Estado de natureza

Internet ajuda na redefinição do espaço público

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25 de junho de 2011, 19h44

Na Antiguidade, a Ágora – praça pública onde se instituíam discussões e debates sobre todos os temas – era o espaço público por excelência, no qual o indivíduo manifestava seu sentido de cidadania e todos tinham igual direito a voz e voto. Notabilizada pela democracia grega clássica, a praça pública como espaço destinado às discussões de interesse da sociedade perdeu seu locus político-institucional para os mecanismos formais de representação parlamentar. Assim, os representantes do povo – e não mais um processo decisório de forma direta – procedem escolhas políticas que a estrutura de poder deve tomar no arbitramento de interesses de todas as latitudes de natureza conflitiva.

Nos últimos quarenta anos, processos sociais articulados interdependentes, como a globalização e a revolução tecnológica, têm acelerado os procedimentos de desconstrução de certezas. Com a crise econômica internacional de 2008, agrava-se a instabilidade da ordem mundial: a hegemonia americana já não parece tão sólida e países como a China consolidam o seu protagonismo em todas as dimensões no cenário mundial. O sistema político europeu experimenta um processo de tensão institucional jamais vivenciado pela União Européia, pondo em questionamento procedimentos de integração econômica como a moeda única (euro).

Nesse contexto, a sociedade parece se reinventar. A primavera árabe, as manifestações populares na Grécia e na Espanha e a mobilização da sociedade brasileira pela liberdade de expressão na Marcha da Maconha são apenas alguns exemplos merecedores de profunda reflexão sobre o que está por trás da tessitura dessa nova ordem social. Estaria sendo gestado um novo Maio de 1968 [i] potencializado pelo uso das redes sociais?

Novas formas de rupturas sociais
Há uma revolução acontecendo sobre a qual ainda não se estabeleceram condições de formular teorias consistentes. Com Enzweiler, pode ser sustentado que “um novo modo de participação/convivência societária está a se forjar a partir das redes sociais (web 2.0), e sua influência sobre a ‘nova democracia’ ainda não foi suficientemente compreendida”[ii]. É possível perceber que o crescente uso da internet tem influenciado sobremaneira o modo como a sociedade participa das questões que lhe são de interesse, mas ainda não se pode concluir qual o resultado efetivo dessa nova forma de articulação social.

A primavera árabe, movimento ainda em curso no Oriente Médio, que resultou na queda de líderes ditadores na Tunísia (Zine El Abidin Ben Ali) e no Egito (Hosni Mubarak), tem seu locus de discussão nos espaços virtuais. A mobilização social das comunidades árabes foi fortemente impulsionada pelo uso da internet, cuja velocidade proporciona estratégicas de ataque e de defesa extremamente dinâmicas, por vezes difíceis de serem acompanhadas[iii]. O uso crescente das tecnologias de informação tem impulsionado o desenvolvimento de um novo modo de se fazer política. Na Islândia, 2/3 da população de cerca de 320 mil habitantes têm perfil no Facebook.

Com isso, o processo de elaboração da nova constituição daquele país conta com a participação eletrônica da sociedade, que acompanha, ao vivo, a transmissão via site dos encontros semanais dos 25 membros do conselho[iv]. No Brasil, a mobilização pela Marcha da Maconha, o apoio à greve dos bombeiros do Rio de Janeiro e as manifestações em prol das pessoas “diferenciadas” nascem e ganham força em um novo espaço público: a Ágora Virtual, instituída através de redes de relacionamento, como o Facebook, o Orkut e o Twitter.

Paralelamente, os jovens de nosso tempo, embora ainda carreguem a rebeldia e o espírito questionador que lhes é próprio, já não se sentem seduzidos pela política em seu modelo tradicional e buscam novas formas de participar das transformações sociais que sejam capazes de dar conta de suas expectativas[v]. Nesse sentido, Sader alerta que “a presença dos jovens na vida pública está em outro lugar, a que nem os partidos nem o governo chegam: as redes alternativas da internet”[vi]. Estaríamos vivenciando a superação das instituições políticas tradicionais, dando lugar a uma forma mais democrática de participação da sociedade nas questões que envolvem seus desacordos?

