Demarcação de terras

Citação por edital é razoável à demarcação de terra

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15 de março de 2011, 4h12

Proprietários de imóveis sitos na faixa litorânea vêm lançando mão de ações em juízo para questionar a legitimidade do ato da Secretaria de Patrimônio da União que, no exercício da prerrogativa conferida pelo artigo 9º do Decreto-Lei 9.760/46[1], demarca terras como sendo de Marinha; públicas, portanto[2]. Ações como tais ganham corpo todas as vezes que o órgão leva a cabo o procedimento demarcatório em uma dada região costeira[3], e veiculam uma ampla sorte de questionamentos, de regra baseados na surpresa que um proprietário até então alodial, ou simples possuidor, sustenta estar experimentando com a qualificação de pública da terra que ocupava desembaraçadamente.

A tal propósito, e de entrada, calha assentar duas concepções que não raro deixam de ser observadas quando do ajuizamento de demandas em face da União. Primeiro, são juridicamente impossíveis as pretensões que colimarem ao afastamento da prerrogativa de o poder público, mediante de expediente administrativo próprio, constituir o imóvel em terreno de marinha. Assim realçar que qualquer título imobiliário emitido sem a participação da fazenda, titular do domínio sobre as áreas de marinha, afigurar-se-á inoponível à mesma. É que não existe, na hipótese em testilha, presunção de domínio emergida da Lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos). O seguinte aresto do Superior Tribunal de Justiça é lapidar à compreensão:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. TAXA DE OCUPAÇÃO. IMÓVEIS SITUADOS EM TERRENO DE MARINHA E TÍTULO EXPEDIDO PELO RGI NO SENTIDO DE SEREM OS RECORRENTES POSSUIDORES DO DOMÍNIO PLENO. IRREFUTÁVEL DIREITO DE PROPRIEDADE DA UNIÃO. ESTRITA OBSERVÂNCIA QUANTO AO PROCEDIMENTO DE DEMARCAÇÃO. PRESUNÇÃO JURIS TANTUM EM FAVOR DA UNIÃO.

1. Os terrenos de marinha são bens públicos e pertencem à União.

2. Consectariamente, algumas premissas devem ser assentadas a saber:

a) Os terrenos de marinha, cuja origem que remonta à época do Brasil-Colônia, são bens públicos dominicais de propriedade da União e estão previstos no Decreto-lei 9.760/46.

b) O procedimento de demarcação dos terrenos de marinha produz efeito meramente declaratório da propriedade da União sobre as áreas demarcadas.

c) O direito de propriedade, à Luz tanto do Código Civil Brasileiro de 1916 quanto do novo Código de 2002, adotou o sistema da presunção relativa (juris tantum) relativamente ao domínio, admitindo prova em contrário.

d) Não tem validade qualquer título de propriedade outorgado a particular de bem imóvel situado em área considerada como terreno de marinha ou acrescido.

e) Desnecessidade de ajuizamento de ação própria, pela União, para a anulação dos registros de propriedade dos ocupantes de terrenos de marinha, em razão de o procedimento administrativo de demarcação gozar dos atributos comuns a todos os atos administrativos: presunção de legitimidade, imperatividade, exigibilidade e executoriedade.

f) Infirmação da presunção de legitimidade do ato administrativo incumbe ao ocupante que tem o ônus da prova de que o imóvel não se situa em área de terreno de marinha.

g) Legitimidade da cobrança de taxa de ocupação pela União mesmo em relação aos ocupantes sem título por ela outorgado.

h) Ausência de fumus boni juris.

3. Sob esse enfoque, o título particular é inoponível quanto à UNIÃO nas hipóteses em que os imóveis situam-se em terrenos de marinha, revelando o domínio público quanto aos mesmos.

