Pedido de remédio

Equipe técnica auxilia Justiça em questões de saúde

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8 de março de 2011, 7h41

Fiocruz
DIstribuição de remédios pelo SUS - FiocruzÉ comum os juízes serem favoráveis a pedidos de pacientes nos julgamentos sobre medicamentos. Eles se baseiam na Constituição, que estabelece de forma expressa que a saúde é um direito fundamental do ser humano e deve ser prestada de forma rápida. O problema é que, se por um lado a Justiça garante ao cidadão um direito constitucional, por outro o Poder Público arca com o ônus. Isso porque nem sempre tem previsão orçamentária para atender todas as solicitações, que não são poucas.

De acordo com um levantamento apresentado em novembro de 2010 pelo Conselho Nacional de Justiça, mais de 112 mil processos relacionados a demandas no setor de saúde tramitam nos tribunais brasileiros. Entre elas, as solicitações de remédios. Já o estudo Judicialização da Saúde Complementar — em que a Unimed Belo Horizonte analisou as decisões do Superior Tribunal de Justiça e dos tribunais de Justiça de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais entre 2005 e 2009 — aponta que 86% dos acórdãos são favoráveis aos pacientes.

A escassez de recursos e a ineficiência da gestão do SUS acabam gerando outros problemas, não só de ordem técnica, mas também de ordem teórica. Ao seguirem o que determina a Constituição de 1988, que elevou a saúde a um direito social, os juízes, que não possuem conhecimento específico sobre o assunto, interferem na gestão do Poder Público, muitas vezes sem embasamento técnico. É a judicialização da saúde.

Alguns operadores do Direito defendem que o juiz não pode decidir sobre o tema, devido a essa possível interferência em políticas públicas, sem ter dados técnicos. Em alguns casos, nem sempre o processo é o que parece. Um mapeamento dessas ações feito pela Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo em 2007 mostrou que alguns processos eram fruto de ações organizadas. Em entrevista à revista ConJur em 2009, o então procurador-geral Fábio Nusdeo explicou que foi identificada em algumas regiões uma demanda artificial por remédios específicos, criada por representantes de laboratórios.

Para a defensora pública Renata Flores Tibyriçá, que atua na unidade da Fazenda Pública da regional central de São Paulo, o ideal é que o cidadão solicite ao Poder Público a efetivação do seu direito, porém, nem sempre o Estado faz as políticas públicas necessárias para garantir o acesso à saúde. “A busca pelo Judiciário tem de ser a última opção, afinal, saúde é direito de todos, mas dever do Estado. Mas se isso não está sendo observado, a Justiça não pode simplesmente lavar as mãos, mesmo que isso acarrete uma interferência na administração pública. Os poderes são independentes, mas não estão isentos de controle”.

Em alguns estados, um ponto já foi esclarecido: o problema só será solucionado de forma integrada, com iniciativas que estabeleçam uma estrutura no Judiciário para a resolução dos processos de forma célere e que evite o surgimento de novas demandas. Nesse sentido, duas iniciativas se destacam. No Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça, em parceria com a Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil, criou o Núcleo de Atendimento Técnico (NAT) para auxiliar os juízes com informações técnicas e, assim evitar fraudes. Já em São Paulo, a Defensoria Pública, também em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado, soluciona esses conflitos pela via extrajudicial, que tem se mostrado mais rápida e eficiente.

Experiência fluminense
A parceria entre o TJ-RJ e a Secretaria de Saúde do Rio, que culminou na criação do NAT, começou em 2009. A intenção foi criar um grupo composto por profissionais da saúde que auxilia os juízes com pareceres técnicos em relação às ações sobre pedidos de medicamentos, insumos alimentares e material hospitalar.

A equipe é composta por quatro funcionários administrativos, responsáveis pelas rotinas do núcleo, 13 farmacêuticos, quatro nutricionistas e dois enfermeiros, além de uma coordenação formada por três farmacêuticos e um médico. Os processos que chegam ao NAT são cadastrados no banco de dados e distribuídos aos profissionais da equipe, para que eles possam analisar os casos e dar o parecer técnico. Depois, a avaliação é enviada à coordenação, que revisa e, caso considere necessário, propõe alterações no texto. A última etapa é o retorno do parecer para o cartório ou para a secretaria do juiz que o encaminhou.

De acordo com a assessora-chefe do NAT, Marcela de Araujo Calfo, a análise é feita com base nos documentos médicos apresentados no processo. O objetivo principal é esclarecer ao juiz, nos casos de medicamentos, se o pedido está de acordo com a patologia declarada, se as doses mínimas e máximas foram preservadas, se há interação medicamentosa entre os remédios prescritos, se há substitutos disponíveis no SUS para os medicamentos não padronizados que poderiam ser utilizados após avaliação médica, além do encaminhamento aos serviços de saúde responsáveis pelo atendimento daquela demanda.

A assessora-chefe explicou que o objetivo do grupo não é evitar a concessão das liminares, mas adequar o atendimento das demandas às regras do SUS. “A judicialização desses pedidos é um desvio do SUS, porque muitos remédios que são pleiteados já são oferecidos. O que acontece é o desconhecimento dos procedimentos necessários para que eles sejam retirados. Nesses casos, é só indicar a forma administrativa de como proceder. Identificamos que 40% da demanda não precisava existir”.

Os profissionais apenas apontam se o pedido de enquadra nas normas do SUS, cabendo ao juiz decidir quem realmente necessita dos remédios ou de tratamento específico. Nesse sentido, o NAT também funciona como um filtro. “Já nos deparamos com processos em que a doença do paciente não tinha relação com o medicamento pedido. Em um caso, o autor da ação solicitou oxibutimina, um medicamento usado para o tratamento de bexiga neurogênica, para tratar de hepatitice C. Quando a parte foi chamada para se manifestar, disse que já tinha se curado da doença. Porém, a hepatitice C não tem cura”.

