Cidade Limpa

Memória cultural é apagada com o fim dos grafites

Autor

  • Rony Aliberti Hergert

    é advogado criminalista professor de Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade São Francisco especialista em Ciências Criminais em Processo Civil e em Direito Penal Econômico. Autor do livro "Temas de Classe sobre Ética Profissional do Advogado".

17 de fevereiro de 2011, 16h05

Quem quer manter a ordem?
Quem quer criar desordem?
É seu dever manter a ordem
É seu dever de cidadão
Mas o que é criar desordem
Quem é que diz o que é ou não?
São sempre os mesmos governantes
Os mesmos que lucraram antes
Os sindicatos fazem greve
Porque ninguém é consultado
Pois tudo tem que virar óleo
Pra por na máquina do estado

(Desordem, dos Titãs)

O artigo 1º da Constituição Federal traça os fundamentos da República Federativa do Brasil. Tais princípios “… possuem força expansiva, agregando em torno de si, direitos inalienáveis, básicos e imprescritíveis…” (UADI BULOS, 2.007, p. 384). Buscam, assim, garantir a unidade da Constituição brasileira; orientar a ação do intérprete, balizando a tomada de decisões, tanto dos particulares como dos órgãos legislativos, executivo e judiciário; preservar o Estado Democrático de Direito.

Para o presente ensaio, elegemos o fundamento da dignidade da pessoa humana como premissa à sua conclusão. Tal vetor agrega em torno de si a unanimidade dos direitos e garantias fundamentais do homem. Com efeito:

Quando o texto maior proclama a dignidade da pessoa humana, está consagrando um imperativo de justiça social, um valor constitucional supremo. Por isso, o primado consubstancia o espaço de integridade moral do ser humano, independentemente de credo, raça, cor origem ou status social. O conteúdo do vetor é amplo e pujante, envolvendo valores espirituais (liberdade de ser, pensar e criar etc.) e materiais (renda mínima, saúde, alimentação, lazer, moradia, educação etc.). (UADI BULOS, 2.007, p. 389)

E, principalmente, por conta do valor moral ínsito à pessoa que o vetor da dignidade humana afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. Vale dizer:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (MORAES, 2.007, p. 16)

Um pouco mais adiante na Carta Magna, no artigo que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, encontramos o inciso que assegura enquanto cláusula pétrea a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX).

Como se vê, a Constituição vedou, de forma taxativa, a possibilidade de as criações humanas sofrerem cerceamento por parte do Poder Público, ou mesmo de particulares. Realmente:

A liberdade de expressão garantida pelo texto constitucional, quanto aos instrumentos pelos quais pode ser veiculada, é a mais ampla possível. Assim, todo e qualquer instrumento, seja oral, escrito, mímico, por meio de desenhos, pinturas, fotografias está abrangido no dispositivo. Da mesma forma, todos os meios de transmissão da atividade estão nele albergados, tais como jornais, livros, revistas, rádio, televisão, cinema, Internet etc. (MOTTA & BARCHET, 2.007, p. 177)

Por fim, o artigo 216 da Constituição Federal prevê que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. A própria Constituição antes define o conteúdo do patrimônio cultural brasileiro como bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.[1]

Dentre os objetos jurídicos constitucionalmente protegidos pelo patrimônio cultural brasileiro, para o presente Ensaio, destacamos: as formas de expressão; os modos de criar, as criações artísticas; as obras e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais.

Dessarte, excluída a acepção criminógena do termo correlato pichação[2], bem como, abstraída a garantia constitucional da grafitagem enquanto liberdade de manifestação artística, cinge-se, como dito, o objeto do presente Ensaio à abordagem desta última enquanto ínsita à memória cultural porque é um bem vinculado à identidade de grupos sociais.