4. A Doutrina do tema não discrepa da jurisprudência da Corte ao sustentar que :

Os TERRENOS DE MARINHA são BENS DA UNIÃO, de forma ORIGINÁRIA. Significando dizer que a faixa dos TERRENOS DE MARINHA nunca esteve na propriedade de terceiros, pois, desde a criação da União ditos TERRENOS, já eram de sua propriedade, independentemente de estarem ou não demarcados. A existência dos TERRENOS DE MARINHA, antes mesmo da Demarcação, decorre da ficção jurídica resultante da lei que os criou. Embora sem definição corpórea , no plano abstrato, os TERRENOS DE MARINHA existem desde a criação do estado Brasileiro, uma vez que eles nasceram legalmente no Brasil-Colônia e foram incorporados pelo Brasil-Império. (in Revista de Estudos Jurídicos, Terrenos de Marinha, Eliseu Lemos Padilha, Vol. 20, pág. 38)

Os terrenos de marinha são bens públicos, pertencentes à União, a teor da redação incontroversa do inciso VII do artigo 20 da Constituição Federal. E isso não é novidade alguma, dado que os terrenos de marinha são considerados bens públicos desde o período colonial, conforme retrata a Ordem Régia de 4 de dezembro de 1710, cujo teor desta última apregoava "que as sesmarias nunca deveriam compreender a marinha que sempre deve estar desimpedida para qualquer incidente do meu serviço, e de defensa da terra."

Vê-se, desde períodos remotos da história nacional, que os terrenos de marinha sempre foram relacionados à defesa do território. A intenção era deixar desimpedida a faixa de terra próxima da costa, para nela realizar movimentos militares, instalar equipamentos de guerra, etc. Por essa razão, em princípio, é que os terrenos de marinha são bens públicos e, ademais, pertencentes à União, na medida em que é dela a competência para promover a defesa nacional (inciso III do artigo 21 da Constituição Federal). (in Direito Público, Estudos em Homenagem ao Professor Adilson Abreu Dallari, Terrenos de Marinha: aspectos destacados, Joel de Menezes Niebuhr, Ed. Delrey, pág. 354)

O Direito da União aos terrenos de marinha decorre, não só implicitamente, das disposições constitucionais vigentes, por motivos que interessam à defesa nacional, à vigilância da costa, à construção e exploração dos portos, mas ainda de princípios imemoriais que só poderiam ser revogados por cláusula expressa da própria Constituição. (in Tratado de Direito Administrativo, Themistocles Brandão Cavalcanti, Ed Livraria Freitas Bastos, 2ª Edição; pág. 110)

5. Deveras, a demarcação goza de todos os atributos inerentes aos atos administrativos, quais seja, presunção de legitimidade, exibilidade e imperatividade.

6. Consectariamente, é lícito à UNIÃO, na qualidade de Administração Pública, efetuar o lançamento das cobranças impugnadas, sem que haja necessidade de se valer das vias judiciais, porquanto atua com presunção juris tantum de legitimidade, fato jurídico que inverte o ônus de demandar, imputando-o ao recorrido. Precedentes: Resp 624.746 – RS, Relatora Ministra ELIANA CALMON, Segunda Turma, DJ de 30 de outubro de 2005 e REsp 409.303 – RS, Relator Ministro JOSÉ DELGADO, Primeira Turma, DJ de 14 de outubro de 2002.

7. Consectariamente, incidiu em error in judicando o aresto a quo ao concluir que "não pode o poder público, apenas através de procedimento administrativo demarcatório, considerar que o imóvel regularmente registrado como alodial, e há muito negociado como livre e desembargado, seja imediatamente havido como terreno de marinha, com a cobrança da chamada "taxa de ocupação". 8. Recurso especial provido. (REsp 798165/ES, RECURSO ESPECIAL 2005/0190667-0, PRIMEIRA TURMA, Relator Ministro LUIZ FUX, DJ 31.05.2007, p. 354)

Isto estabelecido, é certo para os efeitos deste artigo importará examinar apenas um dos argumentos autorais, porém central e invariavelmente erigido pelos proprietários, a saber, que a demarcação estaria írrita em virtude da ausência de sua intimação pessoal para acompanhar os procedimentos demarcatórios.

E à exata compreensão da espécie, impõe-se-nos resgatar brevemente as fases da demarcação: a inicial, a homologatória e a final. A primeira delas consiste em verificações técnicas, medições, e vistorias levadas a efeito pelo órgão curador do patrimônio, sendo por natureza inapta a gerar efeitos contra terceiros[4]. Diversamente a segunda, que consiste em dar a público o resultado da primeira etapa, ocasião na qual, aí sim, eventuais interessados poderão apresentar impugnações, gerando a instância administrativa recursal. Por fim, a SPU cadastra as novas ocupações verificadas e retifica, se o caso, as inscrições antecedentes. É a terceira fase.

