Cooperação Internacional

Quem deve provar a imunidade de execução soberana?

Autor

  • Antenor Madruga

    é sócio do FeldensMadruga Advogados doutor em Direito Internacional pela USP especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP e professor do Instituto Rio Branco.

27 de julho de 2011, 12h51

Spacca
Recentemente, esta ConJur noticiou que o Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (Distrito Federal e Tocantins) decidiu impor à representação diplomática da Namíbia no Brasil, em execução trabalhista na qual é executada, que “comprove ao d. juízo da execução, no prazo e na forma que forem reputados adequados, que os valores totais de suas contas bancárias e do orçamento em execução destinam-se exclusivamente às atividades diplomáticas e consulares, cumprindo-lhe ainda comprovar, de forma válida e eficaz, a destinação dos bens imóveis indicados pelo exequente.”[1].

Essa decisão levantou polêmica no ainda anuviado ambiente jurídico da imunidade dos Estados estrangeiros à jurisdição brasileira, dividindo críticos e apoiadores da decisão. Tenho para mim que a corte trabalhista acerta em alguns fundamentos, mas erra na conclusão.

A exigência de que o Estado estrangeiro faça prova da destinação soberana de determinado bem que lhe pertence, para fins de assegurar-lhe imunidade à execução, não é invenção da magistratura trabalhista candanga.

Em abril de 1998, a empresa alemã Procafe GmbH, portadora de um título executivo judicial contra a República Federativa do Brasil, no valor de DM 85 mil (oitenta e cinco mil marcos alemães), decorrente de decisão da Justiça Italiana proferida em ação originalmente proposta contra o extinto Instituto Brasileiro (XE “Instituto Brasileiro”) do Café, tentou executar seu crédito sobre divisas do Brasil depositadas em bancos na Alemanha, que haviam sido obtidas pela emissão de 750 milhões de marcos em títulos públicos. Entre outros argumentos, alegavam os credores que os recursos obtidos com a comercialização de títulos públicos por Estados estrangeiros não seriam imunes à execução.

O Brasil precisou demonstrar na jurisdição alemã que os recursos obtidos com a venda de títulos públicos tinham uma finalidade soberana: eram destinados a refinanciar a dívida interna e controlar a inflação. Cópias de resoluções do Senado e até uma declaração juramentada do então Ministro da Fazenda, Pedro Malan, foram juntadas como provas do propósito dos recursos captados na Alemanha. A Justiça alemã, à vista da finalidade dos recursos do Estado brasileiro, considerou os bens imunes à execução.

Noutro caso, Citoma Trading Limited et al. v. Instituto Brasileiro(XE “Instituto Brasileiro”) do Café (IBC) et al., julgado pela Alta Corte de Justiça de Londres, em processo conexo com a execução mencionada no início deste artigo, o Estado brasileiro, na condição de sucessor do IBC, precisou demonstrar que os recursos captados no exterior, para refinanciar a dívida pública interna, não podiam se enquadrar no conceito de bens usados ou que se pretende usar em transações comerciais (“in use or intended to be used for commercial purposes), estabelecido na Seção 3 (3) (b) do State Immunity Act 1978 (lei inglesa sobre imunidade de jurisdição).

Não mais existe uma regra de Direito Internacional consuetudinário excluindo da jurisdição territorial a possibilidade de promover medidas coercitivas contra determinada parte do patrimônio de um Estado soberano estrangeiro. Assim como as atividades do Estado soberano dividem-se em ações cognoscíveis e em ações imunes ao foro estrangeiro, também há critérios para classificar os bens dos Estados estrangeiros no território do foro como imunes e não imunes à execução.