Uma vez que a cultura envolve tudo o que o indivíduo cria como membro de uma sociedade, as criações artísticas, em específico as grafitagens, não deixam de ser uma forma de expressão reveladora de situações e/ou sentimentos que certos grupos sociais retribuem de alguma forma aos insumos que recebem de seu ambiente. Neste sentido, Chauí:

O artista não é um gênio solitário e excepcional, mas um ser social que busca exprimir seu modo de estar no mundo na companhia dos outros seres humanos, num embate contínuo com a natureza, com a sociedade e consigo mesmo. É alguém que, além de voltar-se para si mesmo para compreender-se por meio da obra que exprime seu trabalho de compreensão, também reflete sobre a sociedade, e por meio da obra volta-se para o social, seja para criticá-lo, seja para afirmá-lo, seja para superá-lo (CHAUÍ, 2.003, p. 285).

Assume-se o grafite como forma de expressão artística e comunicacional, na relação tradicional emissor/receptor, baseado em Lotman (1.978, p.33) quando diz que “a arte é um dos meios de comunicação. Ela realiza incontestavelmente uma ligação ente o emissor e um receptor.” O grafite é “uma forma do indivíduo da cidade escapar do anonimato urbano, expressando-se de forma não convencional” (BÜTTNER, 2.002, p.86).

De fato, os grupos sociais que se expressam através da grafitagem exprimem um modo de vida, uma visão presente e futura do mundo e, desta forma, contribuem na construção de um bem cultural merecedor de tutela jurídica fundamental enquanto patrimônio imaterial. Assim, a grafitagem é tanto ensinada nas escolas públicas e privadas, quanto constitui roteiro turístico na cidade de São Paulo.[3]

Portanto, a sua consolidação à categoria de memória cultural é também, antes de tudo, um direito natural (que traz em sua premissa o direito de existir e o direito de ser livre para criar e se expressar) porquanto, segundo Dropa, ao parafrasear Chauí, “a memória cultural é uma experiência que permite a um grupo social consolidar suas tradições por meio de símbolos, objetos e valores que se transmitem de geração a geração até o ponto de constituir verdadeiros sinais identificatórios” (DROPA, 2.003).

A preservação da memória cultural é imprescindível. No dizer de Dropa: “A sua não-conservação e a ausência da tradição levam ao total esquecimento, portanto, à perda do passado. Sem ele o indivíduo não tem identidade, torna-se um ser perdido, à procura de um sentido para aquilo que faz. Em suma, vira um alienado” (DROPA, 2003, s.p.d.). A mesma fala é de Massei:

A memória é a possibilidade de (re)elaboração, de (re)interpretação do passado. Portanto, é essencial para um país, Estado ou município recuperá-la e conservá-la. Mais do que isso, no entanto, é um direito! Afinal, o passado é o suporte da identidade de um povo (MASSEI, s.a. e p.d).

Assim, o reiterado magistério esclarecedor de Uadi Bulos, ao expandir o conceito de dignidade da pessoa humana, não deixa de contemplar institutos como a memória cultural, senão vejamos:

… representa a vitória contra a intolerância, o preconceito, a exclusão social, a ignorância e a opressão. A dignidade da pessoa humana reflete, portanto, um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio do homem (…) Abarca uma variedade de bens, sem os quais o homem não subsistiria (UADI BULOS, 2007, p. 389).

Dito isto, vejamos as disparidades e contradições político-legislativas perpetradas em nome da preservação da memória cultural na cidade de São Paulo.

A Lei 14.223, de 26 de setembro de 2006, do município de São Paulo, conhecida como “Lei Cidade Limpa”, a pretexto de disciplinar a ordenação dos elementos que compõem a paisagem urbana do Município de São Paulo, invoca entre diversos objetivos, a preservação da memória cultural (artigo 3º, inciso VI) para combater (o verbo é este mesmo: combater) a poluição visual, bem como a degradação ambiental (artigo 4º, inciso III, da mesma lei).

A menos de completar três anos de vigência da “Lei Cidade Limpa”, a Câmara Municipal de São Paulo, por votação simbólica, revogou os dispositivos de outra lei que a complementava, qual seja, a Lei 14.806/2008, que proibia a propaganda política em muros residenciais e particulares; ficando, destarte, permitidas, faixas, cartazes e outros tipos de propaganda visual em casas e apartamentos. E mais, pela revogação, deixa de ser proibido "exibir, pichar (isto mesmo!), desenhar, escrever ou pintar propagandas em muros, fachadas, colunas, paredes ou qualquer outro lugar público ou privado visível do passeio público". Para tanto, os representantes da edilidade alegaram que a operada revogação visa a colocar em igualdade de condições os candidatos a vereadores da cidade de São Paulo com os de municípios nos quais não existe a restrição à propaganda política em muros na forma de pichação, grafitagem.

