Efeito contrário

Política pública baseada na raça estimula diferença

Autor

  • Roberta Fragoso Menezes Kaufmann

    é procuradora do Distrito Federal professora de Direito Constitucional e Direito Administrativo na Escola da Magistratura do DF e no Instituto de Direito Público. É autora do livro Ações Afirmativas à Brasileira: necessidade ou mito? Uma análise histórico-jurídico-comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil lançado pela Livraria dos Advogados.

28 de julho de 2011, 8h16

Estudo recente publicado pelo IBGE objetiva passar a imagem de que, apesar de a cor influenciar bastante a vida dos cidadãos brasileiros, a maioria não tem dificuldade em reconhecer a própria raça. Em um momento em que todos se chocam com a notícia de que já existem diversos Tribunais Raciais em funcionamento no Brasil, esta notícia não é obra do acaso. Objetiva-se minimizar as dificuldades existentes no Brasil sobre a identificação da raça.

Sobre a impossibilidade de determinar quem é negro no Brasil, destaco relevante estudo conduzido por Sérgio Pena, da UFMG, denominado Retrato Molecular do Brasil. Na ocasião, chegou-se à conclusão de que, além dos indivíduos autodeclarados pretos e pardos, existem no Brasil mais 30% de afrodescendentes, dentre aqueles que se declararam brancos, por conterem no DNA a ancestralidade africana, principalmente a materna, devido à intensa miscigenação e independentemente do fenótipo apresentado. O trabalho realizado por Pena questiona as estatísticas sobre a composição étnica do País. Para ele, os números seriam imprecisos pois muitos dos que se declararam brancos migrariam para a categoria de mestiços, se o DNA fosse decodificado.

Sobre a possibilidade de se determinar cientificamente um grau mínimo de africanidade para cada brasileiro, a ponto de legitimar os descendentes de africanos a serem beneficiados por políticas afirmativas, a explicação de Pena é deveras precisa, e, por isso, merece a transcrição: “a ancestralidade, após os avanços do Projeto Genoma Humano, pode ser quantificada objetivamente. Implementamos em nosso laboratório exames de marcadores de DNA que permitem calcular um Índice de Ancestralidade Africana, ou seja, estimar, para cada genoma humano, qual proporção se originou na África. Recentemente publicamos (…) um estudo demonstrando que no Brasil, em nível individual, a cor de um indivíduo tem muito baixa correlação com o Índice de Ancestralidade Africana. Isso quer dizer que, em nosso país, a classificação morfológica como branco, preto ou pardo significa pouco em termos genômicos e geográficos, embora a aparência física seja muito valorizada socialmente. A interpretação dos achados de nossa pesquisa é que a população brasileira atingiu um nível muito elevado de mistura gênica. A esmagadora maioria dos brasileiros tem algum grau de ancestralidade genômica africana. Poderia a nossa nova capacidade de quantificar objetivamente, através de estudos genômicos, o grau de ancestralidade africana para cada indivíduo fornecer um critério científico para avaliar a afrodescendência? A minha resposta é um enfático não. Tentar usar testes genômicos de DNA para tal, seria impor critérios qualitativos a uma variável que é essencialmente quantitativa e contínua. A definição sobre quem é negro ou afro-descendente no Brasil terá forçosamente de ser resolvida na arena política. Do ponto de vista biológico, a pergunta nem faz sentido”.

Confirma-se assim a tese de Gilberto Freyre de que a população brasileira é uma mistura do europeu, do índio e do africano. Dessa forma, a intensa miscigenação brasileira termina por eliminar a eficácia de programas afirmativos nos quais a raça funcione como critério exclusivo de integração, porque não há como determinar quem, efetivamente, é negro no Brasil.

Retroceder à utilização de critérios objetivos (exame de sangue) para determinar o grau de ancestralidade, por outro lado, parece-nos totalmente fora de consideração. A política afirmativa que vier a ser adotada no Brasil tem de vencer o desafio da legitimidade e ser adequada, exigível (não haver um meio menos ofensivo aos direitos fundamentais) e ter bônus maior do que o ônus em relação à implementação da medida (princípio da proporcionalidade em sentido estrito).

Para se tentar flexibilizar esse debate praticamente insolúvel — saber quem é negro no Brasil —, ao mesmo tempo em que também se procura combater outra barreira, talvez a principal a impedir a ascensão do negro, faz-se necessário um novo modelo de ações afirmativas, baseado em critérios próprios para a realidade brasileira. Propõe-se, assim, a conjugação de dois fatores: escola pública e renda mínima, visando a garantir maior legitimidade ao debate, a menor possibilidade de utilização da má-fé, à diminuição da possibilidade de discriminação reversa e, finalmente, ao melhor atendimento aos princípios da igualdade e da proporcionalidade, integrando maciçamente os negros, pois estes são 70% dos pobres do Brasil, sem correr o risco da racialização do país.

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    é procuradora do Distrito Federal, professora de Direito Constitucional e Direito Administrativo na Escola da Magistratura do DF e no Instituto de Direito Público. É autora do livro Ações Afirmativas à Brasileira: necessidade ou mito? Uma análise histórico-jurídico-comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil, lançado pela Livraria dos Advogados.

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