O Foreign Sovereign Immunity Act of 1976 estabelece que não será imune à execução a propriedade de um Estado estrangeiro localizada no território dos Estados Unidos e utilizada para uma atividade comercial (“used for a commercial activity in the United States”). A lei australiana (Foreign Immunities Act 1985) excepciona da imunidade a propriedade em uso pelo Estado estrangeiro que seja substancialmente relacionada a propósitos comerciais (“that is in use by the foreign State concerned substantially for commercial purposes”). Note-se, na construção da exceção à imunidade de execução por esses diplomas legislativos, a relevância do propósito do bem pertencente a Estado estrangeiro ou por ele em uso. Para estar imune à execução forçada não basta, de acordo com essas leis, demonstrar a propriedade ou posse do bem por Estado soberano, é preciso perquirir a sua finalidade imediata. Ou seja, o motivo ou o propósito do Estado soberano, que pouca influência tem na determinação da imunidade de cognição, assume relevância quando se investiga a configuração da imunidade de execução.

Essas leis refletem o fim do costume (XE “costume”) internacional de conceder aos Estados soberanos imunidade absoluta à execução de decisões judiciais que lhes forem contrárias. Também países de civil law aderiram à reforma do costume internacional, como demonstram decisões ([2]) da Áustria ([3]), França ([4]), Itália ([5]), Holanda ([6]), Espanha ([7]), Suíça ([8]) e Alemanha ([9]).

Entretanto, a relativização da imunidade de execução e a possibilidade de se exigir das representações diplomáticas de Estado soberano estrangeiro a comprovação do motivo ou propósito soberano dos bens que mantêm no Estado acreditante deve ser vista com muita cautela, especialmente quando se trata de imóveis e contas bancárias.

A natureza diplomática dos imóveis dos Estados estrangeiros pode ser facilmente verificada mediante consulta ao Ministério das Relações Exteriores. Quanto às contas bancárias, deve haver pelo menos uma presunção de que não possuem propósito comercial, mas sim soberano. Como lembra James Crawford([10]), em parecer encomendado pelo Estado brasileiro para apresentar no caso Citoma Trading Limited et al. v. Instituto Brasileiro do Café (IBC), acima referido, “if States wish to hold assets clearly impressed with a commercial character in foreign accounts, so be it; but at least there must be a presumption against it”.

Ressalte-se que a imunidade à execução dos bens afetados às atividades diplomáticas e consulares é prevista na Convenção de Viena de 1961 e de 1963, respectivamente (ressalvados os casos dos navios e embarcações, também protegidos por convenção internacional ([11]), os bens não afetados à atividade diplomática ou consular ainda derivam exclusivamente do costume internacional). O artigo 22, parágrafo 3o, da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, por exemplo, dispõe: "Os locais da Missão, seu mobiliário e demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da Missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargo ou medida de execução."

O problema é saber se outros bens, situados no território do foro, mas além dos limites dos locais da Missão, a exemplo das contas bancárias, estariam abrigados pela imunidade escrita na Convenção. Excelente pesquisa feita por Michel Cosnard demonstra que a maior parte das decisões judiciais aplica às contas das embaixadas o regime geral das imunidades dos Estados, fundado no direito consuetudinário internacional, e não na Convenção de Viena, considerando que os bens exteriores aos locais da Missão não teriam sido previstos pelos delegados de 1961, reunidos em Viena ([12]).

A Convenção das Nações Unidas sobre Imunidade de Jurisdição do Estado e de seus Bens, aprovada em 2004, mas ainda aguardando o número mínimo de ratificações para entrar em vigor, estabelece, expressamente, que "qualquer conta bancária, que é usada ou que pretende ser usada na execução das funções da missão diplomática do Estado ou de seus postos consulares, missões especiais, missões junto a organizações internacional ou delegações para órgão de organizações internacionais ou conferência internacionais, não deve ser considerada como propriedade em uso ou que pretende ser usada para fim comercial (não soberano)"[13]. Embora ainda não vigente, esse texto convencional pode ser tido como evidência da norma consuetudinária de Direito Internacional.

