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O uso do Habeas Corpus e a defesa da democracia

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23 de fevereiro de 2011, 14h00

O ‘habeas corpus’ foi um dos passos mais seguros e uma das armas mais eficientes para a salvação da civilização ocidental. É o ‘não’, que a Justiça diz, em mandamento, à violência e à ilegalidade; e o ‘sim’, a quem confia nos textos constitucionais e nas leis. Mesmo aqueles povos que avançaram, ou que avançam, com revoluções, para a maior igualdade, têm, com o tempo, de atender a que para o Homem há três caminhos que o elevam no futuro: a democracia, a liberdade e a maior igualdade.[1] (Pontes de Miranda)

No anteprojeto de Código de Processo Penal apresentado ao Senado, procurou-se limitar o uso do Habeas Corpus apenas às hipóteses em que a liberdade de locomoção estivesse diretamente ameaçada.

O texto projetado excluía situações de coação ilegal à liberdade de locomoção já tradicionais em nosso ordenamento jurídico, tais como a falta de justa causa, a incompetência do juízo, a nulidade do processo, ou a extinção da punibilidade, presentes no texto do diploma processual vigente, que é de 1941, época em que os influxos autoritários eram bastante fortes no país.

Felizmente, para preservar a nação de um enorme retrocesso social, com a limitação de uma garantia constitucional conquistada com muito custo, a proposta foi rejeitada no Senado, mantendo-se intocada a redação atual.

A reforma processual, que foi encomendada sob o discurso de adequação do Código de Processo Penal ao sistema de garantias da Constituição de 1988, mostrou-se, no dizer de juristas de renome[2], um “projeto draconiano”, pois trouxe, na realidade, um odioso instrumento processual de vindita.

Por essa mesma razão, a Câmara dos Deputados sinaliza a não aprovação do projeto e a votação, em conjunto, de uma alternativa mais democrática, proposta pelo deputado Miro Teixeira a partir de projeto do Instituto dos Advogados do Brasil. O mote usado como argumento para a proposta, no que se refere ao Habeas Corpus, reside no temido e demonizado “uso indiscriminado” do remédio constitucional.

O suposto aumento do número de Habeas Corpus distribuídos, dado que, aliás, não vem exposto de modo transparente nas páginas oficiais de nossas cortes superiores para conferência, provoca um aumento do acervo de nossos julgadores e coloca em crise a sua própria atividade, pois prejudica a qualidade da prestação jurisdicional.

A reação imediata, tendência natural de órgãos que se vêm atingidos pelos efeitos desse crescimento, é pressionar para que haja uma barreira pura e simplesmente ao uso do remédio heróico, mas as verdadeiras causas do fenômeno não são pesquisadas. Será mesmo que o número de Habeas Corpus distribuídos se deve a seu uso indiscriminado?

Analisando dados de 2008, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes, à época o presidente da Corte, registrou que o índice de concessão dos Habeas Corpus era bastante alto, variando de 30% a 50%. Para ele, “o índice é bastante alto, se considerar que a essa altura já teríamos passado pelo juiz de primeiro grau, pelos Tribunais de Justiça, pelo STJ até chegar ao STF.[3]

A verdade é que a utilização do Habeas Corpus reflete, isto sim, o uso indiscriminado de denúncias genéricas e sem a mínima base empírica, além de decisões que ferem os direitos e garantias individuais dos cidadãos brasileiros.

A origem do Habeas Corpus (Magna Carta, 1215), aliás, está umbilicalmente ligada à concessão de um remédio constitucional para que o cidadão possa se voltar contra abusos do Leviatã. Nada mais atual no Brasil do século XXI, de um Estado cada vez mais invasivo e policialesco.

Além disso, diversos outros fatores impulsionam o aumento da utilização do Habeas Corpus, como o próprio aumento da população em relação ao número de ministros nas cortes superiores, o aumento da consciência democrática, o crescimento de operações policiais, a maximização do Direito Penal com a criação de novos tipos penais e ampliação do leque de bens jurídicos tutelados.

O que se percebe é que o Habeas Corpus se tornou o último, senão o único, instrumento de resistência do cidadão contra uma onda avassaladora de autoritarismo, gerada por pensamento simplista, repetido como um mantra pela imprensa, de que a impunidade pode ser combatida por meio da vingança social travestida de Justiça.

Neste quadro, o cidadão acusado de uma infração penal se vê diante de todo o aparato estatal, como Receita Federal, Polícia Judiciária, Polícia Militar e Ministério Público, que agem sob os aplausos de uma mídia nunca disposta a narrar a sua versão, a ele restando apenas o trabalho de seus advogados e as armas que o instrumento jurídico lhe proporciona, entre elas, o Habeas Corpus.

É demasiadamente simplista imputar a culpa pelo número de processos nos Tribunais Superiores aos advogados que impetram Habeas Corpus e não às ilegalidades praticadas nas instâncias inferiores, como se a culpa pela superlotação dos nossos hospitais fosse dos doentes que ali aportam.

Por fim, é importante destacar que, segundo a Central do Cidadão[4], 23% dos Habeas Corpus que aportam no Supremo Tribunal Federal provêm de cartas escritas de próprio punho por presidiários. Restringir esta via é não apenas impedir o acesso à Justiça como calar a voz do povo e sufocar a esperança de democracia da nação.


[1] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. História e prática do habeas corpus. Campinas: Bookseller, 1999. Prefácio à 7ª edição.

[2] DELMANTO, Roberto. Recrudescimento à caminho. Disponível em: www.oabsp.org.br/…/Revisado%20ROBERTO%20DELMANTO%20JUNIOR…/download

[3] Disponível em: http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticia/JUIZES+NAO+CONCEDEM+HABEAS+CORPUS+POR+COVARDIA+INSTITUCIONAL+DIZ+MENDES_58276.shtml

[4] CARVALHO, Luíza. Jornal Valor Econômico. 02 de agosto de 2010.

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