Argumento do fisco

Pressão internacional é arma pela quebra de sigilo

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2 de junho de 2011, 14h11

Enquanto a batalha pelo acesso à movimentação bancária dos contribuintes pelo fisco sem autorização da Justiça espera uma decisão definitiva, a Receita Federal se arma para reverter a atual posição do Supremo no último round. A estratégia é convencer os ministros de que o Brasil andaria para trás se a Justiça tivesse de ser consultada a cada fiscalização. O principal argumento são os esforços da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para aumentar a transparência de informações fiscais a fim de combater o crime. Nestas terça e quarta-feiras (31/5 e 1º/6), o tema foi debatido em um fórum mundial organizado pela entidade internacional nas ilhas Bermudas, com a presença de representantes do Brasil.

No ano passado, o Supremo mostrou não ter chegado a um consenso sobre o assunto. Primeiro, ao julgar um caso concreto no Recurso Extraordinário 389.808, por seis votos a quatro, a corte entendeu que não existe quebra de sigilo bancário na solicitação às instituições financeiras de informações sobre movimentações de clientes. O entendimento, que cassou liminar dada pelo ministro Marco Aurélio, foi de que não há quebra, mas transferência de dados de uma entidade com dever de sigilo — no caso, os bancos — para outra com a mesma responsabilidade — o fisco. Em seguida, no julgamento de mérito da matéria, uma mudança de voto do ministro Gilmar Mendes e a ausência do ministro Joaquim Barbosa levaram o caso para decisão oposta: o fisco não tem autoridade para quebrar o sigilo bancário do contribuinte sem interferência do Judiciário, com base no que diz o artigo 5º da Constituição, em seu inciso XII. A decisão se deu por cinco votos a quatro.

O arremate fatalmente virá de uma das seis Ações Diretas de Inconstitucionalidade que aguardam julgamento, ou do Recurso Extraordinário 601.314, ajuizado contra a União, e que já teve repercussão geral reconhecida. Ao contrário das duas ações julgadas em 2010, as próximas da pauta ou têm efeito erga omnes ou impedirão a subida de novos recursos ao Supremo. Segundo o consultor-geral da União, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, o argumento internacional tem sido repetido diuturnamente nos gabinetes dos ministros pelos procuradores da Fazenda Nacional. “Dos países membros da OCDE, em apenas 18 o fisco precisa de autorização judicial para ter acesso a contas bancárias, e 16 são paraísos fiscais”, disse. Fazem parte do Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes 101 nações, incluindo o Brasil. Até o fim do ano, outros 20 países em desenvolvimento são esperados para integrar o grupo. “Uma decisão do Supremo a favor do fisco seria uma denúncia indireta aos tratados.”

Outra frente em que o fisco trabalha é a legislativa. Pelo menos três projetos de lei caminham no Congresso Nacional. O Projeto de Decreto Legislativo 2.514/2002, do deputado federal Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça da casa. No Senado, o Projeto de Lei 140/2007, do senador Demóstenes Torres (DEM-GO), espera desde 2007 para ser votado pelo Plenário. O PLS 219/2008, também do senador, aguarda parecer da CCJ.

Em seminário organizado nesta segunda-feira (30/5) pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco) em São Paulo, o deputado federal Vicente Cândido comprometeu-se a propor ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que apoie no Congresso a criação de uma norma obrigando os contribuintes a fornecer dados bancários à administração tributária. “Uma derrota no Supremo enfraqueceria todo o corpo da Lei Complementar 105”, afirmou. O MJ já discute em audiências públicas um anteprojeto sobre proteção de dados pessoais.

É na Lei Complementar editada em 2001 que a Receita se baseia para pedir aos bancos informações sobre a movimentação dos contribuintes. Hoje, ao suspeitar de renda não declarada, o fisco chama o contribuinte para dar explicações e, se não se convencer, abre processo de fiscalização e pede ao banco que repasse dados sigilosos. Movimentações superiores a sete vezes o rendimento declarado e o uso de pessoas interpostas — os chamados “laranjas” — são consideradas provas de sonegação. O que tanto as ADIs quanto o RE no STF questionam é a constitucionalidade da norma por permitir a violação do sigilo sem autorização da Justiça.

Pelo menos cinco votos no Supremo são conhecidos a favor do fisco: Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Ellen Gracie. De outro lado estão Cezar Peluso, Marco Aurélio, Ricardo Lewandwski, Celso de Mello e Gilmar Mendes. Se forem mantidas as posições, o desempate, assim como no caso da vigência da Lei da Ficha Limpa para 2010, caberá ao caçula, ministro Luiz Fux.

Legalidade autista
Defensor da posição do fisco, o advogado Eurico Marcos Diniz De Santi, professor de Direito Tributário da Fundação Getúlio Vargas, atacou os pontos em que se sustentam os argumentos das ações dos contribuintes. O primeiro deles foi o princípio da legalidade, segundo o qual o fisco não poderia ignorar as normas vigentes que protegem o sigilo. “Sem a prova do fato gerador, não há incidência tributária. Logo, a legalidade não se realiza, tornando-se autista”, explicou. Segundo ele, não é possível à Receita averiguar sonegação sem consultar extratos bancários. “A fiscalização não pode se basear apenas nas declarações entregues, porque o papel aceita qualquer coisa.”