De todo modo, seja sob a proteção da Convenção de Viena ou do Direito consuetudinário, deve se presumir que as contas bancárias dos Estados estrangeiros são meios para o exercício da atividade diplomática. Portanto, na esteira do princípio ne impediatur legatio, não devem as contas bancárias ser tocadas por credores do Estado estrangeiro.

Por tudo isso, embora não me assuste com possibilidade de o Estado estrangeiro ser chamado à responsabilidade de comprovar a finalidade soberana de determinado bem que entende imune à jurisdição local, penso que o TRT da 10ª Região perturba ilegalmente a atividade diplomática da Namíbia ao exigir-lhe demonstração de que “os valores totais de suas contas bancárias e do orçamento em execução”, assim como seus bens imóveis, “destinam se exclusivamente às atividades diplomáticas”.[14]


[1]        RT 00611-2008-001-10-00-5 AP – ACÓRDÃO 3ª TURMA/2011, relator D esembargador Douglas Alencar Rodrigues. Disponível em http://www.conjur.com.br/2011-jul-14/embaixada-provar-bens-nao-servem-penhora-acao-trabalhista

([2])       As decisões abaixo referidas constam de declaração juramentada (affidavit) do Professor James Crawford prestada, em outubro de 1998, a pedido do Governo Brasileiro, no caso Citoma Trading Limited et al. v. Instituto Brasileiro do Café et al. Londres, High Court of Justice, Queen’s Bench Division, Commercial Court, 1989 Folio No. 2264.
([3])       Republic of “A” Embassy Bank Account Case (1986) 77 ILR 489 (Corte Suprema)
([4])       Ministry for Economic and Financial Affairs of the Islamic Republic of Iran v Société Ouest Africaine des Béton Industriels v Sénégal (1991) 2 ICSID Reports 337, [1991] Clunet 1007.
([5])       Libyan Arab Socialist People’s Jamahiriya v Rossbeton SRL (1989) 87 ILR 63 (Court of Cassation); Condor v Minister of Justice (1992) 101 ILR 394, 33 ILM 593 (constitutional court)
([6])       MK v State Secretary for Justice (1986) 94 ILR 357 (Council of State).
([7])       Abott v Republic of South Africa (Constitutional Court, 1992) 113 ILR; [1992] REDI 565.
([8])       Arab Republic of Egypt v. Cinetelevision International Registered Trust (1979) 65 ILR 525 (Federal Tribunal).
([9])       Philippine Embassy Bank Account Case (1977) 65 ILR 146 (Federal Constitutional Court).; National Iranian Oil Co Revenues from Oil Sale Case (1983) 65 ILR 215 (Federal Constitutional Court).
([10])     Professor e Diretor do Lauterpacht International Centre for International Law da Universidade de Cambridge. Ex-professor de Direito Internacional das Universidades de Sidney e Adelaide. Ex-Comissário da Comissão de Reforma Legislativa da Austrália, responsável pelo Relatório sobre Imunidade dos Estados Estrangeiros, base da lei australiana sobre imunidade de jurisdição. Membro da Comissão de Direito Internacional da ONU e autor de vários trabalhos publicados sobre o tema da imunidade dos Estados.

([11])     Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relacionadas à Imunidade dos Navios de Propriedade de Estados Soberanos (International Convention for the Unification of Certain Rules relating to the immunity of State-owned Vessels), Bruxelas, 1926; e a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar de 1982.

[12])     COSNARD. Michel. La Soumission des Etats aux Tribunaux Internes Face à la Théorie des Immunités des Etats. Paris: Pédone, 1996, p. 191.

([13])      Artigo 21 (1) (a).

([14])     Parte deste texto foi extraída de meu livro: “A renúncia à imunidade de jurisdição pelo Estado brasileiro e o novo direito da imunidade de jurisdição”. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

Autores

  • Brave

    é advogado, sócio do Barbosa Müssnich e Aragão; doutor em Direito Internacional pela USP; especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP; professor do Instituto Rio Branco.

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