Presos e esquecidos

Mutirão carcerário revela falhas da Justiça de SP

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30 de julho de 2011, 8h00

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Tossir, espirrar e coçar os olhos são gestos normais para quem está na sala da etapa paulista do mutirão carcerário do CNJ, no andar Zero do Fórum Criminal da Barra Funda. Fazem parte dos trabalhos os ácaros, habitantes impiedosos das pilhas de processos que enchem as prateleiras do espaço reservado ao Conselho Nacional de Justiça.

Lá estão cerca de 20 servidores de tribunais de todo o Brasil, acompanhados pelos juízes Soraya Brasileiro Teixeira, de Minas Gerais, e Luciano Losekann, do CNJ, responsável pela coordenação nacional do mutirão, e sua assessora, Silvia Fraga. Compenetrado, o time está incumbido de analisar os 94 mil processos de presos em regime fechado do estado de São Paulo. Eles foram escolhidos pelo desempenho nas outras edições do mutirão, convidados e participam voluntariamente.

A sala é bastante movimentada. Ou porque não para de receber visitantes, como o secretário de Administração Penitenciária, Lourival Gomes; ou porque a saída de processos analisados e a chegada de novos documentos para análise é constante. Com o clima que se abate sobre a capital paulista neste mês e o ar condicionado ligado, a garganta seca chega a ser normal.

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Os papéis são divididos em estantes, depois em filas, numeradas em ordem crescente. Os processos são pegos sempre na ordem. Depois, vão para as prateleiras etiquetadas como “ao Ministério Público”, para que receba seu parecer. Quando voltam, ficam nas pilhas de “retorno dos juízes”. Significa que já receberam todos os pareceres, do MP e da Defensoria, e já foram lavrados pelos magistrados do mutirão, que ficam dois andares acima.

Até a quarta-feira (27/7), os números encontrados pelo mutirão carcerário do CNJ não eram nada favoráveis à Justiça paulista. Já tinham sido analisados quase 4 mil processos e, com isso, 1,4 mil presos obtiveram benefícios. A maior parte deles trata do direito à progressão de regime, que estava “esquecida”. Mas há situações piores.

Começou oficialmente na quarta-feira (20/7) e deve se estender até o dia 20 de dezembro — tempo recorde, já que nos demais estados o mutirão durou em média um mês. São Paulo é o 21º estado. Faltam Pernambuco, Goiás, Rio de Janeiro, Bahia e Sergipe, onde os trabalhos começam em outubro.

Os mutirões exigem muita atenção. Quando os voluntários pegam um processo para analisar, leem tudo. Aplicam, então, a calculadora do CNJ, que informa quais os benefícios aquele preso deveria ter e não tem, se deve haver progressão de regime etc. “É tarefa para os mais atilados aos detalhes”, resume o juiz Losekann.

Mesmo com tanta seriedade, há espaço para bom humor. Alguém chama atenção para o caso em que está trabalhando. O analisado tem direito à liberdade condicional apenas em 2049. Ao que outro responde: “perdeu pro meu! Esse aqui só ganha condicional em 2053, tchê!”, denunciando sua origem. Os gaúchos são destacados na sala, com suas bolsas de couro próprias para o transporte do aparato do chimarrão. As cuias são mais discretas, mas estão lá.

Tecnologia
Os sistemas informatizados de São Paulo foram a grande surpresa negativa deste mutirão, segundo Silvia Fraga. Ela conta que o CNJ só analisará os processos de presos em regime fechado. Descobriu, entretanto, que o banco de dados do TJ-SP não tinham essas informações. O mutirão teve de começar uma semana antes para analisar processo por processo e separar os que se tratavam de regime fechado dos demais. Só no Fórum da Barra Funda, os fechados são cerca de 7 mil.

A escolha pelos processos de detentos em regime fechado foi exclusividade paulista. Nos demais estados, a situação de todos os presos foi revista, independente do regime em que foram condenados. Silvia Fraga explica que, em São Paulo, o Tribunal de Justiça já analisa a condição dos condenados a encarceramento em regime semiaberto e aberto numa força-tarefa. Por isso, a Corregedoria do TJ-SP aconselhou ao CNJ que analisasse “apenas” os regimes fechados.

Essa força-tarefa, aliás, causou mal-estar entre o TJ de São Paulo e o CNJ. Logo que o mutirão foi anunciado no estado, o desembargador Fábio Gouvêa pediu afastamento do cargo. Alegou que, ao analisar os presos em regime fechado, o mutirão poderia colocar em liberdade pessoas que cometeram crimes graves e ainda não passaram pelo regime semiaberto.

