Poderes independentes

Representação judicial de órgão público é delicada

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7 de março de 2011, 16h44

O artigo 41 do Código Civil, ao cobrir todos os órgãos públicos federais sob o véu de pessoa jurídica una, reforçaria a interpretação de que todos sempre comparecem em juízo representados pela Advocacia-Geral da União. Conformemente, o artigo 7º do Código de Processo Civil[1] assegura a toda pessoa no exercício de seus direitos a capacidade de estar em juízo.

Assim, tais órgãos, por não configurarem pessoa jurídica per si não poderiam praticar atos processuais em nome próprio. Não é por outra razão que o artigo 12 do mesmo Código de Processo Civil dispõe que a União e os demais entes federativos se representam em juízo pelos respectivos procuradores.

Essas regras confluem com o artigo 131 da Constituição, que atribui à Advocacia-Geral da União a representação judicial e extrajudicial da União e as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo. Por exclusão, à primeira vista restaria à Advocacia do Senado Federal e aos órgãos jurídicos dos demais Poderes tão somente a consultoria e o assessoramento jurídico interno.

O regime jurídico da representação judicial de órgãos públicos é mais complexo, porém, do que parece. Essa concepção de que todos os atos da União e de seus órgãos integrantes têm liame causal com vontade que promana de fonte singular é incompatível com o princípio da separação de poderes. O princípio da independência confere ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário vontade própria. Portanto, cada um dos três Poderes são sujeitos de direitos, de cuja violação nascerá a correspondente pretensão.

A Constituição determina que os Poderes da União são independentes e harmônicos entre si (artigo 2º). Por serem harmônicos os Poderes, os conflitos devem ser evitados, mas por serem os Poderes independentes, os conflitos são, muitas vezes, inevitáveis. Quando esses conflitos forem judicializados, cada poder será representado pelo órgão jurídico próprio, por força do princípio do contraditório (inciso LV do artigo 5º da Constituição).

Não cabe à Advocacia-Geral da União, a não ser mediante mandato específico, a defesa de interesses do Judiciário e do Legislativo em ações judiciais cuja controvérsia envolva prerrogativas desses Poderes ou questões administrativas intrincadas com sua independência institucional.

O órgão de representação judicial e extrajudicial do Poder Executivo não poderia imbuir-se da função de promotor natural da tutela jurisdicional das prerrogativas dos Poderes republicanos rivais, contra as quais se arvora, no mais das vezes, o próprio presidente da República e seus órgãos auxiliares. Tal usurpação, inequívoca burla ao princípio da ampla defesa e do contraditório, feriria cláusula pétrea por marchar contra o princípio da separação dos poderes (inciso do III, alínea "d", parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição).

O saudoso ministro Victor Nunes Leal já se manifestou sobre a imperatividade lógica da capacidade judiciária do Poder Legislativo para manutenção do equilíbrio do sistema democrático:

Não resta dúvida de que a câmara de vereadores é apenas um órgão do município, incumbindo-lhe da função deliberativa da esfera local. Sendo, entretanto, um órgão independente do prefeito no nosso regime de divisão de poderes (que projeta suas consequências na própria esfera municipal), sua competência privativa envolve, necessariamente, direitos que não pertencem individualmente aos vereadores, mas a toda corporação de que fazem parte. Se o prefeito, por exemplo, viola esses direitos, não se pode conceber que não haja no ordenamento jurídico positivo do País um processo pelo qual a câmara de vereadores possa reivindicar suas prerrogativas. (Nunes Leal, 1960, pp. 424-439.).

Aliás, a questão já se encontra pacificada no Supremo Tribunal Federal:

a jurisprudência desta Corte reconhece a ocorrência de situações em que o Poder Legislativo necessite praticar em juízo, em nome próprio, uma série de atos processuais na defesa de sua autonomia e independência frente aos demais Poderes, nada impedindo que assim o faça por meio de um setor pertencente a sua estrutura administrativa, também responsável pela consultoria e assessoramento jurídico de seus demais órgãos. (Supremo Tribunal Federal, 2004.).

Não se trata essa capacidade de estar em juízo de um mero direito subjetivo do órgão legislativo, mas de uma verdadeira supergarantia constitucional, uma vez que sobre a relação institucional equilibrada entre os Poderes repousam a efetividade dos direitos fundamentais e a perfeita operatividade do princípio democrático.

Implicações da doutrina da capacidade judiciária do Poder Legislativo
A articulação entre a simetria interpoderes e a eficácia dos direitos fundamentais já estava esboçada na primeira Constituição do Brasil:

a Divisão e harmonia dos Poderes Politicos é o principio conservador dos Direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de fazer effectivas as garantias, que a Constituição offerece. (Brasil, 1824.).

Assim, a adequada interação entre os Poderes Políticos enunciados no artigo 2º da atual Constituição configura garantia das garantias dos direitos fundamentais, pois o Estado Democrático de Direito é tributário do pleno funcionamento do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.

