Ideias do Milênio

"Desemprego e miséria levaram Hitler ao poder"

Autor

4 de março de 2011, 7h16

Paulo Pimentel
Richard Evans - Paulo Pimentel

A entrevista do Milênio desta semana trata do fascínio mundial por histórias do período nazista, de Adolf Hitler e da II Guerra Mundial. O historiador britânico Richard Evans, entrevistado pelo jornalista Silio Bocannera, diz que a explicação para este fato está na agressividade do regime nazista, sem paralelos na história, e que isso levanta questões acerca da percepção humana, moral, histórica e filosófica. “Alguns outros ditadores e tiranos chegaram perto, mas o belicismo, o genocídio, as atrocidades que os nazistas cometeram vão muito além de qualquer outra coisa”, explica o professor da Universidade de Cambridge, na Inglaterra.

Durante a entrevista, Evans fez um histórico da chegada do partido nazista ao poder. Cinco anos antes de Hitler assumir o país, seu partido recebeu menos de 3% dos votos nas eleições gerais. O crack da Bolsa de Nova York, em 1929, mudou a situação da Alemanha, com falências, desemprego, miséria. “A classe média, embora não acreditasse em tudo que os nazistas diziam, concordou com a supressão do movimento operário, em especial do Partido Comunista, que era forte na Alemanha. A classe média alemã, especialmente no norte protestante do país, tinha muito medo do comunismo. Hitler explorou esse medo de forma muito inteligente.”

Richard Evans tem certeza de que isso não vai acontecer novamente. A História não se repete, afirma. Segundo ele, a lembrança do nazismo e do Holocausto não faz apenas com que as pessoas fiquem fascinadas pelo tema. Também garante que eles não vão se repetir.

Leia a entrevista de Richard Evans a Silio Boccanera:

A fascinação do público mundial com o período nazista, Hitler e a Segunda Guerra Mundial não dá sinais de parar, apesar do tempo decorrido. O cinema produziu uma categoria específica de obras sobre o período, parte factual, outras de ficção, mas sempre inspiradas naquela época que ainda intriga o público. Para citar só dois filmes recentes. Tom Cruise apareceu em Operação Valquíria como oficial nazista que na história real tentou matar Hitler em 1944. O Oscar de 2009 para melhor filme estrangeiro foi para a produção alemã “A Fita Branca”, que pinta um quadro da sociedade germânica no início do século 20 quando já despontavam as sementes de repressão e violência que iriam explodir em duas guerra mundiais. Poucos anos atrás o ator suíço Bruno Ganz chocou platéias no papel do ditador em “A Queda: As Últimas Horas de Hitler”.

E uma exposição recente em Berlim sobre o Führer provocou debates acalorados na Alemanha sobre o perigo de recriar idolatria em torno de Hitler. A literatura sobre o período também é vasta, como é numerosa a produção de história em cima da origem, ascensão e queda do Terceiro Reich. Entre as obras mais respeitadas e elogiadas sobre período nazista estão os três volumes escritos pelo britânico Richard Evans, professor de História da Universidade de Cambridge na Inglaterra. O trabalho dele foi traduzido em vários idiomas e um volume já foi lançado no Brasil. Outros historiadores elogiaram o vasto trabalho de pesquisa e analise de Evans. O Milênio foi ao encontro de Richard Evans na Universidade de Cambridge onde ele chefia o departamento de História.

Silio Boccanera — Você escreveu uma trilogia sobre o Terceiro Reich, sobre esse período. Já faz 80 anos que Hitler chegou ao poder, a guerra acabou há 65 anos, e ainda há um fascínio por esse período, como seus livros demonstram. Qual seria o motivo desse fascínio?
Richard J. Evans — Acho que, acima de tudo, é por se tratar de uma história dramática da queda de uma democracia promissora, a República de Weimar, que cai em 1932, 1933, sendo substituída por uma ditadura. Nos interessamos por como as democracias fracassam e caem, e essa é uma das histórias mais dramáticas. Mas o mais importante é o que segue. Os crimes do regime nazista foram tão enormes e hediondos que não há paralelos na história da humanidade. Alguns outros ditadores e tiranos chegaram perto, mas o belicismo, o genocídio, as atrocidades que os nazistas cometeram vão muito além de qualquer outra coisa, o que levanta muitas questões acerca da percepção humana, da percepção moral, da percepção histórica, filosófica. Levanta muitas questões que continuam a nos preocupar nos dias de hoje.

