Segunda leitura

A polêmica reforma do Código Florestal brasileiro

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

15 de maio de 2011, 10h46

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O Código Florestal do Brasil (Lei 4.771) é de 1965. Seu texto, que mesclava dispositivos administrativos, penais e processuais, era avançado para a época. Todavia, era pouco conhecido e cumprido. Dele não se cogitava no curso de Direito e não me lembro de que fosse matéria nos concursos públicos. No máximo, poderia entrar como um item do Direito Administrativo.

A partir do ano de 1973, no exercício das funções de promotor de Justiça, comecei a trabalhar com o referido Código. A Polícia Florestal, que é a antecessora da Polícia Ambiental, autuava os infratores, impondo-lhes multas e remetendo cópia ao MP para a apuração da responsabilidade penal.

Mas não creio que a proteção florestal passasse disto. As multas não costumavam ser pagas. De responsabilidade civil nem se falava, até porque não existiam ações civis públicas. ONGs eram incipientes, ações individuais por danos ambientais nem pensar. E acima de tudo, pairava uma falta de consciência quase absoluta. O resultado lógico e real era a falta de efetividade.

O passar do tempo fez com que, pouco a pouco, as coisas mudassem. As primeiras ações civis públicas a causar impacto nas propriedades rurais foram propostas por uma ONG de Maringá (PR). Nelas se reivindicava o cumprimento do artigo 16, inciso III, ou seja, que as propriedades mantivessem uma área de 20% (reserva legal) intocada, para que nela a fauna e a biodiversidade fossem mantidas.

Apesar da resistência inicial, estas ações foram sendo julgadas procedentes pelo TJ-PR e depois pelo STJ, consolidando-se a jurisprudência no sentido de que a obrigação tinha que ser cumprida e, ainda, que não era apenas do proprietário, mas também dos que viessem a adquirir o imóvel. (STJ, REsp 222.349/PR, 1ª T., Relator Ministro José Delgado, j. 20/3/2000).

Além da mudança jurisprudencial, sobreveio a Lei 9.605/98 prevendo infrações administrativas aos infratores e o Decreto 3.179/99 fixando os valores das multas, este revogado mais tarde pelo Decreto 6.514/2008. E assim o Código Florestal saiu do papel para o mundo real e com elevados reflexos econômicos.

O cerco aos que descumpriam a lei florestal começou a apertar. Por exemplo, o Decreto 6.514/2008, impôs no artigo 55 multa diária de R$ 500 por hectare aos proprietários que não averbassem a reserva legal no Cartório de Registro de Imóveis. Isto significa que os donos não podiam mais permanecer passivos diante da norma. Seu cumprimento foi suspenso por MPs, mas o prazo vence no dia 11 de junho.

Estes fatos, aliados à valorização da agricultura, com exportações envolvendo valores expressivos, trazendo riquezas não apenas aos proprietários mas também ao Brasil, resultou em um movimento de reforma do Código Florestal. E alguns passos foram dados através de Medidas Provisórias. Por exemplo, o parágrafo 2º permitiu que a vegetação da área de reserva legal pudesse ser usada sob regime de manejo florestal sustentável, mas desde que não fosse suprimida (MP 2166.67/2001).

Agora, nesta polêmica situação busca-se a aprovação do antigo projeto de Lei 1.876/99, que reformaria o velho Código Florestal. Suas transformações não se limitam à área de reserva legal, mas também às chamadas áreas de preservação permanente (artigos 2º e 3º do Código Florestal). Delas, a mais conhecida é a que fixa áreas de proteção ao longo dos rios, a partir de um mínimo de 30 m. A mais complexa é a que considera de preservação permanente as encostas ou partes desta, com declividade superior a 45%, norma esta tradicionalmente descumprida, principalmente pela omissão do Poder Público, e que tem gerado tragédias por ocasião de grandes chuvas.

Aqui vale lembrar a lição de Osni Duarte Pereira: “Assim como ninguém escava o terreno dos alicerces de sua casa, porque poderá comprometer a segurança da mesma, do mesmo modo ninguém arranca as árvores das nascentes, das margens dos rios, nas encostas das montanhas, ao longo das estradas, porque poderá vir a ficar sem água, sujeito a inundações, sem vias de comunicação, pelas barreiras e a outros males resultantes de tal insensatez” [1]

Pois bem, criticado, defendido, discutido e debatido, o PL 1.876/99 chegou ao Plenário da Câmara Federal esta semana, em um formato que buscava costurar o difícil acordo entre ruralistas e ambientalistas. E a complicar ainda mais o quadro, os deputados da base aliada enfrentaram o projeto do Palácio do Planalto.

Na discussão, temas polêmicos como o benefício da dispensa de recuperação de área de reserva legal já degradada para as pequenas propriedades (até 4 módulos fiscais, ou seja, de 20 a 400 hectares), até julho de 2008. Complexo por si só, já que significaria uma anistia a quem descumpriu a lei florestal, a soma destas áreas implicaria em “140,5 milhões de hectares ou 1,4 milhão de quilômetros quadrados”[2]

Quando tudo parecia resolvido, segundo notícia na imprensa, um texto falso alterou o que havia sido objeto de acordo, introduzindo inovações como a autorização de desmatamento em APPs para bio-combustíveis.[3] A partir daí o tumulto tomou conta da Câmara e a aprovação pelo Plenário foi adiada.

É inegável que o Código Florestal merece passar por análise que o aproxime da realidade econômica. Incentivos para a preservação (v.g., nascentes), até a possibilidade da APP ser abatida da reserva legal, merecem ser estudados. Todavia, anistiar os que descumpriram a lei, permitir que APPs sejam definidas por Decreto, cujos critérios seriam políticos e não técnicos, autorizar desmatamento para incrementar o uso de bio-combustíveis e propostas semelhantes, configurariam um retrocesso inadmissível.

Mas de tudo o que mais surpreendeu foi, no fim dos debates, a afirmação do relator, deputado Aldo Rebelo: “Quem fraudou contrabando de madeira foi o marido de Marina Silva, defendido por mim nesta Casa quando eu era líder do governo”; “Quando líder do governo evitei o depoimento do marido de Marina.”[4] Ao acusar a senadora do PV publicamente, o deputado confessou ter praticado o crime de prevaricação. Só pode ter sido um equívoco de alguém extremamente estressado.


[1] Direito Florestal Brasileiro, Ed. Borsoi, 1950, p. 211.

[2] http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110512/not_imp718130,0.php

[3] O Popular, Goiânia, 12.5.2011, p. 7

[4] Estado de São Paulo, 13.5.2011, A4

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