Deste painel ressai que é com a homologação da demarcação da terra de marinha (segunda fase) que surge, para o particular, a possibilidade de guerrear judicialmente as conclusões da Secretaria do Patrimônio da União. Isto se não tiver obtido o acatamento de seus questionamentos na própria fase precedente de impugnações administrativas, evidente[5]. E em que exatamente consiste o inconformismo dos proprietários? Na intimação editalícia do art. 11 do Decreto-Lei 9.760/46. Textual:

Art. 11.  Para a realização da demarcação, a SPU convidará os interessados, por edital, para que no prazo de 60 (sessenta) dias ofereçam a estudo plantas, documentos e outros esclarecimentos concernentes aos terrenos compreendidos no trecho demarcando. (Redação dada pela Lei nº 11.481, de 2007)

Sustenta-se, linhas gerais, que a intimação de proprietários por edital, dado o seu caráter impessoal, violaria os princípios da ampla defesa e do contraditório. A demarcação da linha preamar para identificação dos terrenos de marinha, tendo como conseqüência a alteração da titularidade e a instituição de cobrança da taxa de ocupação, tornaria imprescindível a participação das partes interessadas da forma mais precisa possível. E contam respaldo considerável de sodalícios, inclusive o Superior Tribunal de Justiça.

Não é como pensamos, data máxima vênia.

De chofre, bem se veja que o convite (e não a intimação, como não raro propalado) por edital é tema expresso de previsão de lei. Verdade, reconheça-se, que a redação originária da norma aludia a edital ou a convite pessoal de interessados certos e incertos:

Art. 11. Para a realização do trabalho, o S. P. U. convidará os interessados, certos e incertos, pessoalmente ou por edital, para que no prazo de 60 (sessenta) dias ofereçam a estudo, se assim lhes convier, plantas, documentos e outros esclarecimentos concernentes aos terrenos compreendidos no trecho demarcando (N.R).

Mas tal circunstância não fará estabelecer a imprescindibilidade da convocação pessoal.

Causa inquietação imaginar como se processaria a convocação de interessados incertos senão pela via editalícia. Também é curial empolgar o seguinte questionamento: se a SPU está exatamente a demarcar terras costeiras, quem seriam os aludidos interessados certos? Em nosso sentir, é realmente o instrumento editalício que elimina todas essas ordens de dúvidas. Daí porque consta de texto expresso e vigente (desde 2007), conforme acima assentado. Autorizando racionalizar, por conseguinte, o motivo (correto) da alteração normativa procedida.

Frise-se: enquanto não houver demarcação da terra de marinha, não há falar-se em interessados certos. E se se conceber que os mesmos existam (as regras têm exceções, e para estes casos a lei revogada facultava o convite, e a atual estabelece o edital, como se viu), estaremos a cogitar de órgãos públicos e privados que possam colaborar com os trabalhos de demarcação, oferecendo “estudo, plantas, documentos e outros esclarecimentos concernentes aos terrenos”, tais como Município, IPHAN, dentre outros.

Careceria de propriedade, então, falar-se de cerceamento de defesa. Mormente quando as publicações da SPU se dão nos meios de grande circulação (e quanto a isto nenhuma das múltiplas ações queixa) e permitem a particulares do interior ou da faixa costeira apresentarem razões no bojo do procedimento demarcatório. Mais ainda quando o particular conta com uma ação de feições anulatórias, se o caso de entender-se lesado.

O desejo da corrente de pensamento que exige a notificação pessoal, instaurando-se um procedimento administrativo individual, também não tem amparo na realidade fática, é inviável. Qual não seria a legião de servidores públicos a mapear toda a vastidão do litoral brasileiro e a identificar, a um, todos os possíveis afetados pela demarcação da linha preamar média? Além dos vultosos dispêndios a expensas do contribuinte, tão logo a equipe de servidores acabasse de monitorar o litoral, e incontinenti teria de recomeçá-lo, uma vez que o trabalho, de tão extenso e duradouro, ensejaria novas ocupações por particulares, um novo estado fático. Que nos conste, apenas o IBGE, a cada decênio, logra promover uma empresa que tal.