De volta ao contexto grego, expressivo exemplo das conseqüências da crise econômica instaurada no pós-2008, enraíza-se ali os limites institucionais para evitar um processo de larga amplitude para o sistema financeiro internacional. O mecanismo de buscar políticas de forte impacto de ajuste fiscal e de limite de crescimento econômico pelo parlamento soa excessivamente convencional para ser implementado. Assim, a sociedade grega resiste naturalmente às “medidas de austeridade” propostas pelo governo, cuja velha fórmula consiste em aumentar receitas (majorando a carga tributária que recai sobre a sociedade) e reduzir despesas (através de cortes dos gastos públicos, que tendem a se refletir em redução do bem-estar social promovido pelo Estado à população) [vii].

Em Portugal e Espanha, os partidos de centro-esquerda sofreram derrotas históricas para os partidos de direita, o que pode ser explicado, segundo Boaventura de Sousa Santos, pela incapacidade de se diferenciar uns dos outros[viii], donde se deduz que, enquanto a sociedade se reinventa, as instâncias deliberativas por natureza, quais sejam, o Executivo e o Legislativo, parecem não acompanhar essa revolução. Com isso, distanciam-se cada vez mais da sociedade, que busca, em outras instâncias, novas formas de participação política e de deliberação sobre as questões que lhe são afetas. Nessa dinâmica, a internet, livre, sem regras e imune à censura, é o solo fértil para todas as “tribos”, onde pluralidade e diversidade são um fim em si mesmo.

Democracia representativa posta em cheque
Nesta década que se inicia, a efervescência dos movimentos sociais tanto na Europa quanto no Oriente Médio parece apontar para a descrença da sociedade nas capacidades institucionais. O povo enfrenta o Estado e luta para tomar as rédeas do seu próprio destino. Na Grécia, o “movimento dos indignados” resiste às decisões do Parlamento e discute, sem a participação dos atores estatais, as possíveis soluções para a crise que domina o país[ix]. Na Espanha, jovens tomam praças e ruas para debater sobre os rumos da democracia. Por fim, a resistência imposta pela sociedade organizada tanto na Tunísia quanto no Egito foi fator decisivo para depor as ditaduras que ali se perpetuaram durante décadas.

De acordo com Souza Santos, é possível reconhecer que “as instituições existentes estão a desempenhar pior o seu papel, sendo-lhes cada vez mais difícil conter a frustração dos cidadãos”. Por isso, “se as instituições existentes não servem, é necessário reformá-las ou criar outras”. Para o sociólogo português, até que se conclua o processo de reforma das instituições e de revisão de suas capacidades, “é legítimo e democrático atuar à margem delas, pacificamente, nas ruas e nas praças”, sinalizando um período “pós-institucional”[x].

Nesse contexto, vale lembrar o magistério de Nádia Urbinati, segundo o qual o direito a voto “faz mais do que evitar a guerra civil”, uma vez que condiciona os legisladores à vontade da população, verdadeira detentora da soberania. Dessa forma, “em uma democracia os representantes não devem e jamais podem ser insulados da sociedade” [xi]. Entretanto, na atualidade, parece haver um déficit democrático entre representante e representado, cujo resultado é a abertura de novos espaços para o exercício da soberania popular, como as redes de relacionamento e o próprio Poder Judiciário, que cada vez mais tem estreitado suas relações com a sociedade[xii]. Disso resulta a necessidade de que sejam estabelecidos diálogos institucionais que possibilitem a articulação necessária entre sociedade e Estado.

Caminho aponta para o diálogo
Ao adentramos a teoria dos diálogos institucionais, importa compreender, inicialmente, o que são as instituições e como elas se formam. De acordo com Robert Goodin, as instituições são padrões organizados de normas, papéis socialmente construídos e condutas socialmente prescritas que se esperam de quem desempenha tais papéis, criados e recriados com o passar do tempo[xiii]. Em síntese, identifica-se a instituição como um padrão de conduta, recorrente, valioso e estável. Dentro de um contexto institucionalizado, a conduta é mais estável e previsível. A estabilidade e a previsibilidade representam, em grande medida, a razão pela qual valorizamos os padrões institucionalizados e o que resulta valioso deles[xiv]. Goodin não desconsidera que as instituições, ainda que estáveis, estão sujeitas a transformações sociais. Segundo ele, estas podem ocorrer de forma acidental, evolutiva ou intencional. A mudança social pode produzir-se por acidente: o que acontece, simplesmente acontece.

