Ideias do Milênio

"Revolta contra o capitalismo é forma de reforçá-lo"

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18 de fevereiro de 2011, 8h51

Divulgação/GloboNews
Slavoj Žižek - Divulgação/GloboNews

Toda a revolta contra o capitalismo — protestos, movimentos ecológicos, fundamentalismo islâmico — pode ser apenas uma forma de reforçar o seu poder. A teoria é do polêmico e bem humorado Slavoj Žižek, pensador esloveno conhecido pelo mundo, tanto pelos seus 50 livros publicados, quanto pelas suas análises lacanianas dos filmes de Hollywood, de Alfred Hithcock e David Lynch.

Na entrevista, concedida ao repórter Jorge Pontual, no programa Milênio, da GloboNews, Žižek fala da transformação do Afeganistão em um país fundamentalista, sobre a expansão e diferenças do populismo na América Latina e também da reação das pessoas no mundo Ocidental à pressão para serem livres.

“O que a sociedade está lhe dizendo é o seguinte: ‘Seja você mesmo, seja você plenamente, realize o seu potencial’. Com toda essa pressão para sermos livres, sofremos mais de ansiedade e de impotência do que nunca”, analisa.

O Milênio é transmitido pela Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça-feira, às 5h30 de quarta e às 7h05 de domingo.

Leia a entrevista de Slavoj Žižek a Jorge Pontual:

Jorge Pontual — Protestos anticapitalistas, movimentos ecológicos, militantes pacifistas, fundamentalismo islâmico, redes de terroristas: à primeira vista, todos seriam inimigos do sistema dominante. Na verdade, apenas reforçam o poder do capitalismo avançado. Esta é uma das teses polêmicas do pensador Slavoj Žižek, o enfant terrible da filosofia, o rock star da psicanálise, o inimigo radical tanto da direita quanto da esquerda. Nascido na ex-Iugoslávia, no que é hoje a pequena Eslovênia, Žižek tomou de assalto o mundo acadêmico internacional com mais de 50 livros publicados em dezenas de países, entre eles o Brasil. Turnês mundo afora com palestras superlotadas e infindáveis vídeos e filmes sobre sua obsessão: o cinema. Aliando a erudição ao gosto por piadas escatológicas, Žižek é um marxista mais próximo de Groucho Marx do que de Karl Marx. Um comunista que segue Jesus e que prega o cristianismo sem Deus. No primeiro de dois Milênios profundos e também hilariantes, gravados no estúdio da Globo em Nova York, Žižek fala do terrorismo e dos impasses da esquerda populista e não deixa pedra sobre pedra.

Jorge Pontual — Olhando por esta janela dez anos atrás, era possível ver as torres gêmeas. Elas ficavam bem ali. Você escreveu muito sobre isso, certo? Vamos falar primeiro sobre isso: os atentados de 11 de setembro, suas consequências, para mostrar aos nossos espectadores como você trata um tema, as ideias preconcebidas, a ideologia escondendo a verdade nesses tipos de situação. Por exemplo, que o liberalismo americano e o fundamentalismo islâmico fazem parte do mesmo sistema, que não é possível entender um sem o outro.
Slavoj Žižek — Se retroalimentam.

Jorge Pontual — Um se alimenta do outro.
Slavoj Žižek — Isso é crucial para o modo como a ideologia funciona hoje. Como disse o grande filósofo Gilles Deleuze, nós não temos apenas respostas erradas para alguns problemas, mas temos também problemas errados. Problemas que talvez tenham relação com problemas reais, mas pela maneira como são formulados, eles são mistificados. Logicamente, o terrorismo é um problema real que enfrentamos. Mas ao formular o problema como uma luta entre a tolerância liberal e o fundamentalismo, você já mistificou o problema. Por quê? Porque eles são, como você disse — e eu concordo plenamente — eles são dois lados da mesma moeda. Não que não importe que eles sejam diferentes, mas é a ordem liberal mundial que, por uma necessidade intrínseca, gera o fundamentalismo. O maior exemplo, que eu sempre cito, é o Afeganistão. Infelizmente, tenho idade suficiente para lembrar o que era o Afeganistão há 35, 40 anos. Talvez fosse o país mais tolerante e menos fundamentalista. Era o país muçulmano menos fundamentalista do Oriente Médio.

Jorge Pontual — Tinham um partido comunista.

Slavoj Žižek — Um partido forte, local. Ao assumir o poder, surpreendeu até os soviéticos.

Jorge Pontual — As mulheres não usavam véu.
Slavoj Žižek — Eles tinham um rei que era uma espécie de reformista progressivo. Mas os comunistas eram tão fortes que achavam que podiam dar um golpe de Estado sozinhos. Quando a União Soviética interveio, os EUA fortaleceram seus próprios agentes para combatê-la, dentre eles, Osama Bin Laden e outros. Então, como resultado, o Afeganistão se tornou fundamentalista. Não se trata de um país que sempre foi fundamentalista. O Afeganistão se tornou fundamentalista porque ficou enredado na política mundial.