Silio Boccanera — Com todos esses filmes, livros, documentários e seriados de TV, existe o perigo de se banalizar esse período?
Richard J. Evans — Com certeza. Por haver tanto interesse no período nazista, há quem queira faturar em cima dele, banalizá-lo. Há muitos programas de TV sobre a vida sexual de Hitler ou coisa do gênero, abordando aspectos triviais da questão. Ou programas sensacionalistas: “Hitler teria tido um filho com Unity Mitford, sua admiradora inglesa?” Fizeram um programa inteiro sobre isso há pouco tempo na Inglaterra. E concluíram, no final, que era muito improvável. Mas incitaram os espectadores com essa história, como se não houvesse nada mais interessante na Alemanha nazista. É claro que esse perigo existe. Mas há também seriados muito bons e filmes de qualidade. Até Hollywood consegue fazer bons filmes. “Operação Valquíria”, com Tom Cruise, sobre a resistência alemã, é um bom filme, foi bem feito, é bastante fiel aos registros históricos. O filme alemão “A Queda”, sobre os últimos dias de Hitler, foi… Há certos aspectos que podem ser criticados, mas, de forma geral, foi uma caracterização excelente.

Silio Boccanera — Diz-se frequentemente que a História é feita de fatores socioeconômicos e políticos, não de personalidades. Mas, no caso da Alemanha, do período nazista e da guerra… Tudo isso poderia ter acontecido sem alguém como Hitler?
Richard J. Evans — O que é fascinante na História é a mistura de fatores maiores, de tendências mais amplas, com personalidades individuais e outras em jogo. Para o historiador, é fascinante tentar entender como tudo isso se encaixa em diferentes circunstâncias. No caso da Alemanha nazista e da República de Weimar, que a precedeu, era muito improvável que alguém como Hitler chegasse ao poder durante toda a República de Weimar. Devemos lembrar que, em 1928, cinco anos antes de Hitler assumir o poder, o partido nazista obteve menos de 3% dos votos nas eleições gerais. O que mudou esse quadro foi a Depressão, o crack da Bolsa de Valores seguido da retirada dos investimentos americanos na Alemanha, o colapso dos negócios, as falências, os 35% de desemprego, a miséria profunda que parecia não ter fim. Isso fez com que os alemães recordassem os desastres anteriores da República de Weimar: a humilhação imposta pelo Tratado de Versalhes, a hiperinflação disseminada… Tudo isso contribuiu para que os nazistas tivessem a chance de ter algum apelo eleitoral, de se tornarem um partido das massas. E, em poucos meses, eles se transformaram em um dos principais partidos políticos. E em meados de 1932, o partido nazista era o maior partido político. Mesmo assim, obteve apenas 34% dos votos, pouco mais de um terço do total. Mesmo tendo conseguido pouco mais de um terço dos votos, era o maior partido.

Silio Boccanera — Hitler chega ao poder em 1933. A essa altura, por todas as razões que você já mencionou, havia na Alemanha um clamor por um governo forte, um governo autoritário. Poderia ter surgido um governo autoritário de outro tipo, sem Hitler, sem os nazistas?
Richard J. Evans — As alternativas na Alemanha em 1932 e 1933 eram um governo autoritário liderado pelos conservadores e pelo exército e uma ditadura estabelecida por Hitler. Naquela altura, eram muito escassas as chances de a democracia sobreviver.

Silio Boccanera — Quando ele chegou ao poder em 1933 — de forma legal, como mencionamos, ele não tomou o poder por meio de uma revolução, ele chegou ao poder por meios legais — em seis meses, transformou a Alemanha numa ditadura. Como ele fez isso tão rápido?
Richard J. Evans — Hitler não chegou ao poder de forma legal. Ele foi instaurado no poder como líder do maior partido por um pequeno grupo de conservadores que apoiava o idoso presidente Von Hildenburg e seu amigo Von Papen. Eles pretendiam usar Hitler…