A transformação social também pode ser uma questão de evolução, com certos mecanismos de seleção, habitualmente de natureza competitiva, que determinam a sobrevivência de variedades particulares. Por fim, a mudança social pode ser produto de uma intervenção intencional, ou seja, a transformação pode ser efeito de uma intervenção deliberada por parte de agentes dotados de intenção na busca de um objetivo. Segundo Goodin, o desenho intencional das instituições constitui apenas uma parcela. As instituições surgem essencialmente por acidente ou evoluem de acordo com uma lógica própria, de maneira completamente independente da intervenção deliberada e do desenho humano direto.

Claus Offe, na esteira de Goodin, acrescenta que as instituições representam princípios ou padrões normativos de quem vive sob sua regência. As instituições estabelecem padrões de conduta, tanto normativo quanto cognitivo, mas as relações entre as instituições e as normas sociais não são unilaterais, e sim recíprocas e cíclicas[xv], o que favorece o diálogo. Offe afirma que para que uma instituição possa cumprir adequadamente a tarefa para a qual foi projetada, é necessário restringir ou suspender momentaneamente o foco em resultados, o que permitira às instituições atuarem de forma a se estabilizarem, a partir do que passariam a “funcionar em piloto automático”, produzindo os verdadeiros resultados que dela se espera.

Para que sejam viáveis e possam sobreviver, as instituições precisam não apenas conhecer seu funcionamento interno, com normas e regulamentos próprios, como também devem adquirir um nível de conhecimento tácito sobre os terceiros com quem desenvolva algum nível de interação. Dessa forma, “as instituições […] constituem acordos sociais desenhados para resolver conflitos potenciais”[xvi]. Nessa perspectiva, é possível vislumbrar um ponto de tangência entre a proposta de Offe e a teoria dos diálogos institucionais – embora Offe não faça uso dessa terminologia –, uma vez que o cerne das teorias dialógicas reside no reconhecimento de que as instituições precisam interagir para resolver problemas sociais que envolvam desacordo[xvii], ou seja, no cenário atual, as instituições precisam se reinventar.

O impacto dos fatores conjunturais sociais e econômicos da primeira década do século XXI já são suficientes para constatar os limites de mecanismos politicos consolidados. Há indícios, assim, de que o presente modelo constitucional representativo é visto com desconfiança por boa parte da sociedade em diversos países[xviii]. Introjeta-se um “senso comum” de que tais instituições não serão aptas de dar soluções para os problemas atuais. Os sinais apontam para uma crescente deslegitimidade do processo político e as alternativas postas, como a teoria dos diálogos institucionais, não transmitem a certeza de que se materialize como saída política viável.

A Ágora Virtual, fomentada pela internet e suas redes de relacionamento, cresce livre de regras e do controle estatal. Ali, onde tudo é permitido, todos vivem em “estado de natureza” virtual. Por isso, não apenas afloram o desejo de uma sociedade livre, justa e solidária, mas também há manifestações de ódio, preconceito e discriminação. Como dito anteriormente, há um processo de profunda transformação social em curso. O que dele se espera? Estaria limitado a reforçar a visão libertária do legado iluminista do século XVIII ou reconfigurar com profundidade um novo ethos social?


[i] “Em Maio de 68, a França concentrou em um mês as transformações sociais de uma década que já ocorriam nos Estados Unidos e em países da Europa e da América Latina. Em 30 dias, os estudantes criaram barricadas, formando verdadeiras trincheiras de guerra nas ruas de Paris para confrontar a polícia. Mais do que isso, os jovens tiveram idéias e criaram frases tidas como as mais "ousadas" da segunda metade do século 20. Em discursos nas ruas e nas universidades, em cartazes e muros, os estudantes franceses deixaram as salas de aula e se mobilizaram para dar a seus professores, pais e avós, e às instituições e ao governo ‘lições’ sobre os ‘novos tempos, a liberdade e a rebeldia’”. PIACENTINI, Ébano. Entenda o Maio de 68 francês. Folha de São Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u396741.shtml>. Acesso em: 25 jun 2011.