Outrossim, detemo-nos a uma última objeção, a qual sustenta que o procedimento demarcatório implicaria alteração da titularidade dominial. Lida assim, a assertiva poderia ser considerada verdadeira. Sucede, entretanto, que a natureza da demarcação é simplesmente declaratória da propriedade (imemorial) do Poder Público, e não constitutiva. Confira-se novamente o STJ:

ADMINISTRATIVO. TERRENO DA MARINHA. RECONHECIMENTO DO DOMÍNIO DA UNIÃO MEDIANTE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO.

POSSIBILIDADE. PRESUNÇÃO IURIS TANTUM DE LEGITIMIDADE. TITULARIDADE ORIGINÁRIA. PRECEDENTES. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. O procedimento de demarcação dos terrenos de marinha tem efeito meramente declaratório. Além do que, o direito de propriedade no direito brasileiro goza de presunção relativa no que alude ao domínio.

2. Não tem validade qualquer título de propriedade outorgado a particular de bem imóvel situado em área considerada como terreno de marinha ou acrescido. Precedente: REsp 1.183.546/ES, de minha relatoria, Primeira Seção, DJe 29.9.2010 (submetido à sistemática dos recursos repetitivos).

3. É desnecessário o ajuizamento de ação própria, pela União, para a anulação dos registros de propriedade dos ocupantes de terrenos de marinha, em razão de o procedimento administrativo de demarcação gozar dos atributos comuns a todos os atos administrativos: presunção de legitimidade, imperatividade, exigibilidade e executoriedade. Precedente.

4. A jurisprudência desta Corte Superior possui firme entendimento no sentido de ser o procedimento administrativo demarcatório apto a ensejar a retificação do registro imobiliário para a propriedade da União, tendo em vista que a propriedade sobre os terrenos da marinha possuir caráter originário, o que importa o mero reconhecimento de propriedade. Ademais, o procedimento demarcatório tem presunção iuris tantum de legitimidade, detendo o suposto proprietário particular o ônus da prova em contrário.

5. Recurso especial provido.

(REsp 1204147/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/10/2010, DJe 25/10/2010)

Ressai, já daí, que o procedimento dos artigos 11 a 14 do Decreto-Lei 9.760/46 não será tendente a discutir propriedade, mas a declarar o exato local da linha da preamar média. O particular, que as mais das vezes apresentará um título alegadamente legitimador, não tem ensejo de discutir domínio no bojo da demarcação.

E é nesta esteira de pensamentos que se aguarda decisão do STF nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.264/PE, em sede da qual o art. 11 do supracitado normativo teve questionada sua conformidade ao ordenamento[6].


[1] Art. 9º. É da competência do Serviço do Patrimônio da União (S.P.U.) a determinação da posição das linhas do preamar médio do ano de 1831 e da média das enchentes ordinárias.

[2] CRFB, art. 20, VII.

[3] Incumbência esta que lhe cometia o ordenamento muito antes do DL 9.760/46, dês que as origens da propriedade da União sobre os terrenos de marinha remonta a priscas eras. Vale mencionar para pesquisa aos interessados: Decisão n° 136, de 06 de agosto de 1829; Aviso de 18 de julho de 1827; Circular de 21 de julho de 1827; Decisão nº 274, de 03 de outubro de 1832; Decisão nº 348, de 14 de novembro de 1832; Decisão n° 210, de 28 de março de 1840; Decisão n° 231, de 10 de julho de 1857; Decreto n° 6.617, de 29 de agosto de 1907; Decreto 3.979, de 31 de dezembro de 1919, dentre outros.

[4] Terceiros/Particulares não tomam conhecimento da mesma porque até a sua conclusão não existe o conhecimento de quem está ou de quem estaria inserido em terras de marinha.

[5] Imperioso observar, neste ponto, que a jurisprudência lhe confere o prazo do lustro para fazê-lo (Decreto 20.910/32), pena de configurar-se a prescrição Cf. STJ, 2ª T, RESP 1147589, DJ 24-3-2010.

[6] Julgamento da medida cautelar sobrestado aos 10.FEV.2011, para o aguardo da posse do décimo primeiro ministro da corte.

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