Jorge Pontual — Agora o fantoche americano, Hamid Karzai, está recebendo dinheiro do Irã, o “inimigo maligno”, e está dizendo: “O patriotismo tem um preço. Os EUA também me dão dinheiro”.
Slavoj Žižek — Isso é o mais triste desses países que os EUA querem “democratizar” sem o devido trabalho político. O resultado é uma mistura de fundamentalismo religioso e corrupção pura e simples. E você não sabe o que escolher. Eu estive recentemente — na verdade, há mais de um ano — em Ramallah e conversei com alguns intelectuais palestinos que me disseram que a maior tragédia para eles era que, nos últimos 20, 25 anos, a esquerda secular palestina havia praticamente desaparecido. Até mesmo certos rostos. Você se lembra, alguns anos atrás, ela era quase sempre o rosto da OLP na CNN, Hanna Ashrab. Ela ainda está lá, e eu sei… Essa é uma história maravilhosa. Um israelense me explicou que ela desapareceu num acordo estranho entre os dois lados. Os palestinos não queriam que ela… Os fundamentalistas diziam: “Que história é essa? Uma mulher que foi educada no Ocidente não pode nos representar”. Os sionistas de linha dura também não a queriam porque diziam que ela passava a imagem errada. As pessoas iam achar que os palestino eram normais. Eles preferiam os palestinos de Arafat, que balbuciavam num inglês mal articulado. E sobre o que você falou da cumplicidade dos dois lados… Vou contar algo que vai interessar aos espectadores. Uma história incrível que aconteceu com um bom amigo antissionista. Udi Aloni, um cineasta judeu. Alguns dias depois do atentado de 11 de setembro, ele pegou um táxi próximo a Union Square. E, chegando à Union Square, o taxista, um muçulmano fundamentalista, contou a ele a história de sempre: que o atentado tinha sido planejado pelos judeus, que nenhum judeu tinha morrido porque todos haviam sido informados e coisa e tal. O que ele fez em respeito aos seus irmãos judeus? Pediu que o homem parasse o táxi porque não falava com pessoas de visão tão estrita. Ele desceu e atravessou a Union Square, onde viu um grupo de judeus fundamentalistas pregando para as pessoas, e um deles gritava: “Agora temos uma prova de que Deus nos ama. Nenhum judeu morreu no atentado de 11/9!” Ele pensou: “É a mesma coisa!” O sotaque era diferente, a história era igual. O mesmo que aconteceu com o Afeganistão aconteceu com o Kansas aqui nos EUA. Essa é a tragédia americana. Seus telespectadores devem conhecer o livro maravilhoso… Não é uma grande teoria, mas uma boa descrição, de Thomas Frank. Ele diz que o Estado americano que, há 30 anos — e foi assim por mais de 100 anos — era o mais progressivo de todos, sempre foi, começando com John Brown, tinha o mais articulado movimento abolicionista, é agora o alicerce da linha mais dura.

Jorge Pontual — Não se ensina a evolução.
Slavoj Žižek — Pois é. Isso deveria nos fazer pensar.

Jorge Pontual — É o Afeganistão dos americanos. Mas isso é um fenômeno novo, certo? Não é tradição.
Slavoj Žižek — É, mas isso faz parte. E é aí que chegamos a uma tendência geral. Faz parte de uma tendência geral muito preocupante. Estou escrevendo um livro político em que tento desenvolver esse tema. Não posso falar do seu país ou da América Latina. Mais até na Europa do que na América Latina, é uma coisa que realmente me preocupa e me apavora. Deixe-me simplificar ao máximo. Até agora, na disputa política típica, o máximo que temos são dois grandes partidos: um de centro-esquerda, outro de centro-direita, com o mesmo poder, ambos agradam a toda a população. E há outros partidos menores. Agora uma coisa terrível está acontecendo. Cada vez mais, entre esses dois partidos, um deles desaparece, ou eles se unem. Eles deixam de ser dois partidos e nós ficamos com um partido principal. Vamos chamá-lo de “Partido do Puro Capitalismo Global”. Ele é pró-capitalismo, mas, ao mesmo tempo, defende a diversidade cultural, os homossexuais, o aborto. O único sério oponente, o que realmente inflama os ânimos, é o anti-imigrantista, nacionalista, fundamentalista etc. E não apenas em antigos países comunistas do sudeste europeu, como Hungria, Romênia e Albânia. Mesmo naqueles que eram para nós, na Europa, o mito de tolerância: a Suécia, a Noruega, a Holanda etc. Essa é a nossa tragédia. É muito preocupante. Porque a esquerda tragicamente aceitou essa, digamos, “despolitização”. De acordo com os acadêmicos de esquerda, todos os problemas agora são problemas culturais, de tolerância e assim por diante. Pense na Europa Ocidental: a única força política, não essas maoístas com membros em cinco países, mas a única força política relevante que ainda ousa se dirigir à classe trabalhadora são os anti-imigrantes de direita. Na França, Le Pen é a única entre os políticos. E isso me preocupa. Eu me lembro de um velho dito de Walter Benjamin: “Por trás de todo fascismo há uma revolução de esquerda fracassada”. Isso é literalmente verdade nos países árabes, por exemplo. Nós nos esquecemos completamente de como, até 20, 30 anos atrás, havia partidos comunistas muito fortes, seculares. Tudo isso desapareceu. E, por isso, eu digo aos meus amigos liberais: “Não quero mais terrorismo, mas vocês se dão conta de que apenas algum tipo de novas esquerda, não sei qual, poderia salvar suas próprias ideias liberais?” E algo novo, não a velha e conhecida esquerda comunista. E não há ambiguidade nisso. A experiência stalinista do século 20…