Silio Boccanera — Manipulá-lo?
Richard J. Evans — Manipulá-lo para conseguir o apoio das massas. Eles praticamente não tinham votos, mas queriam transformar a Alemanha num estado autoritário para debelar o comunismo e esmagar os marxistas, sociais-democratas e outros. Mas, quando Hitler se torna chanceler, ele usa essa posição — com uma minoria de três nazistas num gabinete dominado por conservadores — para criar um sistema unipartidário em seis meses. Ele fez isso de duas maneiras: em primeiro lugar (como é bem sabido, pois está em todos os livros de História), fazendo com que o presidente baixasse um decreto suprimindo as liberdades civis depois que o Reichstag, o Parlamento, foi incendiado em fevereiro. E, depois, fazendo com que o Reichstag, o Parlamento, aprovasse em março o Ato de Habilitação do Poder, que dava a Hitler e a seu gabinete poderes para legislar por conta própria, sem a participação do Parlamento.

Silio Boccanera — Ele tinha assumido o poder em janeiro?
Richard J. Evans — Ele não tinha propriamente assumido o poder. Ele ainda precisava transformar o cargo de chanceler, de chefe de governo, em líder da nação. Em 1932, havia uma espécie de vácuo de poder na Alemanha, e diferentes grupos tentavam preenchê-lo. O Parlamento tinha sido dissolvido, o país era governado por decretos, todos discordavam profundamente sobre o que fazer com relação à Depressão e sobre como resolver a situação. Hitler preencheu esse espaço entre janeiro e julho de 1933. Do que normalmente se esquece é que ele fez isso usando amplamente a violência e a intimidação. Quase imediatamente surgiram os campos de concentração. Mais de 100 mil opositores do nazismo foram mandados para lá, foram espancados, maltratados e libertados com a condição de se comportarem bem. Houve, de acordo com dados oficiais, mais de 600 assassinatos naqueles meses. A milícia criada por Hitler torturava pessoas… Trabalhando para os nazistas, elas prendiam sociais-democratas e comunistas. Mas os sociais-democratas e comunistas também tinham obtido um terço, ou pouco mais de um terço dos votos nas eleições gerais. Combinados, eles eram ligeiramente mais fortes em termos eleitorais do que os nazistas. Se não brigassem entre si… Esse era o problema.

Silio Boccanera — É o que sempre acontece. Você falou na violência, na repressão. Havia um amplo apoio popular para isso. Podemos entender a identificação do povo com a ideologia nazista, talvez com os métodos políticos em outras áreas, mas e a violência? As pessoas denunciavam umas às outras, havia espiões, havia uma repressão interna muito grande. O povo concordou com isso tudo.
Richard J. Evans — Não foi o povo. É importante fazer a distinção. De forma geral, as classes médias, embora não acreditassem em tudo que os nazistas diziam, concordaram com a supressão do movimento operário, em especial do Partido Comunista, que era muito forte na Alemanha, tendo conseguido 17% dos votos nas eleições de 1932. Eles queriam uma Alemanha soviética, queriam uma ditadura aos moldes da soviética. As classes médias alemãs, os habitantes das zonas rurais, especialmente no norte protestante da Alemanha, tinham muito medo do comunismo. Hitler explorou esse medo de forma muito inteligente.

Silio Boccanera — Nós todos conhecemos as ideias de Hitler: o antissemitismo radical, a crença de que a História era uma luta racial, a luta contra o marxismo, a inevitabilidade da guerra, a superioridade alemã e a necessidade de espaço para o povo alemão. Ele desenvolveu essas ideias em seus últimos anos de vida ou elas já apareciam no seu livro Minha Luta, no começo de sua vida política?
Richard J. Evans — O antissemitismo já aparece em seu 1º pronunciamento político, em 1919, antes do livro Minha Luta, que é uma autobiografia e um tratado político, escrito na prisão em 1924, 1925. A ideia de que os judeus do mundo todo estavam envolvidos numa conspiração para destruir a Alemanha aparece desde o início. Era a explicação que ele dava a si mesmo, era a explicação paranóica de como a Alemanha havia perdido a Primeira Guerra, e a famosa “punhalada nas costas”, com a qual, segundo ele, os conspiradores judeus tinham destruído o exército alemão por meio de uma revolução. O que, logicamente, não faz o menor sentido. O exército alemão foi derrotado no campo de batalha, depois veio a revolução. E ela não foi liderada por judeus. Os judeus na Alemanha eram uma pequeníssima minoria, eram menos de 1% da população. Isso já estava presente. Outra coisa que já estava presente e que reaparece nos anos 20, e que pode ser encontrada em Minha Luta, em seus primeiros esboços, é a ideia de Lebensraum, da conquista do espaço vital. Em outras palavras, a conquista do Leste Europeu — Polônia, Ucrânia, Bielorússia e países balcânicos e grande parte da Rússia Ocidental — para obter alimentos, matérias primas, petróleo, todos os tipos de produtos de que a Alemanha precisava. Tudo isso nasceu de sua experiência como soldados na Primeira Guerra, quando houve um bloqueio à Alemanha pelos aliados, e mais de meio milhão de alemães morreram de desnutrição e de doenças derivadas.