Marcela explicou ainda que, ao encaminhar o paciente que recorreu à Justiça ao SUS, nos casos em que a solicitação estiver disponível, o NAT acelera o atendimento da demanda, pois, pela via judicial, o período entre o deferimento da tutela até o fornecimento do medicamento é, em média, um mês. Já o grupo técnico tem de emitir o parecer em até 48 horas, pois muitas ações tratam de pedidos de liminar. “Em casos complexos, que demandam mais tempo, pedimos autorização para extensão de prazo. Cerca de 80% desses pedidos são autorizados”, explicou Marcela. Entre eles, destacam-se ações com muitos pedidos de medicamentos diferentes ou de tratamentos disponíveis apenas no exterior.

Em média, 120 processos chegam ao NAT por mês. No primeiro ano de núcleo, foram dados 920 pareceres e, no ano passado, 1.448. Só neste ano, já foram emitidos 270 pareceres. “O núcleo foi implantado como um projeto piloto, a princípio, nas 9ª e 10ª Varas de Fazenda Pública. Meses depois, o trabalho foi estendido para todas as 13 Varas de Fazenda Pública da capital e para as 20 Câmaras Cíveis do Tribunal. Esse é um dos fatores que explica o aumento na demanda. Se considerarmos que o período em que o Judiciário ainda estava de recesso e os feriados neste ano, os números até agora não representam nem dois meses corridos”.

Via extrajudicial
Em São Paulo, um acordo firmado entre a Defensoria Pública e a Secretaria de Saúde do estado em março de 2008 reduziu o número de ações em 90%. A parceria tem como objetivo o recebimento extrajudicial de medicamentos, insumos e aparelhos quando o paciente não consegue obtê-los na rede pública de saúde. São casos de pessoas que precisam de tratamento para doenças como diabetes, Aids, hipertensão, câncer, paralisia cerebral, osteoporose, glaucoma, entre outros.

Segundo a defensora pública Renata Flores Tibyriçá, cerca de 20 processos são ajuizados por mês contra o governo do estado. Antes, eram, em média, 200. “Muitas vezes, o paciente não consegue o remédio porque não tem o que ele precisa no posto mais próximo da sua casa ou porque ele desconhece os protocolos do SUS. Isso necessariamente não precisa ser levado à Justiça”.

A maioria das solicitações são atendidas administrativamente, e não pela via judicial. No início, a Secretaria de Saúde colocou à disposição da Defensoria dois farmacêuticos, que verificavam onde havia o medicamento solicitado, encaminhando as pessoas que procuravam o órgão para os locais adequados. No entanto, a parceria deu tão certo que o Estado colocou à disposição um lugar que serve como referência para a dispensação dos remédios, a AME Maria Zélia, próximo à Estação de Metrô Belém.

Agora, quem comparece a uma unidade da Defensoria relatando dificuldades na obtenção de medicamentos recebe um formulário com os documentos necessários para pedir o remédio na AME, que funciona de segunda à sexta-feira, das 8h às 17h. No local, se o remédio constar da lista do Programa Dose Certa e estiver na AME, pode ser retirado na hora. Porém, se o posto não tiver o medicamento, o paciente é encaminhado para o posto mais próximo de sua casa em que o pedido estiver disponível.

Nos casos que tratam de itens que não estão na listagem de remédios, o paciente pode fazer um pedido administrativo, que será analisado e, sendo deferido, o remédio será entregue. Apenas se a Secretaria de Saúde informar a impossibilidade de fornecimento do produto, o interessado deve retornar à Defensoria Pública para que seja proposta uma ação judicial. “Existem formas de buscar soluções extrajudiciais. Muitas vezes, há um protocolo de atendimento sem que seja necessária a ação. Porém, quando não há outro jeito e recorremos à Justiça, em geral, temos conseguido resultados positivos, pois a jurisprudência no tribunal de Justiça é pela concessão dos remédios e insumos”, destacou a defensora.

Por exemplo, muitas demandas tratam de pedido de insulina para diabéticos. A lista do SUS prevê o fornecimento da insulina NPH que, em alguns casos, não surte mais efeito. Por isso, alguns médicos já receitam a Lantus (Clargina) ou a insulina Lispro, que não constam da lista e, por isso, o Poder Público se nega a oferecer. Os remédios disponíveis no SUS estão elencados na Portaria do Ministério da Saúde GM/MF 2.981, de 26 de novembro de 2009.

Pedidos justificados
Apesar de defender a solução do problema pela via extrajudicial, a defensora avalia que a grande demanda de ações de medicamentos contribuiu para que se tivesse uma dimensão do tamanho do problema e, com isso, se identificasse onde havia falhas. “Nós identificamos que, na maioria dos casos, o problema não é a falta do remédio, mas sim o acesso a ele, porque o medicamento estava num posto longe da moradia de quem precisava. Depois, percebemos que também havia falhas na prescrição dos remédios”.

A Defensoria Pública atende pessoas que não têm condições de arcar com os custos de um advogado, muito menos de medicamentos — alguns de uso contínuo. Logo, são pessoas medicadas por profissionais da própria rede pública, que conhecem os protocolos do SUS. “Mesmo assim, havia casos de receitas com remédios que não estão disponíveis na rede. Nosso trabalho também influenciou na conscientização desses profissionais para que eles justificassem o pedido e também orientassem os pacientes sobre onde encontrá-los”.

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