Jorge Pontual — Acabou.
Slavoj Žižek — Não apenas acabou, como talvez tenha sido a maior tragédia política, ética, talvez até econômica, da história da humanidade. De certa forma, foi muito pior que o fascismo. Por quê? No fascismo, você sabe. Fazendo uma análise simplista, os fascistas são os caras maus que diziam em seus programas: “Vamos fazer coisas ruins”. Aí, chegaram ao poder e fizeram as coisas ruins. Certo, e daí? Com os comunistas, foi uma verdadeira tragédia. O que quer que se diga sobre eles, no começo, havia um potencial emancipatório que se transformou em terror, de certa forma ainda mais terrível e mais difundido. Então, por que me refiro ao stalinismo de forma quase ambígua? Creio que se trata do maior enigma do século 20. Acho que até o mais liberal crítico de direita anticomunista naqueles grandes livros, como os de Montefiore. Eles não dão conta do recado. Nós ainda precisamos confrontar esse enigma. Mesmo os teóricos de esquerda importantes o evitam, como os da Escola de Frankfurt: Habermas e outros. Eles não descontaram todos os escritos contra o fascismo, e assim por diante. Eles ignoram totalmente o fenômeno do stalinismo. É algo que ainda temos que abordar.

Jorge Pontual — Uma coisa sobre a qual você fala brevemente no seu livro e que gostaria que elaborasse um pouco mais é o capitalismo populista da América Latina. O que é esse capitalismo populista de que você fala?
Slavoj Žižek — Eu não tenho uma teoria muito profunda. O que estou querendo dizer é que… Vou ser bem sucinto. Em primeiro lugar, quero enfatizar bem: talvez até seja uma coisa boa. Posso ser radical de esquerda, mas não sou um idiota completo. Não estou esperando a formação do novo partido leninista. Nós devemos ser realistas e aproveitar as oportunidades. Li um texto excelente de Goran Therborn, um sociólogo sueco. O texto é bem simples, mas é fantástico. Ele toma dois conjuntos de valores. Primeiro, ele calcula, de acordo com dados oficiais, o nível de igualitarismo dos países escandinavos. Apesar da crise e tudo o mais, eles ainda são extremamente igualitários. Eu fiquei chocado ao saber que, na Noruega, mesmo em empresas privadas, a variação entre o maior e o menor salário é de 1 para 4, talvez de 1 para 5. Agora, o contra-argumento neoliberal de costume é que, se fizermos isso, se mantivermos o seguro-saúde e tudo o mais, enfraqueceremos a competitividade. Sabe o que ele fez? Ele não analisou publicações parciais de esquerda, mas o Wall Street Journal, a lista oficial dos capitalistas dos países mais competitivos. Eles estão no topo da mesma forma. Mas, no topo do topo temos Cingapura e Hong Kong. Depois, vêm Suécia e Noruega. Isso prova que não é verdade o que os neoliberais estão dizendo, que, ao abolir o Estado assistencial, você perde competitividade. Desculpe, mas não necessariamente. Eu não idealizo Lula, mas vocês, ainda assim, provaram que, nos últimos anos, com Lula na presidência… Volto a dizer que não o idealizo. Como isso se relaciona como a sua pergunta? O que está acontecendo graças ao imortal presidente George Bush, o filho? Por causa de uma coisa que ele fez, todo esquerdista deveria rezar pela alma dele todos os dias. Nos seus oito anos de governo, ele, com certeza, enfraqueceu a hegemonia e a liderança mundial dos EUA. Depois de seu governo, os EUA são, cada vez mais, apenas um entre muitos. Agora estão surgindo novos blocos hegemônicos. Vamos chamar ainda de bloco dos EUA e países anglo-saxões, a Europa ainda está buscando o seu caminho. Temos o que chamamos ceticamente de “capitalismo com valores asiáticos” nos países orientais mais autoritários e temos o populismo latino. Se você me perguntar, nenhum deles me agrada. Em primeiro lugar, eu não gostaria de viver num mundo onde as escolhas fossem apenas China ou EUA. Eu gostaria de elaborar mais sobre as diferenças. Diferentemente de alguns amigos meus… Não estou falando aqui do Brasil, mas de populistas de esquerda latinos, como Perón e Chávez atualmente. Eu não confio neles. Para mim, este foi o meu grande mal-entendido — e ele literalmente me odeia por isso — com meu ex-amigo Ernesto Laclau. Ele ainda acha que o populismo é algo originalmente progressivo, que promove o avanço da esquerda. Não. O populismo está sempre, por definição, na origem do fascismo. Populismo significa construir um grande bloco nacionalista acima das diferenças de classe. Então, quem passa a ser o inimigo? Não há mais a luta de classes, então precisamos de alguém, mesmo que não os judeus, de alguém como os judeus, contra quem possamos nos rebelar. Por isso, infelizmente, não concordo com meus colegas argentinos que elogiam o peronismo de esquerda. Acho que o peronismo foi uma catástrofe. Nesse nível, não estou tentando bajular o Brasil, não sei o bastante sobre vocês. Mas acho que, talvez, e me corrija se eu estiver errado, alguns de seus presidentes tenham flertado… Como era o nome dele?