Silio Boccanera — Uma afirmação muito comum aqui no Reino Unido e nos EUA é que os americanos e os britânicos foram os que realmente derrotaram Hitler, com uma pequena contribuição dos soviéticos. Qual é a sua opinião sobre o papel desses países?
Richard J. Evans — Isso não é verdade. Essa percepção está mudando. Hitler temia os soviéticos em parte por achar que eles destruiriam a Alemanha completamente. Eles eram bolcheviques liderados por judeus que estavam determinados a destruir a Alemanha. Mas o próprio Stalin era antissemita, portanto era uma impressão equivocada. Quanto aos americanos e britânicos, ele tinha sentimentos conflitantes, especialmente com relação aos britânicos. Ele inicialmente esperava que os britânicos ficassem neutros. Mas é importante lembrar que, em nenhum momento —desde a invasão da União Soviética em junho de 1941 até o final de guerra — havia menos de dois terços das forças armadas alemãs lutando no front Oriental. É o maior palco da guerra para os alemães.

Silio Boccanera — A invasão da Normandia, então, foi um palco menor, no que dizia respeito a Hitler.
Richard J. Evans — Com certeza. Não era lá o principal local onde a guerra se desenrolava. E o número de soldados mortos, o número de baixas no front Oriental durante a guerra, foi maior do que todos os outros palcos de batalha (Europa, Ásia e outros locais) combinados. Foi um número inimaginável.

Silio Boccanera — Vamos falar sobre o Holocausto, o extermínio planejado de milhares de judeus pela máquina nazista. Até hoje, algumas pessoas — e você sabe disso por estar envolvido num julgamento com esse tema — afirmam que o próprio Hitler não tinha conhecimento do extermínio. As pessoas que o cercavam levavam a cabo o Holocausto, mas ele não sabia, não há documento assinados que provem que ele sabia, e, embora fosse antissemita, ele não pode ser diretamente ligado ao extermínio. O que você acha?
Richard J. Evans — Hoje há uma enorme quantidade de provas, algumas das quais surgiram recentemente. Há muitos registros nos diários de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, que escreveu volumosos diários que vieram à tona nos anos 90, e registros de conversas com Hitler em que ele falava sobre o extermínio dos judeus. Se olharmos os últimos pronunciamentos de Hitler, até mesmo em seu testamento político, ele fala bem claramente sobre como os judeus teriam que sofrer da mesma forma que os alemães ao serem bombardeados pelos aliados. Resumindo, ele disse que milhares de judeus haviam sido mortos. Há vários registros de relatórios de unidade da SS para Hitler, escritos numa máquina de escrever especial — para que ele pudesse ler, que era muito míope — com teclas grandes. Esses relatórios enviados a ele têm anotações embaixo, provando que ele havia lido. Há muitas evidências de que Hitler sabia. Acho um tanto fútil procurar por uma única ordem escrita. Não era assim que o regime nazista funcionava. É verdade que existe uma ordem escrita para que fossem mortos cerca de 200 mil pacientes com doenças mentais na própria Alemanha. Há uma ordem determinando isso assinada por Hitler. Mas o motivo foi o fato de haver advogados, juízes, promotores, que considerariam isso assassinato. Havia médicos que poderiam considerar que isso ia contra o juramento de Hipócrates, e precisavam ver a ordem por escrito para não se recusarem a cumpri-la. O extermínio dos judeus foi executado pela SS, por pessoas fanaticamente leais a Hitler. Eles não precisavam de uma ordem escrita.

Silio Boccanera — Então, há uma abundancia de evidências. No julgamento que mencionei, você foi ao tribunal para desmentir o suposto historiador David Irving.
Richard J. Evans — Não foi bem isso, não.

