Vitimização dos vulneráveis

Direito Penal Econômico não pune executivos do crime

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1 de janeiro de 2011, 8h57

Uma das grandes questões que os estudiosos do Direito Penal Econômico têm a obrigação de resolver se refere a como deve ser a distribuição da responsabilidade penal no âmbito das organizações empresariais complexas[1].

O cerne do problema está no fato de que nos sistemas organizacionais complexos os processos causais são interdependentes, sendo que muitas vezes o sentido ilícito do processo apenas poderá ser conhecido num estágio avançado dos procedimentos[2]. Veja, por exemplo, o caso de um conglomerado econômico que desenvolve atividades lícitas, mas que financia parte de suas atividades com recursos provenientes de crimes praticados contra o sistema financeiro.

Não se trata de uma organização criminosa nos moldes tradicionais, ou seja, criada apenas para a prática de crimes[3], uma vez que grande parte de suas receitas advém do lucro obtido de forma lícita, proveniente de uma de suas subsidiárias chinesas responsável pela fabricação de tênis. Todavia, num primeiro momento, é possível separar as receitas “não contaminadas” pelos recursos do crime das “contaminadas”, tendo havido períodos nos quais 40% das receitas foram obtidas por meio da prática de crimes financeiros, e 60% obtida de forma lícita.

Existiam nessa empresa tanto funcionários com conhecimento da origem ilícita de parte das receitas quanto funcionários que não tinham o menor conhecimento acerca disso. Por exemplo, havia um grupo de contadores responsáveis por encontrar formas de contabilizar as receitas ilícitas de modo a retirar qualquer rastro da ilegalidade originária, e outro grupo que apenas tinha acesso às informações referentes às atividades lícitas.

Contudo, neste último grupo formado por 50 contadores existiam cinco que possuíam o conhecimento acerca das atividades ilegais da empresa, mas que, todavia, integravam o grupo dos contadores inocentes para alterar quando necessário as informações contábeis, de modo a tornar os dados lícitos e ilícitos coerentes e homogêneos.

É evidente que a partir de um olhar puramente causal todos os contadores contribuíram para a violação da norma, ou seja, para a prática do delito de lavagem de dinheiro[4]. Ora, se a antijuridicidade é objetiva como querem alguns, ao constituírem parte do fato ilícito, ou seja, da contabilidade, mesmo os contadores que não dispunham de informações acerca das fontes ilícitas de obtenção de parte das receitas teriam violado a norma, preenchendo, portanto, o tipo objetivo. Sendo assim, dever-se-ia apenas verificar se incidiram ou não em erro de tipo ou proibição, conforme o caso.

No entanto, é incoerente com o significado da materialidade do injusto penal[5] aceitar que profissionais honestos e com uma história de ética construída ao longo da vida possam ter violado a norma da mesma forma que criminosos profissionais. Pensar de outra forma, por certo, implica considerar que no Direito Penal Econômico o aspecto material da antijuridicidade se aplicaria apenas a partir do tipo subjetivo, sendo a aferição do tipo objetivo um processo cognitivo meramente formal.

Com efeito, no caso em questão, do ponto vista puramente objetivo, ou seja, da criação do risco e da relação entre o dano e o risco criado, bem como do fim de proteção da norma[6], não há qualquer diferença entre a conduta dos diversos contadores, uma vez que sendo o referido processo de contabilização um processo complexo, a participação de cada um é causa da configuração objetiva do risco proibido.

É fácil perceber, portanto, que a materialidade do injusto só pode surgir quando são evocadas circunstâncias de índole subjetiva, tal como o conhecimento de informações referentes às atividades criminosas que dão origem a parte das receitas contabilizadas.

São essas informações que atribuem sentido material ao tipo, o que é explicado por um fato já há muito tempo conhecido no âmbito da filosofia moral, ou seja, o de que a justiça ou a injusta não podem ser predicados da causalidade, mas apenas da vontade livre e consciente que utiliza a causalidade.[7]

Por exemplo, a morte de um sujeito por uma descarga elétrica proveniente de um raio não é justa ou injusta, mas a morte de um sujeito que tenha sido intencionalmente eletrocutado numa sessão de tortura sim.

