Cooperação Internacional

A decisão extraterritorial sem cooperação

Autor

  • Antenor Madruga

    é sócio do FeldensMadruga Advogados doutor em Direito Internacional pela USP especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP e professor do Instituto Rio Branco.

6 de julho de 2011, 13h49

Spacca
Caricatura: Antenor Madruga - Colunista - Spacca

Questiona-se se a autoridade judiciária brasileira, sem recorrer à cooperação jurídica internacional, pode determinar a pessoas ou empresas, localizadas no território nacional, que façam ou se abstenham de fazer algo em território estrangeiro.

A realização de quaisquer outras diligências processuais ou a execução de decisões judiciais depende de cooperação do respectivo Estado estrangeiro, por respeito à soberania e aos princípios correlatos, tais como independência nacional, não-intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos e cooperação entre os povos.

Os princípios de soberania, independência, não-intervenção e cooperação entre os povos, expressamente albergados na Constituição Federal, ao mesmo tempo em que não permitem aos Estados estrangeiros realizarem diligências processuais ou executarem decisões judiciais em território nacional à margem dos mecanismos apropriados de cooperação jurídica internacional, impedem, fora destes mecanismos, a excursão do poder jurisdicional brasileiro para alcançar bens e pessoas em território estrangeiro.

Neste sentido, é ilustrativo o seguinte trecho de recente acórdão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, relatado pelo ministro Teori Zavascki:
“As relações entre Estados soberanos que têm por objeto a execução de sentenças estrangeiras e de cartas rogatórias representam, portanto, uma classe peculiar de relações internacionais, que se estabelecem em razão da atividade dos respectivos órgãos judiciários e decorrem do princípio da territorialidade da jurisdição, inerente ao princípio da soberania, segundo o qual a autoridade dos juízes (e, portanto, das suas decisões) não pode extrapolar os limites territoriais do seu próprio país …”
(Rcl 2.645/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/11/2009, DJe 16/12/2009)

O Supremo Tribunal Federal, em vários precedentes, rejeitou atos e diligências processuais provenientes de Estados estrangeiros que pretendiam ter eficácia no território nacional fora dos instrumentos próprios de cooperação jurídica internacional. O ministro Rodrigo Alckmin, em voto proferido na SE 2.114-EUA, ressaltou ser “incompatível com a soberania brasileira o fato de praticar-se ato processual estrangeiro dentro do território nacional, com dispensa da rogatória”:

“Ora, no caso, a dispensa de citação das rés, por meio de rogatória (quer por tê-las como representadas por autoridade estrangeira, quer pela prática de ato processual, por via postal, no Brasil), não deve ser admitida. Entendo incompatível com a soberania brasileira o fato de praticar-se ato processual estrangeiro (complementar à citação que seja), dentro do território nacional, com dispensa de rogatória”.
(SE 2.114, Relator(a): min. BILAC PINTO, TRIBUNAL PLENO, julgado em 04/04/1974, DJ 23-05-1975 PP-03507 EMENT VOL-00986-01 PP-00114 RTJ VOL-00087-** PP-00384 ,)

No julgamento da SE 2.671, o STF, na mesma linha, expressamente não admitiu que “funcionário estrangeiro pratique diligência processual em seu país e que tal diligência tenha eficácia em nossa jurisdição”, conforme o voto do ministro Antonio Neder:
“Não é admissível, no Brasil, que funcionário estrangeiro pratique diligência processual em seu país e que tal diligência tenha efeito em nossa jurisdição, notadamente quando executada mediante ofensa da nossa ordem pública e da soberania nacional.”
(SE 2.671 AgR, Relator(a): Min. ANTONIO NEDER, TRIBUNAL PLENO, julgado em 04/06/1980, DJ 01-07-1980 PP-04943 EMENT VOL-01177-01 PP-00067 RTJ VOL-00095-03 PP-01017)

Portanto, pode se concluir, à luz dos precedentes acima, que a autoridade dos juízes e de suas decisões não pode extrapolar os limites territoriais do seu próprio país (STJ, Rcl 2.645/SP, Rel. ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/11/2009, DJe 16/12/2009), porque incompatível com a soberania o fato de praticar-se ato processual estrangeiro dentro do território nacional (STF, SE 2.114, Relator(a): Min. BILAC PINTO, TRIBUNAL PLENO, julgado em 04/04/1974, DJ 23-05-1975 PP-03507 EMENT VOL-00986-01 PP-00114 RTJ VOL-00087-** PP-00384), não sendo admissível que funcionário pratique diligência processual em seu país e que tal diligência tenha efeito em jurisdição estrangeira (STF, SE 2.671 AgR, Relator(a): Min. ANTONIO NEDER, TRIBUNAL PLENO, julgado em 04/06/1980, DJ 01-07-1980 PP-04943 EMENT VOL-01177-01 PP-00067 RTJ VOL-00095-03 PP-01017).