Silio Boccanera — Foi um julgamento em que você tinha que provar que a negação do Holocausto por parte dele não fazia sentido. De qualquer forma, ele foi desacreditado, e você contribuiu para isso. Aí, surge Ahmadinejad, o presidente do Irã, insistindo na história de que o Holocausto não existiu. Por que esse mito persiste diante de tantas evidências?
Richard J. Evans — Alguns não vão se convencer diante de qualquer evidência. Em termos do Oriente Médio, é o caso de alguns políticos que são radicalmente contra Israel, que acham que o Holocausto legitima Israel, que ele dá ao Estado de Israel a justificativa para existir. Se eles conseguirem negar o Holocausto, tiram de Israel o direito de existir. Trata-se de um grupo pequeno de extremistas, um número pequeno de sites radicais e de sites islâmicos. Mas o mais importante é que essa não é uma questão central para os argumentos de muçulmanos e outros grupos contra o Estado de Israel. O que preocupa os porta-vozes dos palestinos e de outros grupos no Oriente Médio não é o passado, mas o presente. O que importa para eles é o que Israel está fazendo aqui e agora.

Silio Boccanera — Então, até politicamente, é bobagem?
Richard J. Evans — Politicamente, é uma grande bobagem. Independente do que é certo ou errado, não é necessário negar o Holocausto para deslegitimar Israel. Se o objetivo é esse, deve-se tentar fazê-lo com base na política atual.

Silio Boccanera — Talvez eu vá exigir demais da sua imaginação, da sua “imaginação histórica”, por assim dizer. Você vê condições, no mundo atual, para o surgimento de um novo Hitler? Não um ditador mixuruca numa República de Bananas, mas um grande ditador num país relevante, com influência mundial?
Richard J. Evans — A História não se repete. Isso não vai acontecer. O impacto da lembrança do nazismo, da guerra e do Holocausto na consciência mundial não faz apenas com que as pessoas continuem fascinadas por esses temas, mas também garante que eles não se repitam. Na Alemanha, o menor sinal de que alguém não discorda de qualquer aspecto do nazismo leva a manifestações públicas e a debate. Há uma espécie de “reação alérgica” que impede que o passado volte a acontecer. Se a democracia for sabotada em algum país importante, isso vai se dar de forma muito mais insidiosa.

Silio Boccanera — Por exemplo? Nos dias de hoje, você vê algum presságio disso, por exemplo, na restrição dos direitos civis, no uso da tortura, na luta contra o terrorismo internacional? Você vê isso como uma ameaça, um perigo nesse sentido?
Richard J. Evans — Obviamente…

Silio Boccanera — Para a sobrevivência da democracia.
Richard J. Evans — Obviamente a democracia tem um problema fundamental: ela propõe estender a todos a igualdade de direitos, assim como a liberdade de expressão e tudo mais. Dando, portanto, a seus inimigos, as armas para tentarem destruí-lo. O próprio Goebbels, o ministro de propaganda do partido, antes de os nazistas assumirem o poder, escreveu sobre a “burrice da democracia”, que nos dá as armas para destruí-la. A democracia sempre enfrenta um dilema: até onde devemos ir, por assim dizer, na limitação e supressão das nossas liberdades para impedir que terroristas nos sabotem? Algumas democracias foram longe demais, abrindo mão de seus direitos humanos para poder combater o terrorismo. É uma linha tênue, uma decisão difícil, mas a tortura de suspeitos de terrorismo não é algo com que uma democracia deva concordar. E eles concordaram. Eles pensavam na violência como deplorável, mas necessária. Talvez ela tivesse ido longe demais, mas, de forma geral, eles apoiavam Hitler. Uma vez que ficou claro que os nazistas estavam controlando tudo, as pessoas mudaram de lado para salvar seus empregos. Tantas pessoas entraram para o partido nazista no começo de 1933 para salvar seus empregos, suas carreiras, seu ganha-pão, que o partido impediu novas adesões em maio de 1933. Ele estava assolado por tantos membros.