Não obstante, o fato de a dogmática penal ter sido construída a partir do criminoso individual e de um cientificismo positivista, e não a partir de uma perspectiva sistêmica que lhe conferisse idoneidade a compreender o resultado que emerge de processos interdependentes[8], faz com que, não raro, dada a homogeneidade intersubjetiva artificial do ambiente empresarial criada por criminosos especializados[9], seja comum que estes não sejam responsabilizados criminalmente, uma vez que não são vulneráveis[10] à incidência do sistema penal.

Assim, não seria nenhum espanto se no caso mencionado os contadores inocentes tivessem sido condenados no lugar dos culpados. Tal situação, todavia, não pode se perpetuar sendo imperioso descobrir formas de evitar que trabalhadores honestos sejam vítimas desse artificial sentido homogêneo que tem por finalidade igualar a todos no contexto da empresa, servindo como um escudo de proteção aos “executivos do crime”.

Nesse sentido, uma das coisas a se fazer é revisar o conceito de antijuridicidade a partir da filosofia do Direito, de modo a desfazer a crença em torno da existência de uma suposta objetividade da antijuridicidade, que, tal como visto, se apresenta insustentável no âmbito do Direito Penal Econômico, podendo-se dizer o mesmo no que se refere aos outros ramos do Direito.

Com efeito, no exemplo dos contadores, fica evidente que a afirmação da antijuridicidade está estritamente vinculada à existência de dados cognitivos, ou seja, ao conhecimento das informações referentes às atividades ilícitas da empresa. Por outro lado, esses dados cognitivos não se apresentam como simples elementos subjetivos da antijuridicidade, mas como seu pressuposto, uma vez que determinam o seu significado material. Portanto, não há como se afirmar que a antijuridicidade é objetiva, se esta tem sua existência vinculada a dados subjetivos.

In casu, o sentido antijurídico do ato não pode ser encontrado em dados causais como o desenvolvimento da maior parte do trabalho de contabilização, pois surge apenas em nós (nodes)[11] específicos que se encontram inseridos numa complexa rede de procedimentos, por meio da qual o conglomerado esconde suas atividades criminosas.[12]

Poderia acontecer que a maior parte do trabalho de contabilização tenha sido feita pelos contadores inocentes a partir de uma única informação falsa devidamente “maquiada” por um dos cinco contadores criminosos infiltrados. Nesse caso, é indiferente para a afirmação da antijuridicidade perguntar quem teria sido o responsável por realizar a maior parte do processo.

Nesse sentido, é possível concluir afirmando que embora o Direito Penal Econômico tenha sido originariamente concebido para punir os chamados “criminosos de colarinho branco”, a desatenção por parte das autoridades persecutórias ao fenômeno da “homogeneidade intersubjetiva” tem permitido que os “executivos do crime” não sejam atingidos pelas duras sanções impostas pelo direito penal, uma vez que desenvolveram a capacidade de transformar em escudo a grande massa vulnerável de seus trabalhadores.


[1] Destacando as insuficiências da dogmática penal tradicional para o tratamento de problemas relacionados ao concurso de agentes no âmbito das organizações empresariais complexas assevera Feijoo Sánchez: Las empresas y personas jurídicas son uma nueva realidade emergente que ya no pueden ser tratadas como uma suma de sujeitos individuales sino que suponen uma nueva realidade social distinta a aquéllos. Esta constatación está dando lugar a que las ciências jurídicas e, incluso, la filosofia moral se replanteen unas estructuras de imputación construídas para sujeitos que actúan individual y asiladamente y que parecen prestar unos servicios bastante pobres cuando se trata de determinar la eventual responsabilidade de aquéllos que actuán dentre de um determinado entramado organizativo empresarial. SÁNCHEZ, Bernardo Feijoo. Derecho Penal de la empresa e imputación objetiva. Madrid: Reus, 2007 p. 126

[2] Tal como adverte Feijoo Sánchez o contexto empresarial marcado por complexos processos de divisão de trabalho e delegação de funções “acabará afetando a imputação subjetiva e objetiva”: En mi opinión, a través de la idea de que la organización modifica los critérios de imputación de injustos penales se pueden a empezar a resolver de forma más adequada algunos callejones sin salida que há ido encontrando la doctrina y la práxis judicial em la medida em que las teorías tradicionales del injusto se encuentran demasiado apegadas a la delincuencia en clave individual. SÁNCHEZ, Ibidem, p. 124

