LETRAS JURÍDICAS

A proteção do indivíduo e o avanço da tecnologia

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27 de junho de 2011, 14h21

Spacca
Robson Pereira - Coluna - Spacca - Spacca

Ainda não chegou ao Congresso, mas já é possível antecipar alguns pontos polêmicos que deverão marcar os debates em torno da Lei de Proteção de Dados Pessoais, o conjunto de normas que regulamenta a coleta, o uso, o processamento, a armazenagem e o repasse de informações sobre o cidadão para terceiros. De dezembro do ano passado a abril deste ano, todas as partes envolvidas na discussão tiveram a oportunidade de comentar e sugerir mudanças em um anteprojeto elaborado pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça.

A ideia básica é dar poderes para o cidadão saber o que está sendo feito com suas informações. Ele e somente ele poderá determinar como, quando, de que forma e com quais objetivos os seus dados serão utilizados, no todo ou em parte. A venda de informações pessoais ou mesmo a utilização inadequada dos dados coletados passam a ser punidas com rigor, com a suspensão temporária ou definitiva da atividade ou multas, que podem chegar a 20% do faturamento bruto da empresa infratora.

Cinco meses de discussões serviram para evidenciar uma inevitável queda de braços entre o direito à intimidade e à privacidade e a chamada economia digital, grande parte dela caracterizada por serviços cada vez mais personalizados em um ambiente fortemente influenciado e sob o impacto das novas tecnologias. Boa parte do problema parece se resumir a uma simples equação: como garantir a proteção do indivíduo sem afetar ou impedir os benefícios à sociedade proporcionados pelo avanço tecnológico. Quais são os limites nesse desafio?

As dificuldades são muitas, a começar pela própria definição do que são dados pessoais. De acordo com o texto submetido ao debate público, dado pessoal é toda e qualquer informação relativa a uma pessoa identificada ou identificável, direta ou indiretamente, incluindo todo endereço ou número de identificação de um terminal utilizado para conexão a uma rede de computadores.

Tivesse o texto parado na primeira vírgula, pouca dúvida restaria. Como não parou, além de CPF, identidade e título de eleitor, entre várias outros, passam a fazer parte dos nossos dados pessoais estranhas sequências numéricas como 200.162.237.33 e 200.162.237.4, endereços atribuídos pela rede ao computador por mim utilizado para a conexão à internet. Os tribunais precisam estar preparados para isso.

Isoladamente, o IP, de Internet Protocol, o “número de identificação de um terminal”, conforme definição presente no anteprojeto, não identifica o visitante de uma página na internet, mas apenas o computador usado por ele para o acesso durante um determinado período ou sessão. Em outras palavras, identifica a máquina, não a pessoa, embora, se combinado com outras informações, possa ser fundamental em uma investigação.

Como o responsável pelo banco de dados passa a ser obrigado a ter o controle sobre todos os dados do usuário em seu poder, até porque terá de prestar contas sobre eles, é fácil perceber a confusão que será, além das implicações tecnológicas e jurídicas decorrentes da exigência que, a rigor, contraria a própria essência da internet.

Ser anônimo na rede é bom ou ruim, de acordo com o emprego que se faça do anonimato. Para alguns, garante, por exemplo, a liberdade de expressar opiniões sem o risco de ser identificado por um chefe (ou um Estado) autoritário. Para outros, impede (ou pelos menos dificulta) bisbilhotices sobre as páginas visitadas na internet. Talvez por isso e pela dificuldade de aplicação, leis similares em vigor na União Europeia, Argentina, México, Uruguai e Canadá, deixaram de incluir endereços IP ou logs de navegação na relação de dados pessoais.

As empresas de telecomunicação pedem equilíbrio. Reconhecem que a implantação de um marco legal para a proteção de dados pessoais, com regras claras e válidas para todos, representa um avanço, mas demonstram preocupação com a possibilidade de a nova lei onerar e interferir excessivamente em relações cotidianas já consolidadas, aqui ou em qualquer parte do mundo. Faz muito sentido. Proteger informações pessoais e punir o uso inadequado ou não autorizado não significa que tenhamos de reinventar a internet.

O anteprojeto também dedica cuidado especial aos chamados “dados sensíveis”, assim consideradas as informações pessoais que possam resultar em qualquer forma de discriminação. O texto, em fase de consolidação, relaciona nessa categoria dados relativos à origem racial ou étnica, convicções religiosas, filosóficas ou morais, opiniões políticas, filiação sindical, além de informações sobre a saúde, a vida sexual, bem como aqueles de natureza genética e biométrica.