[ii] ENZWILER, Romano José Enzweiler. Reflexões acerca do sistema eleitoral brasileiro: a “tragédia democrática” e o wiki-tesarac. In: SARLET, Ingo Wolfgang; SILVA, Vasco Pereira da. Direito Público sem fronteiras. Disponível em: <http://www.icjp.pt/publicacoes>. Acesso em: 22 jun 2011. p. 136-137.

[iii] Cf. Na Primavera Árabe internet é faca de dois gumes. Revista Exame. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/na-primavera-arabe-internet-e-faca-de-dois-gumes>. Acesso em: 23 de jun 2011. Ver também: Comprendre le réveil arabe. Manière de voir 117. juin-juillet 2011.

[iv] Cf. População contribui pela internet para nova constituição. Observatório da Imprensa. Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/populacao-contribui-pela-internet-com-nova-constituicao> . Acesso em: 24 jun 2011.

[v] Jovens se afastam de partidos políticos e buscam web para fazer política. Último segundo. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/jovens+se+afastam+de+partidos+e+buscam+web+para+fazer+politica/n1597030213384.html>. Acesso em: 23 jun 2011.

[vi] SADER, Emir. A rebeldia dos jovens que nos faz tanta falta. Carta Maior. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=716>. Acesso em: 24 jun 2011.

[vii] Gregos protestam contra medidas de austeridade. O Estadão. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,gregos-protestam-contra-medidas-de-austeridade,731426,0.htm>. Acesso em: 23 jun 2011.

[viii] Sociólogo critica nova esquerda européia. Folha de São Paulo. Publicado em 8 de junho de 2011. Disponível em: <http://teoriadoestado.blogspot.com/2011/06/boaventura-de-sousa-santos.html>. Acesso em: 24 jun 2011.

[ix] DOUZINAS, Costas. Os ‘indignados’ retomaram no país a tradição da ágora. Folha de São Paulo. Publicado em 16 de junho de 2011. Disponível em: <http://teoriadoestado.blogspot.com/2011/06/nova-agora.html>. Acesso em: 22 jun 2011.

[x] SOUSA SANTOS, Boaventura de. A pensar nas eleições. Carta Maior. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17862>. Acesso em: 2 jun 2011.

[xi] URBINATI, Nadia. O que torna a representação democrática? Lua Nova. São Paulo, 67: 191-228. p. 204.

[xii] Cf. CARVALHO, Flávia Martins de. A Constituição como processo público e o papel da sociedade na jurisdição constitucional (no prelo).

[xiii] Cf. GOODIN, Robert. Teoria del diseño institucional. Barcelona: Editorial Gedisa, 2003.

[xiv] Idem.

[xv] OFFE, Claus. El diseño institucional em los procesos de transición de Europa del Este. In: GOODIN, Robert. Teoria del diseño institucional. Barcelona: Editorial Gedisa, 2003. Barcelona: Gedisa, 2003.

[xvi] Ibidem. p.257. Tradução livre.

[xvii] LINARES, Sebastián. La (i)legitimidad democrática del control judicial de las leyes. p. 199. Ver também VIEIRA, José Ribas. Diálogos Institucionais e Ativismo. Curitiba: Juruá, 2010.

[xviii] No Brasil, pesquisa apresentada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em 2008, revelou que o Judiciário está à frente dos demais Poderes em termos de confiança da população, tendo o Senado, a Câmara dos Vereadores, a Câmara dos Deputados e os partidos políticos ostentado, respectivamente, os últimos lugares. Cf. Associação dos Magistrados Brasileiros. Disponível em <http://www.amb.com.br/portal/docs/pesquisa/barometro.pdf>. Acesso em: 11 mai 2010.

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