Só um parêntesis: a se considerar a tal “igualdade” suscitada pelos vereadores paulistanos a título revogador tão permissivo, temos uma abominável ofensa ao comezinho princípio da igualdade formal de todos perante a lei, o qual prescreve que a igualdade consiste em tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual na medida em que se desigualem, o quê a revogada Lei nº 14.806/08 homenageava. Ora, por um acaso, quem é eleitor no município de São Paulo vota em candidato de outra cidade de modo a justificar a preocupação da vereança paulistana?! Por um acaso quem é candidato em outra cidade faz propaganda política no município de São Paulo?

No entanto, doravante na cidade de São Paulo, para propaganda política pode-se até mesmo pichar muros particular e público que não haverá ofensa ao patrimônio cultural. Por sua vez, com relação à grafitagem, uma forma de expressão constitucionalmente protegida, corre-se o risco de enquadrá-la senão como crime de dano, outrossim, enquanto delito ambiental, marginalizando-a destarte, da memória cultural da cidade.

Some-se a isto tudo o fato de que, em gestões municipais anteriores, a grafitagem foi contratada pela Secretaria da Juventude para interferir no espaço coletivo dado o renome de artistas brasileiros com exposições internacionais e, agora, a pretexto de "Cidade Limpa" tais obras foram apagadas. Vale dizer: houve investimento público antes para produção dessas obras, para posteriormente, removê-las também à custa do mesmo erário.[4]

Outro parêntesis: a revogação da Lei 14.806/08, ao permitir até mesmo a pichação em muro público, ignora o artigo 1º da Resolução 63/98 do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo que veda essa conduta. Tal norma impõe ainda a responsabilidade às prefeituras municipais de restaurarem o bem, sem prejuízo da apuração da responsabilidade criminal e civil regressiva contra os infratores. Vale dizer: de novo, gastos públicos para limpar o que os representantes do povo e seus aspirantes sujaram sob aparente e privilegiada permissão legal.

Realmente, insta resgatar a igualdade enquanto atributo essencial à Justiça eis que, uma norma somente é justa quando trata todos de forma igual perante a lei. E assim deve ser porque todos os homens têm a mesma natureza e dignidade fundamentais, vale dizer, “cada ser humano é pessoa, dotada de inteligência e vontade livre” (JOÃO XXIII, 1.963, s.p.d.)

Com efeito, a observância ao referido fundamento magno é ensinada por Montoro nos seguintes termos:

Esse respeito à dignidade fundamental da pessoa humana, que constitui a base da justiça, não pode ser considerado apenas abstratamente. É na realidade histórica, concreta e variável, em que as relações sociais se desenvolvem, que a justiça e suas exigências devem ser atendidas. É aí que se situa o trabalho e a luta permanente pela justiça, que dá sentido e grandeza à tarefa dos juízes, promotores, advogados e demais servidores do direito […], até porque, por não haver feito essa distinção, entre a pessoa humana em sua essência e em sua existência histórica, que se cometeram os erros característicos da abstração política (MONTORO, 1.999, p. 138).

De fato, a intervenção a partir de agora autorizada pelos vereadores paulistanos deságua nos erros característicos da abstração política a considerar que uma informação a qual o eleitor tem acesso por outros meios possa ser veiculada nos muros da cidade de São Paulo, enquanto que as obras artísticas realizadas no espaço público (muitas vezes por encomenda da própria Administração Pública) são apagadas, retirando de grande parcela da população o único acesso às artes (no caso street art) ferindo-lhes de morte a dignidade da pessoa humana, bem como o princípio da igualdade e a tão decantada memória do patrimônio cultural imaterial.