Nenhuma pessoa poderá ser obrigada a fornecer informação que possa resultar, no futuro, direta ou indiretamente, em discriminação do indivíduo. Aliás, o texto proíbe o armanezamento em banco de dados públicos ou privados de qualquer informação “sensível”, a não ser em meia dúzia de  casos previstos na própria lei. E mesmo nesses casos, somente com o consentimento inequívoco do usuário, o que sinaliza novas confusões pela frente.

A identificação biométrica é hoje a principal aposta dos bancos para coibir fraudes e aumentar a segurança nos serviços prestados pela internet. Se uma lei relaciona tais informações como sensíveis e proíbe o seu armazenamento em banco de dados, mesmo que fossem ampliadas as exceções, não estaria esta mesma lei interferindo demasiadamente no avanço tecnológico? 

Existem outros pontos polêmicos na proposta de anteprojeto elaborado pelo Ministério da Justiça para servir de base às discussões. O Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal, a Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico e a Associação Brasileira de Internet (provedores de acesso, serviços, informações e pesquisa) consideram que o texto foi rigoroso ao classificar o gerenciamento de dados pessoais como uma “atividade de risco”, com o responsável respondendo objetivamente pelos danos causados, de forma individual ou coletiva. Isenta, assim, o cidadão que se sentir prejudicado, da necessidade de provar a culpa, a negligência ou a imperícia do responsável, bastando tão somente demonstrar o nexo causal e o dano para pleitear a reparação necessária. Mas essa é uma questão facilmente resolvida e talvez nem precisasse de uma nova lei para isso.

Pelo texto, quem vai garantir a aplicação da lei, além de indicar medidas para a segurança e a proteção dos dados será o Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais. Não é uma inovação brasileira. O órgão existe em quase todos os países que já possuem normas específicas de proteção a dados pessoais. Sua função é fiscalizar, receber reclamações, elaborar e executar ações da política nacional de preservação da intimidade e da privacidade.  E, claro, aplicar as sanções quando a lei for desrespeitada. O anteprojeto do Brasil foi inspirado no modelo adotado pela União Europeia e pelo Canadá.

Não dá para alegar surpresa com o que vem por aí, diga-se, para preencher uma lacuna importante na legislação brasileira. Assim como o Código de Defesa do Consumidor representou um avanço considerável nas relações de consumo, a Lei de Proteção de Dados Pessoais pode vir a ter efeito semelhante em um campo onde as relações ocorrem em um ambiente de extrema sensibilidade, por envolver princípios constitucionais relegados até agora. Tem tudo para dar certo. Basta não exagerar na dose.

Abaixo sugestões de leitura sobre os temas acima abordados: 

Manual de Direito do Consumidor – José Geraldo Brito Filomeno
Um dos mais avançados instrumentos em todo o mundo na proteção do consumidor, individual ou coletivamente. O livro faz um retrospecto histórico do CDC, que está completando 20 anos de existência.

Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor – Paulo de Tarso Vieira
O livro apresenta o outro lado da moeda e apresenta as causas de exclusão da responsabilidade civil previstas na legislação, entre as quais a culpa concorrente da vítima (o consumidor), o caso fortuito e a força maior.

Direito Constitucional – Liberdade de Fumar – Tercio Sampaio Ferraz Junior
O autor oferece vários pontos para reflexão a partir de princípios consagrados pela Constituição “de difícil realização jurídica, de forma simultânea”. Entre esses, a liberdade de informação e o direito à privacidade.

Direito à Privacidade – Ives Gandra Martins e Antônio Jorge Pereira
Vários especialistas reunidos em torno de um tema, a privacidade, considerada pelos organizadores da obra uma das conquistas mais vulneráveis na história da humanidade.

Curso de Direito Constitucional – Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Branco
Privacidade e intimidade são conceitos distintos, ambos incluídos como princípios fundamentais na Constituição Brasileira, como ensinam os autores. O anteprojeto da Lei de Proteção de Dados Pessoais cita várias vezes o primeiro, mas não faz referências ao segundo.

Direito e Internet: Liberdade de Informação, Privacidade e Responsabilidade – Liliana Minardi Paesani
A internet representa a fase mais avançada de um processo tecnológico que abre uma estrada nova para o Direito. O livro dedica especial atenção à proteção da privacidade na Internet e sugere um código de autorregulamentação para o setor.

Direito Digital – Patrícia Peck Pinheiro
O direito digital é fruto da transformação jurídico-social e econômica da sociedade. Nesse cenário a internet é apenas mais uma mídia, bem como o telefone celular, o cinema digital e a TV interativa, todas com problemas, soluções e desafios bem similares.

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