalecendo o entendimento da segunda corrente de que o legislador quis tratar da retratação quando mencionou renúncia.

A partir disso, sob a ótica da Lei Maria da Penha, há alguns crimes que a legitimação para a persecução penal encontra-se guiada por outra ordem de interesses senão aquela conferida ao Estado de repressão à atividade criminosa, reservando-se à vítima o juízo de oportunidade e conveniência da instauração da ação penal, com o objetivo de evitar a produção de novos danos em seu patrimônio, seja moral, social ou psicológico. Tais delitos são apurados por meio da ação penal de iniciativa pública condicionada à representação (condição do exercício do direito à jurisdição penal[5]), em que a instauração da ação penal se dá somente após a exteriorização da vontade do ofendido. Ocorre que o marco temporal para a manifestação da vítima não é indefinido, vez que está adstrita ao oferecimento da denúncia, situação na qual não mais interferirá sobre a admissão da peça acusatória. Esta conclusão é obtida porque exercido o direito de ação, por meio da dedução de uma pretensão acusatória, desde que presentes os requisitos legais, o Ministério Público não poderá desistir nem dispor do direito desempenhado,[6] inexistindo espaço para intromissão da ofendida.

Desse modo, o CP (artigo 102) e o CPP (artigo 25) ao tratarem da representação da vítima trazem que a retratação a tal direito somente pode ser exercido antes do oferecimento de denúncia, visto que apresentada a exordial não mais deterá legitimidade para atuar no processo. Todavia, em total contrariedade ao que está exposto em nossa legislação, o artigo 16 da Lei Maria da Penha inovou ao introduzir a possibilidade da vítima renunciar à representação depois de oferecida a denúncia, o que levaria o magistrado a rejeitá-la, com esteio em verdadeira anomalia jurídica.

A lógica da impossibilidade da vítima não interferir no processo após o oferecimento da denúncia é simples, eis que ela não mais possui titularidade ativa para alterar a pretensão deduzida pelo Ministério Público, que, apesar da existência da necessidade de representação em determinados casos, continua figurando como titular da ação penal de iniciativa pública (artigo 102, inciso I, CF e artigo 24, CPP).

Segundo Eduardo Luiz Santos Cabette, “nos casos de violência doméstica contra a mulher, derrogado o art. 25, CPP, para alongar o tempo para a retratação (jamais ‘renúncia’), teria o legislador criado uma nova formalidade processual antes do recebimento da denúncia, qual seja, a oitiva da vítima para que se manifeste quanto à eventual retratação da representação anteriormente ofertada”.[7] Entretanto, não há fundamento que justifique a inserção de formalidade processual no interregno entre o oferecimento e o recebimento da denúncia, de modo a obstaculizar a promoção da ação penal de iniciativa pública pelo legítimo titular, visto que, uma vez recebida a denúncia, a vítima somente atuaria como assistente de acusação, ou seja, numa atuação acessória a do Ministério Público, fato que reforça a ideia sobre a impossibilidade de sobreposição ao entendimento externado pelo Parquet.

Aury Lopes Junior, ao tratar da legitimidade ativa da ação penal, assevera que “É ocupada pelo titular da pretensão acusatória. Especificamente no processo penal, a legitimidade decorre da sistemática legal adotada pelo legislador brasileiro e não propriamente do interesse. Por imperativo legal, nos delitos de ação penal de iniciativa pública, o Ministério Público será sempre legitimado para agir.”[8] Diante disso, não há espaço para se admitir a interferência da vítima nos moldes previsto na Lei Maria da Penha, eis que os princípios da obrigatoriedade e indisponibilidade conferidos ao Ministério Público e concretizados com o oferecimento da denúncia, vedam o não recebimento da peça acusatória. Ora, se o oferecimento da denúncia torna a ação penal indisponível ao seu titular, não há fundamento ou instituto jurídico (e muito menos lógico) que dê respaldo ao artigo 16 da Lei 11.340/06, em que a vítima – mesmo fora da relação jurídica – teria condições de dispor da ação penal. Tal interpretação não decorre de mero preciosismo na aplicação da legislação vigente, mas se dá por força de lógica e coerência das normas constitucionais e processuais penais vigentes, as quais prevêem os titulares da ação penal.

Corroborando a tese do presente trabalho, Hélio Tornaghi afirma que “o silêncio do ofendido, a falta de manifestação de vontade, é obstáculo à atuação do Ministério Público. Uma vez removido esse óbice se o Ministério Público já iniciou a ação, com o oferecimento da denúncia, já não produz efeitos a retratação do ofendido, pois do contrário ficaria este com o poder de invalidar os atos do Ministério Público e o próprio processo, o que está inteiramente fora da vontade da lei”.[9] Assim, considerando que a criação de ato processual específico para oitiva da vítima foi uma solução louvável do legislador, como forma de evitar manifestações viciadas, entende-se que a audiência sobre a deliberação da retratação da representação deve ser realizada antes do oferecimento da denúncia, resguardando-se, dessa forma, a principologia e a sistemática legal proposta pela Lei Maria da Penha.

Portanto, a regra inscrita no artigo 16 da Lei 11.340/06 deve ser aplicada parcialmente, no que tange apenas à realização da audiência a respeito da retratação da representação, permanecendo incólume a regra do artigo 25 do CPP e artigo 102, CP, porque, uma vez oferecida a denúncia pelo Ministério Público com base em regular representação, não há respaldo legal para a vítima interferir nessa fase do processo, tendo em vista que sua atuação está exaurida, cabendo ao parquet, titular da ação penal de iniciativa pública, promovê-la e se manifestar como lhe for pertinente.


[1] Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 10ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2009, 196-204.

[2] HC 137.729/PE, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 22/11/2010.

[3] Lei da violência contra a mulher: renúncia e representação da vítima. <http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20060911143243449>. Acesso em 06.dez.10.

[4] Legislação criminal especial. – São Paulo: RT, 2009, p. 1058.

[5] TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo penal. – São Paulo: RT, 2002, p. 126.

[6] GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 305-307.

[7] Anotações críticas sobre a lei de violência doméstica e familiar contra a mulher. <www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 06.dez.10.

[8] Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3ª ed. Vol.1 – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 341.

[9] Apud TUCCI, Rogério Lauria. Op. cit., p. 130.

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