Contudo, os condenados à etapa mais restritiva do encarceramento são maioria absoluta em São Paulo — os que estão em regime semiaberto e aberto são cerca de 25 mil. Segundo Luciano Losekann, isso acontece justamente porque o regime fechado é esquecido. Muitos dos que estão lá, estão indevidamente, o que infla as estatísticas. Como o tribunal se recusa a olhar para o problema, as pessoas é que acabam esquecidas.

Losekann arqueia as sobrancelhas ao falar que há pessoas que já deveriam ter progredido para o regime aberto e sequer passaram pelo semiaberto. Nessas situações, conta, os presos pulam a etapa e progridem direto. O quadro é reflexo direto das limitações do sistema eletrônico da Justiça Paulista, que impede o acompanhamento dos condenados.

A justificativa do “pessoal do tribunal”, segundo Silvia, é que estão trabalhando na virtualização das varas de execução. Mesmo assim, reclama, precisam de um sistema melhor. É inaceitável um sistema que é incapaz de fazer cálculos penais, na opinião da assessora.

O juiz Losekann ainda aponta para outra falha. O sistema informatizado do TJ paulista não faz a chamada prevenção. É um mecanismo jurídico que permite juntar todos os processos impetrados contra alguém pelo mesmo fato numa única vara, para que sejam apreciados pelo mesmo juiz. A falta desse recurso pode fazer com que uma pessoa receba penas diferentes pelo mesmo crime, ou até que seja absolvido numa vara e condenado em outra.

É difícil encontrar razões para os problemas de gestão encontrados pelo mutirão na Justiça de São Paulo. Silvia Fraga diz não entender tamanha leniência no maior tribunal do país. Losekann aponta que é porque se trata de um tribunal conservador, resistente a novidades e mudanças — normal em grupos grandes, mas que precisa ser revista.

Por isso é que a luta do CNJ é para que os mutirões não virem rotina, mas para que consertem os erros, detectem os problemas e ajudem a buscar soluções. A intenção é fazer das iniciativas medidas excepcionais, e não rotineiras como têm sido. Silvia Fraga resume: “não estamos aqui para ‘conceder benefícios’, e sim para garantir direitos.”

Matemática da prisão
Um dos casos mais “constrangedores” encontrados na jurisdição paulista, segundo a juíza auxiliar do CNJ Soraya Brasileiro, de Minas Gerais, é o de um condenado a 11 anos e oito meses de prisão em janeiro de 2003. Por bom comportamento, segundo a calculadora do CNJ, ele deveria ter recebido liberdade condicional em dezembro de 2007. Só foi liberado pelo mutirão carcerário, na semana passada, com quase quatro anos de atraso.

Outro é o de um homem, preso em maio de 2009, condenado a 10 anos de reclusão, além de dez dias de serviço comunitário. A progressão de regime prisional se daria no dia 23 de janeiro deste ano, mas ele só conseguiu o benefício por meio do mutirão e ficou encarcerado até a segunda-feira passada (18/7).

Houve ainda a história de um homem preso em abril de 2009 sob duas acusações. Por uma delas, foi condenado a um ano e oito meses de reclusão. A outra ainda aguarda análise de recurso no TJ-SP e, por isso, o homem está preso. Só que a pena pelo primeiro crime acabou em dezembro do ano passado, e ele continua em regime fechado, aguardando a decisão do Tribunal paulista. A juíza Soraya explica que, nesses casos, o argumento costuma ser: “ele ainda não foi totalmente condenado, então pode ser que a pena aumente”, o que, para ela, não justifica a detenção. Ele deveria aguardar a segunda condenação em liberdade, pois já pagou pelo primeiro crime.

Mas nem só de libertações vive o mutirão. Há o caso de um homem, condenado a 12 anos de prisão por homicídio qualificado, beneficiado por falhas no abastecimento do sistema processual da Vara de Execuções Criminais. A última informação disponível era a de que ele foi detido em 2000. Dois anos depois houve o trânsito em julgado da sentença condenatória e a expedição do mandado de prisão.

O mutirão carcerário descobriu agora, em julho de 2011, que o réu está em liberdade desde 2001, quando obteve um Habeas Corpus do Superior Tribunal de Justiça. Hoje, ele encontra-se foragido. O mandado de prisão tem validade até 27 de setembro de 2016. Se estivesse de fato preso, pelos cálculos do CNJ, no ano que vem poderia sair do cárcere. Nada disso estava nos sistemas da Justiça de São Paulo. Tudo foi descoberto pelo servidor do mutirão, pelo telefone.

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