Jorge Pontual — Com o fascismo?
Slavoj Žižek — Não, não. Com o populismo, até o esquerdista Quadros… Kubitschek…

Jorge Pontual — Jango.
Slavoj Žižek — É, um pouco. Mas, entretanto, vocês nunca se encaixaram nesse verdadeiro populismo latino-americano. Essa foi a sorte de vocês. É por isso que vocês estão prosperando. É por isso que a Argentina não consegue decolar. É por isso que, mesmo na Venezuela, Chávez, eu afirmo… Eu não entendo. Deixe-me ser bem claro. Primeiro, Chávez fez algo pelo qual deveríamos ser gratos a ele. Pelo que eu sei, ele pelo menos tentou ir mais longe do que Lula e tudo o mais, para realmente incluir no processo político os excluídos das favelas. Isso é muito bom. Se não fizermos isso, vamos nos acercar de uma guerra civil interna. Não é apenas um fenômeno latino-americano. Olhe a França, todos aqueles carros queimados. Olhe a China! Eu estive lá há três meses, e eles me perguntaram se eu sabia quantas rebeliões violentas espontâneas aconteciam dentro da China por ano. Por “rebelião” quero dizer uma comoção tão importante que a Polícia e o Exército têm que intervir, e há derramamento de sangue. Por ano, são 20 mil. Entende? Tudo bem. Mas, na minha opinião, ele se perdeu nesse tradicional. E o petróleo foi a sua maldição, de certa forma.

Jorge Pontual — Chávez?
Slavoj Žižek — É. O mesmo acontece com os regimes árabes. Se você tem uma grande fonte de dinheiro, isso, infelizmente, dá a você espaço de manobra suficiente para adiar o aparato realmente eficaz do Estado, as reconstruções e tudo mais.

Jorge Pontual — E qual é o problema de Chávez?
Slavoj Žižek — Na minha opinião, é funcionar cada vez mais como um país caudilhista latino-americano. Eu sei que ele também tenta implementar umas parcerias, mas é basicamente um estado autoritário.

Jorge Pontual — E a proximidade deles com o governo de Ahmadinejad?
Slavoj Žižek — Foi aí que começaram as minhas suspeitas com relação a Chávez. Primeiro pensei que talvez fosse bom o que ele estava tentando fazer. Mas veja os aliados dele. Talvez você conheça o ditado que diz: “Diga-me com quem andas e te direi quem és”. Ahmadinejad! Pior ainda, Lukashenko. Sem falar de Putin. Lukashenko. Ele é um louco. Isso é motivo de muita preocupação. Por exemplo, precisamente… Eu não sou um liberal ingênuo pró-Ocidente, mas acho que as últimas eleições no Irã foram quase um evento histórico mundial. Por quê? Mousavi, o candidato derrotado oficialmente, talvez fosse uma verdadeira solução. Mousavi fazia parte da revolução do Khomeini. Mas ele fazia parte do grupo que foi posto de lado quando os fundamentalistas assumiram o poder. Ele é a prova viva de que a Revolução de Khomeini não foi simplesmente um golpe extremista islâmico. Se você tiver uma certa idade… Alguns de nós têm, que coisa trágica! Você se lembra de que, quando o Xá partiu e Khomeini assumiu o poder, a situação ficou indefinida por cerca de um ano e meio. Até que, finalmente, os fundamentalistas assumiram o poder. Aí, tudo o que havia sido reprimido, um aspecto mais emancipatório, explodiu. Isso é muito importante porque era contra o fundamentalismo, mas não era algo simples: “Vamos adotar o liberalismo Ocidental”. E aqui, meu Deus, como foi que Chávez não viu isso? Frequentemente, quando a esquerda consegue um progresso autêntico, o Terceiro Mundo está envolvido. Você sabe qual é a hipocrisia de esquerda de hoje nos países desenvolvidos? Eles gostam da revolução com uma condição: que ela aconteça bem longe, que não mude a vida deles. Pode ser no Vietnã, em Cuba… É bom que ela aconteça longe para você fazer seu trabalho sujo aqui: você faz esquemas, se corrompe, mas seu coração está lá longe. O mesmo acontece com Chávez hoje em dia. É fácil para os europeus gostarem dele. Mas eu acho que o governo dele vai se tornar, cada vez mais, uma ditadura pessoal quase cômica. Eu desconfio profundamente… não dele pessoalmente, não me importa, mas num sinal de como opera a totalidade do poder. Como, por exemplo, quando ele começou com o programa “Aló Presidente”. Alguém me contou, e me pareceu piada. Mas agora o programa se dividiu em dois: o “Aló Presidente Prático” e o “Aló Presidente Teórico”, em que Chávez se mete a… Eu concordo com… Sabe quem me deu essa indicação? Toni Negri. Meu Deus! Eu não concordo com ele, em tese, mas ele é da esquerda, me alertou sobre isso, e eu não acreditei nele quatro anos atrás. Ele me disse para não ficar fascinado com Chávez e que, embora fosse muito mais modesto, o Brasil era muito mais interessante.