Referências
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional, 1ª. ed., Edit. Saraiva, São Paulo, 2.007

BÜTTNER, Cláudia. Projetos artísticos nos espaços não-institucionais de hoje; in PALLAMIN, Vera (org.) Cidade e Cultura, 1ª ed., Edit. Estação Liberdade, São Paulo, 1.998

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, 13ª ed., Edit. Ática, São Paulo, 2.003

LOTMAN, Iuri. A Estrutura do Texto Artístico, 1ª ed., Edit. Estampa, Lisboa, 1.978

MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito, 25ª ed., Edit. RT, São Paulo, 1.999

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 22ª ed., Edit. Atlas, São Paulo, 2.007

MOTTA, Sylvio; BARCHET, Gustavo. Curso de Direito Constitucional, 1ª ed., Elsevier Edit., Rio de Janeiro, 2.007

XXIII, João. Pacem in Terris www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem_po.html

DROPA, Romualdo Flávio. A memória como um direito fundamental do homem, www.advogado.adv.br/artigos/2003/romualdoflaviodropa/memoria.htm#_ftnref16

DUTRA, Paula. Grafite: uma cidade cheia de cores, www.cidadedesaopaulo.com/sp/br/o-que-visitar/pontos-turisticos/463-grafite-uma-cidade-cheia-de-cores

G1, in www.g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL637207-5605,00.html

LIMA, Francine. A arte que se apaga, www.revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81337-6014-506,00-A+ARTE+QUE+SE+APAGA.html

MASSEI, Ricardo. Direito à memória, www.avesso.net/memoria.htm

MOREIRA, Ivete Gomes. Os pichadores da cidade, www.vivasp.com/texto.asp?tid=8139&sid=9

NADIN, Juliana; FIORATTI, Gustavo. Veja roteiro dos melhores grafites espalhados por SP, www.guia.folha.com.br/exposicoes/ult10048u427485.shtml


[1] Ao encontro desta preocupação, a Emenda Constitucional nº 42/03 instituiu aos Estados e ao Distrito Federal a possibilidade de vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: (a) despesas com pessoal e encargos sociais; (b) serviço de dívida; (c) qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados. Ainda neste sentido, a Emenda Constitucional nº 48/05 instituiu o Plano Nacional de Cultura, que será estabelecido nos termos da lei (e até o momento não o foi), tendo duração plurianual e visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do Poder Público que conduzam: (a) à defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; (b) produção, promoção e difusão de bens culturais; (c) formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; (d) democratização do acesso aos bens de cultura; (d) valorização da diversidade étnica e regional.

[2] A propósito, recomendamos a leitura do elucidativo artigo: “A pichação e a grafitagem na ótica do direito penal: delito de dano ou crime ambiental?”, Vinícius Borges de Moraes, in http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8039

[3] A respeito vide os artigos: “Os pichadores da cidade”, Ivete Gomes Moreira, in http://www.vivasp.com/texto.asp?tid=8139&sid=9; e “ Grafite: uma cidade cheia de cores”, no site oficial da Secretaria de Turismo de São Paulo in http://www.cidadedesaopaulo.com/sp/br/o-que-visitar/pontos-turisticos/463-grafite-uma-cidade-cheia-de-cores e ainda “Veja roteiro dos melhores grafites espalhados por SP”, Nadin & Fioratti, in http://guia.folha.com.br/exposicoes/ult10048u427485.shtml

[4] A propósito, vide: “A arte que se apaga”, Francine Lima, in http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81337-6014-506,00-A+ARTE+QUE+SE+APAGA.html e ainda “Empresa contratada pela prefeitura apaga grafite no centro de SP”, in http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL637207-5605,00.html


[i] Professor Especialista em Processo; Advogado Criminalista; Membro do Comitê de Ética e Pesquisa USF; Assessor do Tribunal de Ética da OAB/SP

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    é advogado criminalista, professor de Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade São Francisco, especialista em Ciências Criminais, em Processo Civil e em Direito Penal Econômico. Autor do livro "Temas de Classe sobre Ética Profissional do Advogado".

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