Silio Boccanera — Trata-se de uma lição de como pessoas de nível, pessoas com boa formação acabam entrando para um movimento desses por falta de opção ou para defender interesses pessoais, e, de repente, uma nação de poetas e músicos se transforma num regime totalitário.
Richard J. Evans — Exato. Em 6 de abril de 1933, os nazistas aprovaram uma lei que dizia que seus opositores políticos, que qualquer um que pertencesse a um partido opositor, perderia o emprego de funcionário público. Os judeus também perderiam os cargos públicos. E havia muitos funcionários públicos federais e estaduais: professores, advogados, professores universitários. Eram pessoas de todos os níveis. O Estado empregava muita gente. Muitos ficaram com medo e entraram para o partido nazista para salvar a pele. Mas Hitler também tinha um carisma muito grande. Frases vagas, mas de grande impacto, eram criadas por assessores, mas constituíam uma retórica muito convincente: “Vamos salvar a Alemanha”, “a Alemanha vai voltar a ser grande”, “vamos acabar com o desemprego”, “vamos criar empregos”, “a Alemanha vai ser respeitada pelo mundo”, “vamos revisar o Tratado de Versalhes”. Isso tudo tinha um apelo muito grande. Tinha um apelo enorme. Ele achou que estabelecer um império alemão no Leste e Centro Europeu seria a maneira de transformar a Alemanha numa potência mundial novamente. Esses são dois elementos-chave da ideologia de Hitler.

Silio Boccanera — Quando Hitler invadiu a Polônia em 1939, começando o que se tornaria a Segunda Guerra Mundial, ele estava bem em termos militares. Mesmo com sua lógica distorcida, ele tomou certas atitudes que intrigam as pessoas. Para começar, por que invadir a União Soviética em 1941 em vez de manter o acordo de não agressão que tinha com Stalin? Isso fez com que sua sorte começasse a mudar.
Richard J. Evans — Há várias razões. Em primeiro lugar, a invasão e a conquista do Leste Europeu estavam nos seus planos desde o início. O ponto central era esse. A invasão e a conquista da França e da Europa Ocidental serviria para abrir caminho para a grande conquista do Leste Europeu. Em segundo lugar, Hitler e os nazistas acreditavam — equivocadamente, mas acreditavam — que o comunismo era uma conspiração de judeus, que ele havia sido imposto às massas na União Soviética, que elas estavam sofrendo sob esse regime, e que só era preciso obter algumas vitórias militares para que o Estado stalinista desmoronasse e o povo se rebelasse. Eles achavam que seria fácil. Se devia em parte, também, ao fato de Hitler e seus comparsas terem um desprezo arraigado pelos russos. Julgavam os russos racialmente inferiores, incapazes de organizar um esforço de guerra e de governar um país adequadamente.

Silio Boccanera — Em termos raciais, não por serem comunistas?
Richard J. Evans — Em termos raciais. Era um desprezo muito arraigado.

Silio Boccanera — Mas, mesmo assim, ele decidiu invadir em 1941. Ele poderia ter esperado um pouco mais?
Richard J. Evans — Ele decidiu invadir mais cedo do que planejara em meados dos anos 30, porque ficou assombrado com a resistência britânica e sua recusa em capitular depois da derrota da França. Uma forma de fazer com que os ingleses começassem a se render seria derrotando a Rússia. Churchill veria que era inútil continuar lutando e desistiria. Hitler também vivia preocupado com a sua saúde, especialmente no fim dos anos 30. Ele achou que pudesse morrer antes de conseguir atingir seus objetivos, o que acabou por impulsioná-lo.

Silio Boccanera — Outra decisão que intriga algumas pessoas até os dias de hoje foi a de declarar guerra aos EUA depois de Pearl Harbor, em vez de deixar que os americanos lutassem com os japoneses na Ásia, em vez de confrontar uma potência tão poderosa naquela época. Por que ele declarou guerra aos EUA?
Richard J. Evans — Hitler declarou guerra aos EUA em dezembro de 1941 por dois motivos: os americanos já estavam participando da guerra. Eles forneciam aos ingleses grandes quantidades de produtos. Estavam fazendo isso desde a primavera. Eles haviam assinado a Carta do Atlântico no outono para fornecer esses produtos. Hitler sabia que os recursos dos EUA eram muito mais abundantes do que os recursos da Alemanha. Isso, no final das contas, levaria a uma derrota da Alemanha. Ele precisava de um meio de interromper o envio de aviões, equipamentos, munição e tanques americanos e tudo o mais que vinha dos EUA para a Grã-Bretanha e que já estava começando a chegar à União Soviética. Os americanos se tornaram fornecedores importantes dos aliados. Em segundo lugar, ele achava que o ataque a Pearl Harbor seria a oportunidade ideal. Os EUA estavam preocupados em derrotar o Japão, e não teriam energia, tempo, atenção e recursos suficientes para intervir no Leste Europeu.