Segunda parte

Jorge Pontual — Žižek, quem é Žižek? O maridão de uma supermodelo argentina que emprestou o nome para a discoteca mais quente de Buenos Aires? O cinéfilo pervertido que usa os filmes de Hitchcock para explicar a psicanálise de Lacan? O comunista que prefere a dialética de Hegel aos ensinamentos de Marx? O iconoclasta escatológico que inventou a teoria da evolução das latrinas para explicar a história da Filosofia. Um desconhecido filósofo da Eslovênia que virou um dos intelectuais mais influentes do nosso tempo? Slavoj Žižek é tudo isso. Um feixe de contradições em forma de gente, um furacão de ideias e tiques nervosos que fascina pela inteligência. Nesse segundo milênio, Žižek se concentra em sua obsessão: o cinema. Para ele, a arte suprema.

Jorge Pontual — Você fez um filme, o primeiro de uma série, que se chama “O Guia Perverso do Cinema”. Fale sobre ele.
Slavoj Žižek — Em primeiro lugar, agradeço a Sophie Fiennes. Ela fez todo o trabalho.

Jorge Pontual — A diretora.
Slavoj Žižek — Ela vasculhou os meus livros, encontrou as referencias ao cinema, e eu só dei a ela quatro dias em Roterdã, e uma vez, quando estive em São Francisco. Ela só me perguntou: “Lembra o que você disse sobre ‘Psicose’ naquele livro? Improvise um pouco sobre o tema”. E passou quatro meses organizando tudo. Mas o mais interessante é que agora estamos fazendo algo muito mais legal, estamos fazendo a Parte 2: “The Pervert’s Guide to Ideology”. Este vai ser muito bom. Nós vamos abordar todos os aspectos, começando pelo meu famoso ponto mais baixo, quando explico a ideologia europeia através dos diferentes tipos de vaso sanitário: o vaso sanitário alemão, o vaso sanitário francês… Mas vamos começar com isso, ou seja, com a ideologia do dia a dia. Depois vamos passar a aspectos mais interessantes. O estado da crença hoje, um antigo lema meu que repito várias e várias vezes: como hoje nós vivemos numa era de ceticismo, o que não quer dizer que não acreditemos. Nós achamos que não acreditamos. Não acreditamos de forma consciente, mas elegemos as nossas crenças. No momento em que acha que é livre, você se torna a vítima dessa obrigação de se divertir. Você se sente culpado por não se divertir. Meus amigos psicanalistas têm me dito que o paciente típico hoje em dia não é aquele que é oprimido, impedido de se divertir.

Jorge Pontual — O neurótico tradicional.
Slavoj Žižek — Ele quer se divertir, mas não consegue, e isso, por si só, faz com que ele ou ela se sinta culpado. Nós vivemos numa sociedade que, cada vez mais… Pelo menos aqui nos EUA e na Europa Ocidental, que é uma sociedade hedonista. Não existem mais aquelas regras, aquela ideologia que diz a você para se sacrificar pelo país e tudo mais. É uma espécie de hedonismo esclarecido. O que a sociedade está lhe dizendo é o seguinte: “Seja você mesmo, seja você plenamente, realize o seu potencial”. Com toda essa pressão para sermos livres, sofremos mais de ansiedade e de impotência do que nunca. Quero dar um exemplo de que talvez os seus espectadores gostem. É um exemplo maravilhoso do cinema. Você percebeu uma estranha tendência, algo realmente preocupante… você percebeu uma coisa estranha no último filme do 007 “Quantum of Solace”? Politicamente, não tenho nada contra. Talvez seja tão esquerdista quanto Hollywood permite. Basicamente James Bond salva Morales de uma grande empresa imperialista. Você percebeu uma coisa? Olga Kurylenko, a modelo ucraniana que é a Bond girl. Não há sexo. Pela primeira vez. No final, eles só se abraçam e pronto. Agora, vou ainda mais longe, quero dizer, o mais baixo possível. Dan Brown, autor de “O Código Da Vinci”. Você tem o livro. Os protagonistas são a garota que é descendente de Jesus Cristo e Robert Langdon. Não há sexo. Vou mais longe. Em “Anjos e Demônios”, o romance anterior, é mais estranho ainda. No livro, há sexo entre o herói e Vittoria Vetra. No filme, não há sexo! Não é estranho? Normalmente, o que associamos a Hollywood é o fato de acrescentarem sexo.

Jorge Pontual — Você falou de “Eu Sou a Lenda” antes da entrevista.
Slavoj Žižek — É um exemplo maravilhoso de como…

Jorge Pontual — Não há sexo.
Slavoj Žižek — Sim, mas não é só isso. Tenho muito orgulho dessa análise. Não que seja excelente, mas fiz algo bem simples. Essa é a terceira versão cinematográfica. Primeiro, veio o excelente livro de Richard Matheson, depois, o 1º filme, com Vincent Price, o segundo, com Charlton Heston e o terceiro, com Will Smith.