O fato de ter jurisdição sobre pessoas ou fatos sediados no território nacional não autoriza a autoridade judiciária local a determinar, sem recurso à cooperação jurídica internacional, medidas com efeitos processuais em território estrangeiro. Tampouco pode a autoridade judiciária local, sem agredir os princípios da soberania e da cooperação entre os povos, impor o poder de coerção sobre pessoas que se encontram em seu território para dispor sobre bens e pessoas que se encontram em Estado estrangeiro.

Alcançar bens e pessoas em território estrangeiro por meio de soluções unilaterais, à margem dos meios de cooperação jurídica internacional, privilegia a força em detrimento do direito, a extraterritorialidade em detrimento da cooperação, o império em detrimento da convivência harmônica entre soberanias.

Ao se admitir como válido o raciocínio de que a autoridade judiciária brasileira pode determinar comportamentos em jurisdições estrangeiras, teríamos que considerar como igualmente constitucionais e válidas no Brasil (não contrárias à soberania e aos princípios correlatos) ordens judiciais estrangeiras que, por jurisdição pessoal, dispusessem sobre pessoas ou bens no território nacional.

Medidas extraterritoriais unilaterais têm sido utilizadas especialmente pelos Estados Unidos, não sem crítica e resistência da comunidade internacional, que as considera violadoras do direito internacional e da soberania e independência dos demais Estados soberanos.

Em 1992, em decisão no caso United States v. Humberto Alvarez Machain, a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu que o Judiciário norte americano é competente para processar criminalmente cidadão estrangeiro abduzido à força de território mexicano por oficiais norte-americanos, sem autorização das autoridades mexicanas[1].

No caso United States v. Bank of Nova Scotia[2], a Suprema Corte dos Estados Unidos admitiu que o banco Nova Scotia, em Miami, Florida, fosse obrigado a produzir dados bancários existentes em sua filial das Bahamas, a despeito da lei bahamenha de proteção ao sigilo bancário e da inexistência de cooperação jurídica internacional:

“O procedimento de assistência judiciária não empresta a devida deferência aos interesses dos Estados Unidos. Em essência, o banco pede ao tribunal para exigir que o nosso governo peça aos tribunais das Bahamas para ser autorizado a fazer algo lícito, sob leis dos Estados Unidos. Conclui-se que tal procedimento é contrário aos interesses da nossa nação e se sobrepõem aos interesses das Bahamas.”

A partir do caso Nova Scotia, os Estados Unidos passaram a utilizar as chamadas “intimações Nova Scotia” (Nova Scotia Subpoenas) para, unilateralmente, obter provas no exterior a partir da jurisdição sobre pessoas localizadas nos território norte-americano.

David Gerber, professor associado da Faculdade de Direito Chigago-Kent, em artigo publicado no American Journal of Comparative Law, assim se refere às iniciativas extraterritoriais de produção de prova no interesse do processo judicial norte-americano[3]:

“Operando com base nos conceitos nacionais de justiça, os tribunais americanos se consideram autorizados a aplicar extraterritorialmente as regras americanas de produção de prova (por exemplo, para determinar conduta fora dos Estados Unidos). Em resposta, governos estrangeiros procuram proteger seus próprios interesses e conceitos de justiça, tentando impedir ou limitar tais aplicações. As medidas tomadas incluem a pressão diplomática sobre o governo dos Estados Unidos, a participação no contencioso dos EUA, e, em alguns casos, a edição das chamadas "legislação de bloqueio.”

David Small, ex-consultor jurídico adjunto do Departamento de Estado dos Estados Unidos, ressalta[4] que “enquanto os Estados Unidos não estão sós no estabelecimento de jurisdição extraterritorial, eles são a mais profílica fonte de leis, regulamentos e decisões extraterritoriais”. E, continua, “[os Estados Unidos] são o mais relevante alvo de reclamação internacional sobre extraterritorialidade”. Segundo Small, “na ausência de canais viáveis de cooperação, os Estados Unidos se reservam no direito de tomar medidas unilaterais, tais como as ordens para que pessoas sujeitas à jurisdição ‘in personam’ das cortes americanas produzam provas onde quer que estejam localizadas.” Conclui seu artigo com a seguinte advertência:
“… aqueles preocupados com extraterritorialidade devem permanecer vigilantes. Há a certeza de haver escaramuças e batalhas pela frente.”