Silio Boccanera — Em outras palavras, já que era inevitável, que fosse feitos imediatamente, quando os EUA estavam preocupados…
Richard J. Evans — O momento era aquele, já que estavam participando, já estavam na guerra.

Silio Boccanera — A Alemanha no meio, pressionada por ambos os lados: os EUA e os aliados deste lado, os russos do outro lado, ambos adversários muito poderosos. Qual dos dois Hitler temia mais?
Richard J. Evans — É difícil de dizer. Ele considerava os dois inferiores. Os EUA eram uma mistura de raças. Eram ineficientes, depravados. Os russos eram racialmente inferiores, incapazes. Antes do final de 1941, quando as tropas alemãs foram detidas antes de chegar a Moscou, não conseguiram tomar Moscou. E ficou absolutamente claro no começo de 1943, quando foram obrigados a se render, depois que milhares de soldados alemães foram mortos em Stalingrado, que a máquina de guerra soviética não podia ser derrotada. A princípio, Hitler culpou seus generais por agirem mal, por terem sido covardes, por não terem sido agressivos o suficiente em suas investidas. Mas ele já tinha começado a perceber, em fins de 1943, que os recursos da União Soviética também eram muito abundantes e numerosos. Ainda que milhões de soldados soviéticos tivessem sido mortos ou capturados, outros tantos viriam para tomar o seu lugar.

Silio Boccanera — Para estabelecer um paralelo: você se referiu a Stalin como sendo antissemita, dentre muitas outras peculiaridades que ele tinha. Em retrospectiva, olhando para esses dois tiranos, parece haver uma aceitação maior de Stalin. É possível até imaginar alguém usando uma camiseta do Stalin, e as pessoas rindo. Mas, se você usar uma camiseta do Hitler, as pessoas vão atacá-lo. Por que as duas medidas? É uma tentativa de escolher o menor dos males?
Richard J. Evans — Isso está mudando. Cada vez surgem mais fatos sobre o governo de Stalin depois da queda do comunismo em 1990. Nossa visão de Stalin está cada vez mais crítica. Mas as pessoas ainda levam em consideração que Stalin foi importante para a derrota do nazismo, além de ter havido um lado positivo no stalinismo apesar das ressalvas quanto aos sacrifícios exigidos: a industrialização da União Soviética, a construção da economia soviética. Muitos ainda acham que esses foram grandes feitos do sistema stalinista. A questão que se impõe imediatamente é se o stalinismo realmente foi necessário para a industrialização.

Silio Boccanera — Hitler também impulsionou a economia.
Richard J. Evans — Na verdade, Hitler não impulsionou a economia na Alemanha. Todos os recursos iam para o rearmamento, com seu potencial e propósito de destruição.

Silio Boccanera — Ele é muitas vezes descrito como um gênio do mal. Não se discute muito a parte do mal. Mas você acha que ele era um gênio?
Richard J. Evans — Eu não o chamaria de gênio. Ele foi até certo ponto um cara de sorte. Uma vez ele disse: “Eu sou um jogador. Eu sempre arrisco tudo. Eu vou até o final”. Foi a sua sorte nas negociações sobre a possibilidade de ele ser candidato a chanceler por esses conservadores que queriam manipulá-lo. Em 1932, 1933 é que ele se recusou a fazer parte do governo a não ser como o líder. E mais tarde, novamente, ele sempre ia avançando e a sorte sempre o favoreceu.

Silio Boccanera — Ele jogou tudo o que quis.
Richard J. Evans — Ele jogou o quanto quis até o meio da guerra.