Jorge Pontual — Para os que não viram: se passa em Nova York, depois de uma epidemia, a natureza tomou conta da cidade… E há vampiros. Will Smith é o último humano.
Slavoj Žižek — Na primeira versão, há uma boa lição multicultural na história original. A ideia é que, quando o ser humano é capturado, ele escuta os vampiros falando, se referindo a ele como um ser mítico, uma lenda. Ele se lembra de quando os vampiros eram lenda, e agora ele, o último humano, era uma lenda para eles. Vai ficando cada vez pior, até que o último filme é um projeto ideológico da pior categoria possível. Uma bela atriz brasileira…

Jorge Pontual — Alice Braga.
Slavoj Žižek — Alice Braga faz o papel de uma mulher que tem um filho. Eles são, basicamente, religiosos fundamentalistas. Ela vem do sul para encontrar Will Smith e conseguir o remédio, e depois segue para o norte, para um acampamento idealizado, ecológico, verde, politicamente correto. Você sabe qual é a mensagem? A mensagem é um pacto entre o sul religioso e a Nova Inglaterra politicamente correta, rica e liberal. É horrivelmente…

Jorge Pontual — É uma comunidade cercada.
Slavoj Žižek — Exato. Toda essa mensagem de tolerância, multiculturalismo… E aí começa o multiculturalismo. Tenho críticas profundas a ele. Mas o multiculturalismo começa, por exemplo, quando Descartes diz: “Quando eu era jovem, eu achava que os costumes dos outros eram tolos. Mas e se eu tentasse me ver através dos olhos dos outros? E se os meus hábitos e costumes parecessem igualmente tolos?” É quando você consegue ver as coisas em perspectiva. Essa mensagem se perde, e é isso que mais me preocupa, como o filme mais liberal de Hollywood… Vou lhe dar mais um exemplo: “Avatar”. Talvez James Cameron seja o mais perigoso de todos. Você sabe por quê? Se você olhar os filmes dele superficialmente… Algumas pessoas, ironicamente, se referem aos filmes dele como “marxismo de Hollywood”. Como em “Titanic”, os pobres são bons, as classes altas são corruptas… Ou em “Avatar”, os exércitos, obviamente, a forma como o exército imperialista americano coloniza… Mas, quando vai além da superfície, você encontra um mito muito mais reacionário: como em “Avatar”, o exército americano é mau, o exército de rebeldes locais, anticolonialistas, vence. Mas há um porém. Também há a mensagem do homem que viria a ser rei. Mesmo um homem branco aleijado é bom o bastante para liderar… Mesmo aquele de menor relevância entre os brancos pode ser líder deles. Em outras palavras, eles precisam de um branco, ainda que aleijado, para casar com a princesa, salvá-los e coisa e tal. É pior ainda em “Titanic”. Não considero “Titanic” nem uma história de amor. Você se lembra da cena principal? Seus espectadores vão gostar. Você viu. Todo mundo viu “Titanic”. Leonardo DiCaprio está morrendo congelado, e o que é que Kate Winslet faz? Ela grita: “Eu nunca vou deixar você.” E o que ela está fazendo enquanto está gritando isso? Ela o está empurrando. E as últimas palavras do Leonardo DiCaprio quando ele está morrendo congelado? Ele não fala como um amante, mas como um padre, um conselheiro moral: “Seja honesta, faça isso e aquilo.” É só uma história racionaria sobre uma garota rica e mimada que está em crise, com o ego em pedaços. Então, como uma vampira, ela explora um rapaz de classe mais baixa para restaurar seu ego… Ele literalmente pinta a imagem dela. E aí, quando ele cumpre o seu papel, tchauzinho. É o mito colonialista representado pela 1ª vez por Rudyard Kipling em “Marujos Intrépidos”, o mito de que nós somos o Ocidente desenvolvido, mas, por causa de tanto desenvolvimento, nos esquecemos dos valores verdadeiros e precisamos de um pouco de contato com pessoas reais, da classe baixa. Nós sugamos o sangue delas, e depois tchau. Sabe por que isso é perigoso? Você tem esse embate entre a ideologia oficial, aberta, como um filme que pode parecer progressista, mas aí você recebe a mensagem verdadeira. Tenho o mesmo problema com Oliver Stone, por exemplo. Eu não gostava dele desde “Platoon” e o primeiro “Wall Street”. Pode parecer uma condenação do capitalismo. Sob a superfície, encontramos a mesma velha e repugnante história edipiana: o filho divido entre o bom pai, seu próprio pai, e Michael Douglas, o pai mau. É a velha história edipiana de se livrar do pai ruim e adotar o pai bom. Por isso, Hollywood é importante hoje.

Jorge Pontual — Vamos falar de Hitchcock. Você escreveu sobre ele.
Slavoj Žižek — Talvez um pouco demais.