[3] Nesse sentido, é possível afirmar que os crimes cometidos por meio da empresa se diferem substancialmente daqueles cometidos pelas chamadas organizações criminosas como a máfia ou mesmo por organizações terroristas. A causa disso é que a prática bem sucedida dos delitos empresariais depende da construção e desenvolvimento de uma estrutura legal que deva servir como uma espécie de “escudo de proteção” para a prática dos delitos. Assim, caso seja descoberta uma fraude no grupo econômico, os “criminosos de escritório” podem se defender alegando que a fraude não passa de uma questão pontual, restrita a um círculo específico de funcionários, sendo estes normalmente os mais “vulneráveis” à incidência do sistema penal. Ademais, não é raro que essas empresas criminosas mantenham programas assistenciais, uma vez que a imagem assistencialista construída junto à sociedade reforça a proteção contra a possível descoberta de suas práticas delitivas. Não obstante, é claro que podem existir casos nos quais a prática de ilícitos seja, de fato, pontual. A grande diferença, no entanto, reside no fato de que a empresa criminosa embora desenvolva parte de suas atividades consoante a mais perfeita legalidade, chegando inclusive a desenvolver projetos sociais, tem as atividades ilícitas como fonte e razão de seu atuar. Por exemplo, embora a empresa tenha funcionários devidamente registrados, e recolha todos os tributos devidos, tal só é feito para dissimular, por exemplo, a natureza de receitas proveniente do crime.

[4] Lei 9613/98. Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: (…) VI – contra o sistema financeiro nacional; (…) § 1º Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo: I – os converte em ativos lícitos; II – os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere (…)

[5] No que se refere ao conceito de antijuridicidade material, pertinentes são as reflexões de Harro Otto no sentido de que embora a norma penal encontre seu objeto de referência no comportamento antissocial, não são todos os comportamentos antissociais que são objetos de referência da norma penal, mas apenas aqueles que possuem dignidade penal “strafwürdig”. Por sua vez, o referido autor entende que o conceito de dignidade penal encontra sua referência direta no conceito de pena “Der Begriff der Strafwürdigkeit findet seinen unmittelbaren Bezug im Begriff der Strafe”, sendo este conceito entendido não apenas em seus aspectos relacionados com a prevenção geral e especial, mas consubstanciando um juízo de desvalor ético social “Sie enthält damit unabhängig von general und speziallpräventiven Aspekten ein socialetiches Unwerturteil”, ao mesmo tempo em que, tendo em vista o princípio da proporcionalidade, tem sua aplicação limitada apenas àqueles casos nos quais se apresenta como indispensável para garantir a paz jurídica (…) “erfordert es daher, Strafe nur dort als Reaktion zuzulassen, wo sie unerlässlich ist, um den rechtsfrieden zu gewährleisten” OTTO, Harro. Mittelbare Täterschaft und Verbotsirrtum. Festschrift für Claus Roxin zum 70 Geburstag am 15.mai 2001(Hrsg). von Bernd Schünemann. Berlin: de Gruyter, 2001, p.492

[6] Sobre o fim da norma (“Schutzzweck der norm”) como critério da teoria da imputação objetiva, Wessels corretamente afirma que “se a teoria da imputação objetiva requer a criação de um risco relevante juridicamente, então isso significa que o risco é desaprovado juridicamente” Wenn die objektive Zurechnung die Schaffung einer rechtlich relevanten Gefahr vorausetzt, so ist damit gemeint,dass die Gefahr rechtlich missbiligt wird”.WESSELS, Johannes. Strafrecht algemeiner Teil: Die Straftat und ihr Aufbau. Heidelberg: C.F Müller, 2009, p.64

[7] Com efeito, tal como asseverado por Kant, a única coisa no mundo que pode ser, sem restrição, avaliada como boa é a boa vontade. “Es ist überall nichts in der Welt, ja überhaupt auch außer derselben zu denken möglich, was ohne Einschränkung für gut könnte gehalten werden, als allein ein guter Wille” KANT, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten.