O próprio Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) reconhece que atos unilaterais com efeitos extraterritoriais são controversos e criticados por outros países. Assim, o DOJ determina a seus procuradores a obtenção de autorização interna prévia para a utilização das intimações “Nova Scotia[5]:
“Como o uso de medidas unilaterais compulsórias pode afetar negativamente a relação com autoridades estrangeiras, todos os procuradores federais devem obter autorização escrita por meio do OIA (Gabinete de Assuntos Internacionais) antes de emitir quaisquer intimações a pessoas ou entidades nos Estados Unidos para provas localizadas no exterior.”

A Constituição e as leis brasileiras, na linha dos precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça que as interpretam, conforme acima visto, não admitem que as autoridades brasileiras emulem seus congêneres norte-americanos na tentativa de estabelecer, à margem da cooperação jurídica internacional, mecanismos unilaterais e extraterritoriais para conferir eficácia às suas decisões, ainda que disfarçados de exercício da jurisdição pessoal.

Observando o mandamento constitucional de que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, não-intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos e cooperação entre os povos, temos firmado tratados bilaterais e multilaterais de cooperação jurídica internacional, inclusive com os Estados Unidos, a exemplo do Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, ratificado no Brasil pelo Decreto 3.810, de 2 de maio de 2001.

No mesmo sentido, a Constituição, o Código de Processo Penal e a legislação extravagante estabelecem mecanismos de cooperação jurídica internacional, como as cartas rogatórias, as homologações de sentença estrangeira, as extradições e outros.

Admitir-se, portanto, como válida uma “solução” unilateral da autoridade judiciária brasileira é fazer coro às interpretações que admitem a ampliação da extraterritorialidade judicial e permanecer surdo às críticas que advogam o fortalecimento da cooperação jurídica internacional. É admitir, por reciprocidade, que Estados estrangeiros possam dispor sobre pessoas e bens localizados no território nacional. Significa não poder reclamar se, amanhã, os Estados Unidos, por exemplo, utilizarem idênticos artifícios para impor suas decisões a pessoas ou bens localizados no Brasil.


[1] United States v. Humberto Alvarez Machain, 504 U.S. 91 (1992)

[2] United States v. The Bank of Nova Scotia, 462 US 1119 (1983). Tradução livre. No original: “The judicial assistance procedure does not afford due deference to the United States’ interests. In essence, the bank asks the court to require our government to ask the courts of the Bahamas to be allowed to do something lawful under United States law. We conclude such a procedure to be contrary to the interests of our nation and outweigh the interests of the Bahamas.”

[3] GERBER, David. “Extraterritorial Discovery and the Conflict of Procedural Systems: Germany and the United States”. In American Journal of Comparative Law, vol. 34, 1986, p. 745. Tradução livre. No orginal: “Operating on the basis of domestic concepts of justice, American courts consider themselves justified in applying American discovery rules extraterritorially (i.e., to require conduct outside the United States). In response, foreign governments seek to protect their own interests and concepts of justice by attempting to prevent or limit such applications. The measures taken have included diplomatic pressure on the United States government, participation in U.S. litigation, and, in some cases, the passage of so-called ‘blocking legislation’

[4] Small, David H. “Managing Extraterritorial Jurisdictional Problems: The United States Government Approach”, in 50 Law & Contemporary Problems 289 (1987), p. 284, 289 e 302. Tradução livre. No original: [284] “While the United States is not alone in asserting extraterritorial jurisdiction, it is the most prolific source of extraterritorial law, regulation, and enforcement action. Not surprisingly, it is the most significant target of international complaint about extraterritoriality.” [289] “Absent viable cooperative channels, they reserve the right to take unilateral measures, such as demands that persons subject to the in personam jurisdiction of U.S. courts provide evidence from wherever located.” [302] “…those concerned with extraterritoriality must remain vigilant. There are sure to be skirmishes and battles ahead.”

[5] Criminal Resources Manual – 279 Subpoenas. Tradução livre. No original: "Since the use of unilateral compulsory measures can adversely affect the Law enforcement relationship with the foreign country, all federal prosecutors must obtain written approval though OIA (Office of International Affairs) before issuing any subpoenas to persons or entities in the United States for records located abroad”

Autores

  • é advogado, sócio do Barbosa Müssnich e Aragão; doutor em Direito Internaiconal pela USP; especialista em Direito Emrpesarial pela PUC-SP; professor do Instituto Rio Branco.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!