A otimização da eficácia dos direitos fundamentais exige que se compreendam melhor as antinomias internas ao próprio Estado. Em vez de uma relação conformadora de direitos bipolar, é de se vislumbrar uma relação tripolar ou tricotômica, Estado/Governo/sociedade, e de se considerarem as clivagens políticas internas ao Estado e ao Governo.

O Parlamento precisa estar dotado de instrumentos que reduzam os riscos de que as incursões do Executivo e do Judiciário em seus procedimentos internos acabem por obliterar seu legítimo papel constitucional.

O presidencialismo de coalizão que vem se estabelecendo no Brasil (Santos, 2006). A formação de maiorias em função da governabilidade é um procedimento legítimo, mas o Parlamento tem funções que, decididamente, ultrapassam as de governo. Por isso, precisa estar imune à cooptação.

É sempre real o risco de captura do Congresso Nacional pelo Poder Executivo por meio de práticas distributivistas, como parece demonstrar Barry Ames (2003). O entorpecimento do Poder Legislativo, como temos insistido, é um grave risco ao Estado Democrático de Direito e à eficácia dos direitos fundamentais.

O fato, porém, é que Poder Executivo imperial, de que fala Abranches (1988), marca a organização dos Poderes no País desde os tempos da Independência. É de se ver que o inciso V do artigo 101 da Constituição de 1824 chegava a autorizar a dissolução da Câmara dos Deputados pelo imperador.

Como resposta a essa hipertrofia inercial do Governo e à circunstancial timidez do Parlamento, o Poder Judiciário tornou-se mais ativo, ora freando os impulsos do Executivo ora compelindo-o a implementar ou a ampliar políticas públicas já aprovadas pelo Legislador, ora transpondo o Poder Legislativo, regulamentando diretamente normas de eficácia limitada[2].

Esse ativismo, que é denominado na literatura internacional como judicialização da política (Tate e Valinder, 1995), condensa-se na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal, que aumentou o grau de sindicabilidade judicial do processo legislativo. Lembram esses dois autores que

muitos políticos e estudiosos têm visto com desconfiança o processo que substitui o julgamento político de instituições políticas majoritárias pelo de representantes normalmente não-eleitos da elite política e socioeconômica. (Idem, p. 5.).

A ampliação do contraditório para formação de consensos mais firmes em sede judicial, além de estar em linha com a modernas teorias dos Direitos Fundamentais, conforma-se, com o programa teórico de Jürgen Habermas, que concebe o desenvolvimento da democracia a partir estruturação de práticas argumentativas (2002).

A judicialização da política por meio de uma interpretação heterodoxa da eficácia direta dos direitos fundamentais pode tornar Parlamento um mero executor de decisões judiciais, como adverte José Carlos Vieira de Andrade (1976, p. 307-309).

Ademais, sempre que houver conflito em torno da legitimidade ad causam, deve operar o princípio da predominância de interesses, de que decorre que a competência deve ser atribuída ao órgão que, predominantemente, tiver interesse na matéria[3]. Portanto, se a questão tiver relação com o processo legislativo, a representação deve ser atribuída, desde logo, à Advocacia do Senado Federal.

À guisa de conclusão, pode-se sintetizar todo o exposto nos seguintes tópicos:

a) os órgãos despersonalizados têm capacidade processual para promover a tutela jurisdicional de suas prerrogativas, com fundamento nos princípios da inafastabilidade da jurisdição e da ampla defesa; logo, os órgãos legislativos gozam de capacidade processual para promover a tutela de suas prerrogativas institucionais;

b) o princípio da separação de poderes está teleologicamente intrincado com a promoção dos direitos fundamentais e com a operatividade do princípio democrático;

c) o Senado Federal tem interesses jurídicos específicos e competência a preservar, especialmente em um contexto de judicialização da política e de expansão do Governo em detrimento do Estado, que justifica a institucionalização de uma advocacia legislativa própria para aniquilar ou reduzir a assimetria informacional em matéria jurídica vis-à-vis o Poder Executivo;

d) a verificação judicial preliminar dos pressupostos e das condições da ação em que o Senado Federal reivindique a condição de parte interfere com a independência e o livre funcionamento do Poder Legislativo. Portanto, à luz dos princípios da independência e da separação dos poderes e os da inafastabilidade da jurisdição e da ampla defesa, o Senado Federal pode-se fazer representar em juízo por sua Advocacia sempre que lhe aprouver.

Bibliografia
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[1] Art. 7o Toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem capacidade para estar em juízo.

[2] O que ocorreu, por exemplo, no julgamento do mandado de segurança 712/PA (Supremo Tribunal Federal, 2008).

[3] O princípio, referido por Alexandre de Moraes (2002, p. 742) e outros constitucionalistas, foi cunhado como critério para definição das competências dos entes federativos, ou seja, do ponto de vista organizacional da Federação, foi aplicado a partir de um corte vertical. Mutatis mutandis, presta-se também como critério de solução para conflitos de competência entre órgãos de poderes republicanos diferentes, ou seja, a partir de um corte horizontal.

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