[8] Este não é, todavia, um problema que afeta apenas a dogmática penal, mas todo um viés epistemológico que durante grande parte da história orientou as pesquisas desenvolvidas nos campos científicos mais diversos. No entanto esse paradigma que ainda tem orientado a dogmática tradicional se apresenta inadequado para explicar o funcionamento de sistemas sociais complexos como o ambiente empresarial, tal como explicam os professores Robert L. Goldstone, Michael E. Roberts, and Todd M. Gureckis da universidade de indiana: It is natural for psychologists to focus on the behavior of single individuals, because introspection provides people with motivation and perspective at this level. However, in a literal sense, we are all participating in entities greater than ourselves. Self-organized collectives of people create emergent group-level patterns that are rarely understood or intended by any individual. A business has a style and ethos that transcends its employees. GOLDSTONE, Robert L; ROBERTS, Michael E; M, Todd. Emergent Processes in Group Behavior. Disponível em: http://cognitrn.psych.indiana.edu/rgoldsto/pdfs/currentdirections08.pdf acesso em 11/12/2010

[9] O conceito de “homogeneidade intersubjetiva artificial” quer significar apenas que embora aparentemente numa empresa criminosa todos os sujeitos sejam criminosos, na grande maioria dos casos isso não é verdade, sobretudo, quando se trata de organizações empresariais complexas a exemplo de uma multinacional. A criação de um processo intersubjetivo homogêneo pode ser vista como uma estratégia de defesa criada pelos executivos do crime para se proteger por meio da vulnerabilidade de sujeitos inocentes.

[10] Nesse sentido se pronuncia Zaffaroni: Así, es posible afirmar en general que entre las personas de mayores rentas y más cercanas al poder, el riesgo de criminalización es escaso (bajo estado de vulnerabilidad o alta cobertura) e inversamente, entre los de menores rentas y más lejanos al poder, el riesgo es considerable (alto estado de vulnerabilidad y baja o nula cobertura). No obstante, algunos de los primeros son seleccionados; y entre los últimos, si bien se selecciona con mucha mayor frecuencia, siempre se trata de uma ínfima minoría. ZAFFARONI, Eugênio Raul; SLOKAR, Alexandro Alagia. Derecho Penal: Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 654

[11] Uma instituição empresarial complexa como uma multinacional não pode ser analisada apenas a partir da divisão de trabalho e da hierarquia, uma vez que esses fatores não definem o fluxo de poder dentro desse tipo de organização. Assim, o estudo dessas estruturas complexas no âmbito do Direito Penal Econômico deve empregar modelos teóricos adequados tal como a análise de rede “network analysis”. Em termos simples, uma rede (network) pode ser definida como uma espécie de organização social formada por diversos agentes denominados nós (nodes), bem como pelos padrões relacionais entre eles, os quais podem ser chamados de conexões ou vínculos. Nesse sentido, uma rede “network” forma uma estrutura que pode tanto restringir quanto aumentar o poder dos agentes (nodes), sendo que o decisivo para o exercício de poder no interior de uma rede não se relaciona tanto com os atributos individuais de cada um dos nós, mas com a natureza das conexões estabelecidas, e com a centralidade de sua posição que é explicada nos seguintes termos por Benjamin Cohen: “Centraliy corresponds to the number of shortest paths in the network that pass trought a particular node, a form of asymmetry that indicates the dependence of the network on that node for maintaining connectedness. A node`s network power increase when the actor gains exclusive ties to otherwise marginalized or weakly linked nodes or groups of nodes.”COHEN, Benjamin J. Currency and State Power. Revista da Procuradoria Geral do Banco Central. V.3, n° 2, pp. 15-49, dez. 2009, p.24-25 Nesse sentido, é de fundamental importância para o direito penal econômico não se ater a aspectos formais, tal como a hierarquia existente no interior de determinada organização empresarial. Isso pelo fato de que o verdadeiro responsável pelo direcionamento da empresa no sentido da prática de crimes pode utilizar determinados nós “nodes” para exercer sua influência, inclusive por meio de uma alteração nas posições de centralidade. Para uma visão mais aprofundada desse modelo de analise da ação social Cf. WHITE, Harrison. C. Identity and control: A Structural Theory of Social Action. New Jersey: Princeton Press, 1992.

[12] Importante frisar que o modelo de “análise de redes” não é restringido por conteúdos específicos. Ou seja, é possível, por exemplo, entender como nós as diversas subsidiárias de uma multinacional, podendo-se aplicar esse modelo, inclusive, de forma simultânea numa análise complexa em termos macro ou microestruturais.

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