Sinceridade constitucional

Defensoria não é disciplinada pelo Estatuto da OAB

Autores

  • Daniel Guimarães Zveibil

    é mestre e doutor em Direito Processual pela USP com trabalhos no campo do Direito Processual Constitucional membro do Ceapro e do IBDP professor de pós-graduação e defensor público no estado de São Paulo com atribuições no Tribunal do Júri da capital.

  • Rafael Valle Vernaschi

    é defensor público do estado de São Paulo presidente da Associação Paulista de Defensores Públicos.

27 de maio de 2011, 15h31

A partir de 1988, o Estado brasileiro não se limitou a prever apenas seu dever fundamental de prestar assistência judiciária. Em enorme salto voltado à efetivação do direito de acesso à Justiça, a Constituição Federal prescreveu que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”[1]. Com isso, o dever estatal agora não é de somente possibilitar a representação e defesa em processos judiciais, mas principalmente de proporcionar ampla orientação jurídica de modo a conscientizar a população mais pobre de seus direitos.

Para o cumprimento desta magna tarefa constitucional, a Defensoria Pública foi incumbida nos seguintes termos: “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”[2].

A notável mudança de perspectiva realizada pela Constituição Federal, ao prever instituição autônoma e criada especialmente para prestar amplo serviço de assistência jurídica, muitas vezes é obscurecida pelo nosso mau hábito de sempre tolerar uma enorme distância entre o constitucional e o real, culminando naquilo que o eminente constitucionalista Luis Roberto Barroso chamou de “insinceridade constitucional”.[3].

Atualmente, este serviço público, indispensável para a existência de uma autêntica cidadania, é alvo de incompreensões voltadas, sobretudo, às autonomias da Defensoria Pública previstas no artigo 134, parágrafo 2º da Constituição vigente[4]. Tais incompreensões são notadas nos recentes questionamentos feitos contra o fato da capacidade postulatória do defensor público decorrer, exclusivamente, de sua nomeação e posse no cargo.

Mesmo diante das autonomias funcional e administrativa da instituição, inclusive detentora de órgão correcional próprio, permanece entre alguns o entendimento, fundamentado no artigo 3º e seu parágrafo 1º do Estatuto da Advocacia e da OAB — Lei 8.906/1994[5]—, de que o defensor público deve permanecer vinculado aos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, submetendo-se também a hierarquia administrativa distinta da Defensoria Pública.

De início, é importante registrar que a Emenda Constitucional 45/2004, que transmudou o antigo parágrafo único do artigo 134 da Constituição em seu parágrafo 1º, manteve a indispensabilidade de lei complementar para regulamentar a organização da Defensoria Pública em todas as esferas de nossa Federação. Além disso, nossa Constituição prescreve ser de iniciativa privativa do presidente da República lei complementar que organize a Defensoria Pública em qualquer dessas esferas[6]. Portanto, segundo a ordem constitucional vigente, não competiria jamais à lei ordinária que instituiu o EOAB, de iniciativa do deputado federal Ulisses Guimarães (PL 2938/92), dispor sobre temas que se referem à organização de Defensoria Pública.

Com efeito, somente esta rasa constatação nos força a concluir que o parágrafo 1º do artigo 3.º da Lei federal 8.906/1994 (EOAB) padece de inconstitucionalidade tanto formal quanto material, na medida em que lei ordinária invadiu matéria com reserva de lei complementar, olvidando, também, a referida iniciativa privativa do presidente da República para organização da Defensoria Pública. E o dispositivo do EOAB exige, na prática, que o defensor público submeta-se a hierarquia administrativa incompatível com as autonomias constitucionais previstas no referido parágrafo 2º do artigo 134 da Constituição vigente.

Devido à EC 45/2004, o texto constitucional é expresso ao reconhecer, dentre outras autonomias, a autonomia administrativa à Defensoria Pública dos Estados, separando-a do Poder Executivo, demais Poderes do Estado e órgãos autônomos, possibilitando, portanto, que assuma e conduza por si própria, integralmente, a gestão de seus negócios e interesses, desde que observadas normas da ordem jurídica a que está sujeita[7].

Na verdade, as autonomias constitucionais da Defensoria Pública nem precisariam estar expressas na Constituição, pois são corolários lógicos das próprias disposições constitucionais na medida em que ao tratarem Das Funções Essenciais à Justiça no Capítulo IV do seu Título IV, não só deixam claro que a Defensoria Pública não é departamento ou setor de qualquer dos Poderes da República ou de órgãos autônomos, como também diferencia claramente Defensoria Pública de Advocacias particular e pública, não vinculando ou condicionando a atividade da Defensoria Pública, enquanto instituição essencial à Justiça, à autorização ou habilitação a ser concedida por qualquer deles.

Ora, um serviço público de assistência jurídica integral e gratuita independente, autônomo, livre de peias que o entrave, deve ser atribuído a órgão constitucionalmente autônomo e, por sua vez, deve ser exercido por profissionais que possuam independência para atuação.

A fim de corroborar essa autonomia, veio à tona o novo parágrafo 6º do artigo 4º da LC 80/1994 — ao lado de outras novidades implementadas pela LC 132/2009 — determinando, prescrevendo, mandando que sua capacidade postulatória não dependa de outros órgãos ou pessoas jurídicas: “A capacidade postulatória do Defensor Público decorre exclusivamente de sua nomeação e posse no cargo público”[8].

É basicamente esse direito vigente o que justifica, em nosso país, o fato da capacidade postulatória do defensor público independer de sua vinculação aos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, ou de qualquer outra autarquia, associação, sindicato, órgão público autônomo ou Poder do Estado. Daí o acerto do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo que, ao contrário da crítica imerecida, democraticamente respeitou com exatidão normas processuais vigentes quando analisou pressuposto processual e reconheceu a capacidade postulatória autônoma do defensor público; ou melhor: reconheceu que o sistema constitucional atual — diferentemente do passado — concede autonomia ao serviço público de assistência jurídica integral e gratuita. Prevaleceu, nesta decisão, a sinceridade constitucional que em nada diminui os demais atores do sistema de Justiça, porque cada um deles possui o seu determinado papel no texto constitucional.


[1] CF/88, art. 5.º, LXXIV.

[2] CF/88, art. 134.

[3] BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 6.ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 59 a 65, sobretudo 62 e 63; também seu Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 217 e seguintes.

[4] “Art. 134 (…) § 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”.

[5] “Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

§ 1º Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional.”

[6] CF/88, art. 61, §1°, II, "d".

[7] Cf. em: ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos: assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, item “5.4.1” (A Defensoria Pública como Instituição Estatal autônoma desvinculada dos demais Poderes do Estado), p. 306 e seguintes; por coincidir ao Ministério Público, cf. também: MAZZILI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público. 6.ª edição. São Paulo: Saraiva, 146.

[8] Em destaque.

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