Judiciário internacional

Caso Battisti terá novo capítulo em Haia

Autor

  • Márcio Garcia

    é doutor em Direito Internacional pela USP e mestre na mesma disciplina pela Universidade de Cambridge. É professor no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília (Relações Internacionais pós-graduação “lato sensu”) foi oficial de Proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) no Brasil (1997/98).

13 de junho de 2011, 8h48

No âmbito judiciário local, a questão Battisti parece encerrada. Resta agora saber se o caso — que consumiu enormemente o tempo e a paciência de todos os envolvidos — pode ter desdobramento na esfera judiciária internacional. Entendo que sim. A presente nota visa esclarecer os motivos pelos quais estimo que a Corte Internacional de Justiça (CIJ), com sede na Haia, pode ter jurisdição sobre o assunto.

O Tribunal da Haia é o principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas (ONU). Ele tem competência bifronte. De um lado, resolve litígio entre Estados (competência contenciosa); de outro, esclarece dúvida jurídica suscitada pelas organizações do sistema onusiano (competência consultiva). A jurisdição internacional, no entanto, não se exerce de imediato. Ao contrário do que sucede no campo doméstico, é necessário que as partes envolvidas em eventual contenda aceitem a jurisdição do Tribunal.

Essa circunstância pode ocorrer mediante: (i) aceitação da chamada cláusula facultativa de jurisdição obrigatória (art. 36, 2, do Estatuto da Corte); (ii) celebração de tratado entre as partes submetendo o caso ao Tribunal; (iii) previsão no Tratado de Extradição de cláusula remetendo à CIJ controvérsia sobre sua aplicação; e (iv) existência de tratado multi ou bilateral que contemple a competência da Corte da Haia. No tocante à cláusula facultativa, o Brasil não apresentou declaração reconhecendo a jurisdição. Em relação à possibilidade contemplada no segundo item, ela não deve ser acatada pelo governo brasileiro. O tópico (iii) está, por igual, afastado já que o tratado celebrado em 1989 não tem semelhante previsão.

Esse o quadro, resta à República da Itália indicar a existência de tratado que vincule as partes e que reconheça, de modo expresso, a competência da Corte da Haia para apreciar possível demanda italiana. Sobre isso, convém recordar a Convenção sobre Conciliação e Solução Judiciária entre Brasil e Itália, de 1954. Esse tratado, negociado em nome do Brasil pelo grande jurisconsulto Raul Fernandes, estabelece que as disputas de qualquer natureza que possam surgir entre as partes, e que não tenham podido ser resolvidas por via diplomática ordinária, serão submetidas ao processo de conciliação previsto no texto. Dispõe, também, que, se não houver conciliação, qualquer das partes poderá solicitar que a discussão seja submetida à Corte Internacional de Justiça (art. XVI).

A Convenção prescreve, ainda, que se a CIJ declarar que a decisão de uma autoridade judiciária [no caso, o Supremo Tribunal Federal (STF)], ou de qualquer outra autoridade de uma das Partes Contratantes (no caso, o Presidente da República), se encontra, inteira ou parcialmente, em oposição ao direito das gentes (no caso, o tratado de extradição e os princípios da boa fé e do pacta sunt servanda), e se o direito dessa parte não permitir, ou permitir apenas parcialmente, a anulação das consequências da decisão em questão por via administrativa, será conferida à parte lesada satisfação equitativa, de outra ordem. Cuida-se do art. XVIII da Convenção.

Resta saber, com isso, se o ato internacional está em vigor. Nesse sentido, a página da Divisão de Atos Internacionais do Itamaraty dá notícia de que ele está vigente desde 1957. Sendo assim, parece-nos que a República Federativa do Brasil pode ser acionada na Haia pelo descumprimento do tratado bilateral de extradição.

A ser correta essa análise, o governo italiano deve iniciar entendimentos diplomáticos para a instalação da Comissão de Conciliação prevista na Convenção de 1954. Na sequência, expor o objeto do embate e convidar a Comissão a tomar todas as medidas necessárias para chegar-se a entendimento sobre o tema. O processo perante a Comissão é contraditório e ela deverá formular relatório, que não tem caráter de sentença arbitral, com propostas que visem a solucionar a desinteligência. O relatório deverá ser apresentado em quatro meses a contar do dia em que a Comissão tomar conhecimento da controvérsia, a menos que as partes convenham prorrogar o prazo. A Comissão fixará prazo para que as partes se pronunciem sobre as propostas oferecidas. Esse lapso e tempo não deverá ultrapassar três meses. Vencidas as etapas mencionadas e caso uma das partes não aceite a solução proposta, qualquer uma delas poderá, como dito, acionar a CIJ.

Em resumo, na hipótese de o governo italiano levar o assunto para o principal órgão judiciário das Nações Unidas, ele já tem roteiro, a meu ver, seguro. A questão agora é saber se o Brasil está preparado para se defender na Corte Internacional de Justiça. A indagação é válida tendo em vista que jamais demanda contra nosso país prosperou nesse órgão. Único caso até hoje foi retirado pelo Estado proponente, a República de Honduras, no episódio envolvendo o Senhor Manuel Zelaya. Tampouco acionamos outro Estado na CIJ. As perguntas se avolumam: quem faria a defesa em nome do Brasil (Itamaraty, Advocacia Geral da União)? Como eventualmente contratar internacionalista consagrado, o que é usual na Haia, para atuar em prol do país (p. ex. papel do Tribunal de Contas da União, necessidade de prévia cobertura orçamentária, licitação)? Como executar eventual decisão condenatória da Corte (p. ex. cumprir o tratado e extraditar Cesare Battisti)? Enfim, ao que parece o caso ainda não está encerrado. Abre-se nova frente. Desta vez no plano internacional e na cidade que o esplendoroso poeta Manuel Bandeira tinha como a mais bonita da Europa, a Haia.


[1] Ph.D. (USP), LLM (Cantab.) e LLB (UnB). Professor de direito internacional em Brasília.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito Internacional pela USP e mestre na mesma disciplina pela Universidade de Cambridge. É professor no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília (Relações Internacionais, pós-graduação “lato sensu”) foi oficial de Proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) no Brasil (1997/98).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!