Nesse sentido, a ideia de submeter ao Judiciário os pedidos de acesso violaria, segundo ele, o princípio da separação dos Poderes. “Não é razoável que o Executivo tenha de passar pelo Judiciário para cumprir sua função, que é cumprir a lei”, diz. “Mover os pedidos para a Justiça é mitigar informações.” Na opinião do auditor Rubens Nakano, presidente da delegacia do Sindifisco em São Paulo, a Justiça permite procedimentos protelatórios que podem causar a prescrição das cobranças. Na opinião de outro auditor, Mauro Silva, membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda, o aumento do interesse dos contribuintes em ter suas contestações julgadas administrativamente pelo fisco mostra que a expectativa no Judiciário é baixa. “Devido ao grande número de processo, os juízes não têm condições de fazer essa análise”, disse.

“O acesso às informações bancárias é importante não só para coibir os casos de sonegação, mas também para o combate às organizações criminosas, fraudes do comércio exterior e concorrência desleal”, afirmou o superintendente adjunto da Receita Fábio Kirzner Ejchel. Segundo ele, só em São Paulo, desde que o fisco passou a trabalhar com as informações bancárias, em 2003, foram iniciadas 8.360 ações fiscais contra pessoas físicas e jurídicas, cobrando créditos no valor de R$ 28 bilhões. Lavagem de dinheiro, câmbio ilegal, caixa 2, sonegação e uso de contas para abastecer o crime organizado foram algumas das irregularidades reastreadas.

Para De Santi, o argumento de que, com o poder de acesso, a Receita estabeleceria um big brother permanente sobre os contribuintes cai diante do fato de que o fisco já teve acesso a todas as movimentações por meio da cobrança da CPMF, derrubada pelo Congresso em 2007. “Jamais houve devassa”, defendeu. Para o presidente nacional do Sindifisco, Pedro Delarue Tolentino Filho, a tese tem sido usada até mesmo por empresas. “A pessoa jurídica não tem direito ao sigilo como tem a pessoa física”, afirmou.

“A própria Lei Complementar 105 protege o sigilo”, garantiu De Santi. A norma proíbe a identificação da origem e da natureza dos gastos vistos nos extratos, assim como sua divulgação. “A quebra é considerada crime”, lembrou. A transferência de informações, segundo ele, só pode causar a formação do crédito tributário — o que é dever do fisco — e não gerar os danos morais e materiais de que fala o artigo 5º, inciso X, da Constituição, sobre violação de intimidade.

Presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda, o advogado Antônio Augusto Rodrigues alertou para o perigo que empecilhos às investigações da Receita Federal podem significar. Segundo ele, dos 4,7 milhões de comunicados de movimentações suspeitas feitos pelos bancos ao órgão desde que foi criado, em 1998, a maior parte das irregularidades constatadas eram sonegações. “O melhor lugar para esconder dinheiro é banco, justamente por causa do sigilo”, disse.

Segundo o consultor-geral da União, Arnaldo Godoy, a última decisão do STF, a favor dos contribuintes por cinco votos a quatro, desconsiderou a cláusula de reserva de Plenário prevista no artigo 97 da Constituição. O dispositivo prevê que somente a maioria absoluta dos membros dos tribunais pode declarar a inconstitucionalidade de uma norma. Como não estavam presentes no Supremo todos os ministros, a maioria exigida para a declaração de inconstitucionalidade não se formou.

Para Mauro Silva, membro do Carf, o debate no Supremo se baseou apenas em um dos valores constitucionais em discussão. “A Constituição preserva não só a liberdade, mas também a igualdade e a solideriedade”, defendeu, referindo-se à obrigação de que todos contribuam para o financiamento do Estado. “A justiça fiscal exige que se identifique e tribute renda, consumo e patrimônio, mas prevaleceu apenas a liberdade de se contratar.” Segundo ele, o enfraquecimento do poder de fiscalização pode ocasionar queda da arrecadação espontânea. “Só saímos da crise de 2008 porque fizemos desoneração, o que só foi possível porque tínhamos fôlego”, defendeu.

Risco potencial
A regra, no entanto, é a privacidade, no entendimento do conselheiro do Carf Damião Cordeiro de Moraes, representante da Confederação Nacional das Instituições Financeiras. “O sistema constitucional atribui a competência para quebrar o sigilo apenas ao Judiciário”, defendeu. Segundo ele, a Receita é parte nos processos e, por isso, não pode ter o privilégio de acessar as informações sem o aval da Justiça.

Segundo ele, pelo fato de os bancos correrem o risco de responder por eventual quebra de sigilo, todos os pedidos do fisco às instituições são comunicados aos correntistas. “Se não houver resposta, o banco repassa os dados”, disse. “Em média, um grande banco recebe cerca de 40 requisições desse tipo por mês.” O impacto da abertura seria maior hoje, segundo o conselheiro. “De cinco anos para cá houve uma inclusão bancária maior”, relatou. Dados da CNF apontam que, há cinco anos, apenas 16% da população tinha conta bancária. Hoje são 60%, divididos entre nove bancos públicos e 148 privados.

Moraes lembrou ainda que um acordo de bitributação entre Brasil e Estados Unidos, que depende apenas de parecer no Senado, prevê que fiscais americanos acompanhem os agentes brasileiros durante as ações nas empresas. “Ele poderá até mesmo conduzir a diligência”, avisou.

Para o tributarista Alessandro Fonseca, do escritório Mattos Filho Advogados, o fisco quebra o sigilo do contribuinte até mesmo quando exige que ele apresente seus extratos bancários nas fiscalizações. “O objetivo é mensurar a capacidade contributiva, mas para isso há outros meios legais”, disse. Um dos exemplos dados pelo advogado é a identificação dos recolhimentos de Imposto de Renda em relação a juros sobre capital próprio, retidos na fonte. “É normal a Receita pedir extratos bancários para confirmar os créditos na conta.” Segundo ele, preocupa o fato de o fisco pedir as movimentações já na primeira intimação. “Os sistemas de arrecadação e cruzamentos mostram o que a pessoa gasta.”

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