Silio Boccanera — Nós falamos sobre a Alemanha internamente, mas e fora da Alemanha? As pessoas viam que ele estava violando o Tratado de Versalhes, que ele estava se rearmando, que ele estava reivindicando território. As pessoas protestaram um pouco, mas nem tanto. Em geral eles deixaram ele se safar, o que naturalmente fortalecia o seu expansionismo. Vendo em retrospecto, os outros países deveriam ter feito algo, ou mais importante, eles poderiam ter feito algo?
Richard J. Evans — Bom, eu não acho que é a tarefa de um historiador dizer para as pessoas no passado o que eles deveriam ter feito. Você tem que lidar com as circunstancias da época. Mas o sentimento geral entre os governantes e os políticos da França e da Grã-Bretanha que o Tratado de Versalhes tinha tirado 30% do território impediu a Alemanha de ter forças armadas, Marinha, limitou as forças armadas a 100 mil homens, forçou a Alemanha a pagar compensação financeira aos aliados, e isso foi muito duro. É amplamente aceito que Hitler chegou ao poder por conta do ressentimento em relação ao tratado. E o tratado de paz foi baseado na doutrina do presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson de autodeterminação das nações. Todos os grupos nacionais deveriam ter o seu estado. Então você tinha a Tchecoslováquia, a Polônia, Romênia, Bulgária, todos esses Estados tinham sido fundados ou reorganizados, mas você não tinha isso para os alemães. Eles não podiam se juntar aos austríacos que falavam alemão. Havia milhões de pessoas que falavam alemão em outras partes do leste europeu. Dois milhões na Tchecoslováquia, um grande número na Polônia.

Silio Boccanera — Havia outros líderes que ocupariam esse espaço?
Richard J. Evans — Os outros líderes dos aliados sentiam que se a Alemanha pudesse revisar o tratado de Versalhes para incorporar outras regiões onde se fala alemão, isso iria tornar difuso o ímpeto nazista, faria com que Hitler e os nazistas se assentassem e tornaria os alemães um povo normal. Além disso, existia um medo difundido de outra guerra, compartilhado incidentalmente pela grande maioria de alemães comuns. Eles tinham visto as mortes e a grande destruição da Primeira Guerra Mundial, viram seus parentes e amigos morrerem e eles não queriam isso novamente. E também havia medo de bombardeios aéreos. Eles tinham visto particularmente o que havia acontecido na cidade espanhola de Guernica, no país basco, na guerra civil espanhola em 1936. Ela foi bombardeada e deixada em pedaços. Parecia não ter nenhuma proteção contra bombardeios aéreos. Havia um medo e ansiedade de uma guerra. Os políticos na Grã-Bretanha, como Neville Chamberlain, estavam em dúvida se queriam realmente levar adiante uma política mais agressiva em relação ao Hitler, parar com a remilitarização. Eles poderiam ter feito isso, mas isso não teriam apoio da opinião pública, perderiam votos. O público em geral só começou a dar apoio a ideia de uma guerra em março de 1939 na Grã-Bretanha quando Hitler quebrou o Acordo de Munique em que as pessoas que falavam alemão tinham sido tiradas da Tchecoslováquia, e invadiram Praga. Então, perceberam que o Hitler não iria apenas revisar o tratado, ele iria tentar conquistar a Europa. Foi aí que as pessoas perceberam que a guerra era inevitável e apoiaram a ideia.

Silio Boccanera — Falando sobre a Alemanha de hoje, já faz 65 anos que a guerra acabou. Você estuda a Alemanha e costuma ir até lá. Acha que os alemães foram capazes de expurgar o passado do período nazista?
Richard J. Evans — Eu acho que no geral eles foram. É muito marcante. Principalmente depois da queda do muro de Berlim e a reunificação da Alemanha, apareceu a questão: Quem somos nós? Quem são os alemães? O que dá aos alemães uma identidade é um sentimento de responsabilidade compartilhada historicamente pelos crimes do nazismo. Então é muito marcante quando você vai a capital, no centro dela há um memorial para as vítimas judias do Holocausto. Para onde você vá há memoriais, campos de concentração que agora são museus. Você passeia pelas ruas de Hamburgo e você vê no pavimento placas com os nomes dos judeus que eram donos daquelas propriedades. Quando você sai do metro há o nomes de todos os campos de concentração. Existe uma forte memória pública

Silio Boccanera — Em contraste com o que acontece com os japoneses.
Richard J. Evans — Sim, eu acho que a situação está mudando lentamente no Japão, mas o contraste ainda existe e há muitas pessoas no Japão que preferem evitar essa questão dos japoneses na segunda guerra em vez de confrontá-la. Eu acho que os alemães conseguiram fazer isso.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!