Jorge Pontual — Por que Hitchcock é um revolucionário?
Slavoj Žižek — Eu não disse isso politicamente…

Jorge Pontual — Mas o que seus filmes revelam ideologicamente?
Slavoj Žižek — Você sabe o que me fascina em Hitchcock? E é aí que um filme vira uma obra de arte. Não se trata apenas da história que ele conta. Você tem toda uma ideologia, até mesmo uma teologia negativa, nos próprios movimentos, na forma como a câmera se desloca etc. Por exemplo, o que mais aprecio em Hitchcock é a forma como ele… Se você analisar seus quatro principais filmes dos anos 50, todos têm uma história gradual do superego maternal. Em “Janela Indiscreta”, você tem uma voz que aparece misteriosamente de tempos em tempos, só praticando a escala musical. Digamos que a mãe está aprendendo a cantar. Depois, “O Homem que Sabia Demais”, a segunda versão com Dóris Day. No final do filme, a mãe está cantando, e sua voz vai até o filho lá em cima, na embaixada sequestrado. Aqui, a mãe alcança… A voz da mãe finalmente se apodera do filho. Por isso é que eu acho que o garotinho em “O Homem que Sabia Demais” é o Norman Bates jovem. Depois você vê em “Psicose” o filho controlado pela voz da mãe. Mais tarde, em “Os Pássaros”, a mãe nem fala mais, só emite ruídos de animal. Hitchcock tinha consciência dessa ingerência obscena do superego materno que, ainda mais do que a ideologia patriarcal explícita, é o componente fundamental da identidade ideológica americana. Ele realmente não só compreendia, mas… Não tenho tempo de entrar em detalhes, mas lembre-se, por exemplo, de como são cometidos os assassinatos em “Psicose”, especialmente o 2º assassinato, o do detetive Arbogast. A câmera de repente se eleva. Há toda uma teologia de um Deus neutro, burro e mau. É claramente uma referencia agnóstica. O que eu gosto no agnosticismo não é o dualismo, mas uma ideia muito profunda, que pode ser encontrada no Livro de Jô: a de que Deus era burro e preguiçoso e que fez bobagem ao criar o mundo. A partir disso, você tem uma interpretação fantástica do sacrifício de Cristo. Ele não foi sacrificado pelos nossos pecados, mas foi uma forma de Deus se desculpar conosco, como o membro da Yakuza que corta o dedo. “Desculpem, seres humanos, criei um mundo horrível para vocês e lhes dou o meu filho como um pedido de desculpas.” Isso é o que me fascina: artistas que podem ser conservadores ou simplesmente burros no nível explícito de declaração política podem ser mestres da crítica ideológica no nível da forma. Meu exemplo favorito, logicamente, é David Lynch. Ouvi algumas declarações políticas dele. São simplesmente burras e reacionárias. Ele questiona: “Por que apoiar os desempregados? Toda pessoa honesta pode arranjar um emprego.” Uma tolice. Ou a ideia de megacentros para meditação.

Jorge Pontual — No Brasil também.
Slavoj Žižek — Também. Mas essa ideia específica de que, se você reunir mais de 8 mil pessoas meditando no mesmo lugar você libera energia cósmica para trazer paz ao mundo… O que ele faz com seus melhores filmes, como joga com os closes, detalhes e tudo o mais. Você se questiona. Agora vem a questão crucial. Você questiona não apenas o brilhantismo da forma, mas toda a crítica social já está na forma. Há mais verdade na forma do que na história. Muito frequentemente, a mensagem que você recebe a partir da forma interfere para bem ou para mal na mensagem explícita. Vou lhe dar outro exemplo fácil. Um filme de que eu gosto muito, um dos melhores filmes americanos das últimas décadas: “Short Cuts – Cenas da Vida” do Robert Altman. Em termos do conteúdo, você pode ter interpretações esquerdistas enfadonhas: o desespero da classe média americana dos subúrbios etc. Mas a forma em si — essas oito, nove linhas paralelas que se encontram — é uma espécie de antologia aberta, é muito mais otimista. Ali você tem o contraponto positivo para que não seja apenas um filme sombrio. Não há uma mensagem positiva direta, ela está na forma. Ou o exemplo oposto de que eu também gosto: o filme que deveria ser queimado em público. Quanto mais filmes ruins eu vejo — vou dizer uma coisa horrível —, mais penso que não deveríamos condenar os nazistas e Hitler por terem queimado livros e filmes. Não em geral. O princípio é bom, só que eles queimaram os errados. Que mal haveria em se queimar “A Noviça Rebelde”, por exemplo? Você conhece a história. A história oficial é a pequena Áustria resistindo à invasão nazista. É um filme antifascista. Mas analise a textura do filme e você vai perceber que os austríacos são retratados como — chamo a eles, ironicamente de “pequenos belos fascistas”: são ligados às suas raízes, usam calças de couro e tudo o mais. Se você reparar em como os nazistas são retratados: como os que querem invadir o Festival de Salzburg.

Jorge Pontual — Eles são médicos, advogados…
Slavoj Žižek — Resumindo, são mais ou menos como os judeus. Com aqueles… Não é uma operação ideológica maravilhosa? Talvez por isso o filme seja tão miticamente popular. Você pode apreciá-lo sem culpa porque está protegido oficialmente: “O que há de mais? É uma história antifascista.” Mas você recebe silenciosamente, através da forma, a mensagem oposta.

Jorge Pontual — No Brasil, o filme se chama “A Noviça Rebelde”. Esse é o título.
Slavoj Žižek — Excelente. E vou dizer por quê. Isso é ideologia na sua forma mais pura, e vou explicar. Minha cena favorita do filme… Você se lembra de quando a irmã Maria está com medo de se apaixonar pelo barão? Ela volta ao convento e diz à madre superiora que se sente atraída por ele e não sabe o que fazer. Ela espera ser punida com penitência. E você sabe o que a freira faz? Ela canta a música mais obscena do filme…

Jorge Pontual — “Climb Every Mountain”.
Slavoj Žižek — Que significa: “Volte lá, transe com ele e pronto.” É assim que a ideologia funciona. Era isso que eu dizia antes. A Igreja Católica de hoje segue rigorosamente essa lição. A versão para os padres é a seguinte: “Entre no jogo conosco e você pode pegar todos os garotinhos…”

Jorge Pontual — Percebi que você é ateu, mas diz “Meu Deus” o tempo todo. Talvez seja apenas uma…
Slavoj Žižek — Eu sou ateu de verdade. De verdade.

Jorge Pontual — É que você às vezes se autodenomina, mas pode ser que eu esteja errado, um cristão ateu.
Slavoj Žižek — Com certeza! Esta é a lição do cristianismo para mim, e eu discuto muito seriamente com padres em Viena, na Alemanha… Fiz um tour maravilhoso pelo Sul dos EUA, e descobri que lá não há apenas fundamentalistas boçais. Há batistas extremamente progressistas. Existe uma ideia básica de que o que realmente aconteceu com o cristianismo foi o seguinte: Cristo não era o mensageiro de Deus. Deus está morto. Isso já fora anunciado no que é, para mim, a melhor parte do Velho Testamento: o Livro de Jô, em que, basicamente, quando Deus aparece, ele diz: “Do que você está reclamando? O mundo todo está um caos.” A grande mensagem do Livro de Jô é que Deus não é aquele que está lá em cima e que garante que tudo tenha um significado maior. E é isso que eu acho que a morte de Cristo representa: Deus, que é o Deus geralmente representado, o Deus do: “A vida pode parecer confusa, mas há um cara bom lá em cima em que podemos confiar.” Não. Cristo abdica. Sua mensagem é: “Deus está fora, só o que resta é o Espírito Santo.” O Espírito Santo é o partido comunista primordial. O Espírito Santo é o conjunto de nós, que acreditamos, sem um ser maior para nos guardar. Somos condenados à liberdade. Deus nos dá liberdade no senso literal: “Eu estou fora!” E é por isso que mesmo um cristão conservador inteligente como Paul Claudel disse em algum lugar: “A maior mensagem do cristianismo não é ‘confie em Deus’, e sim ‘Deus confiou em nós’.” Nesse sentido é que eu vejo o poder libertador do cristianismo. Deus está morto, não há um ser superior, nem o ser superior do stalinismo. Não podemos nos fiar na perda histórica da necessidade etc. Isso abre espaço para a nossa liberdade. Essa é a minha religião. Concluindo, para os seus espectadores, contei isso em um dos meus livros. Quando me perguntam em que senso eu sou cristão… Você deve conhecer esta piada. Eu digo que há uma piada ótima da União Soviética do início dos anos 20, quando as pessoas ainda levavam a propaganda comunista a sério. Um grande propagandista bolchevique morre. E, logicamente, vai para o Inferno. Mas ele é tão bom propagandista que os guardas a mandá-lo para o Céu. O Diabo, na inspeção do Inferno, percebe que o sujeito não está lá, pega o elevador para o Céu e barganha com Deus para lhe devolver o cara. Ele se dirige a Deus: “Ó, Senhor…” Deus interrompe, pois o propagandista tinha feito um bom trabalho. “Em primeiro lugar, não sou Senhor, sou seu camarada. Em segundo lugar, eu não existo.”

Jorge Pontual — “Companheiro”.
Slavoj Žižek — “Eu não existo. Você está falando com visões? Em terceiro, seja breve, porque tenho uma reunião do Partido, que é o Espírito Santo.” Esse é o meu Deus!

Jorge Pontual — Muito obrigado.
Slavoj Žižek — Obrigado a você. Eu fiquei realmente surpreso. Não devemos descartar as coisas sem conhecê-las. Eu fui a Nashville. Você sabe, o Sul Batista, cheio de idiotas, boçais. Nada disso. Esses são a minoria. Eles não ficaram nem um pouco chocados. Tive mais trabalho em vender essa visão do cristianismo em Harvard, Yale, nas grandes universidades. Eu detesto Harvard, você não? Os americanos têm um ditado anti-intelectual. Quando você quer dar uma de esperto, eles dizem: “Você é inteligente demais para o seu próprio bem.” Assim é Harvard, na minha opinião. Só preciso fazer o fechamento.

Jorge Pontual — Só preciso fazer o fechamento. Obrigado pela ótima entrevista.
Slavoj Žižek — Talvez. “Se Deus quiser”.

Jorge Pontual — Se Deus quiser.

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