Centro das decisões

Grandes nomes do poder americano são advogados

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6 de fevereiro de 2011, 12h37

Artigo originalmente publicado no Le Monde Diplomatique.

“A aristocracia americana está no banco dos advogados e na cadeira dos juízes”. A observação do historiador e sociólogo Alexis de Tocqueville continua precisa: nos Estados Unidos não é nada surpreendente a abundância de advogados nas mais altas esferas do poder. O círculo mais próximo do presidente Barack Obama (ele mesmo ex-professor de Direito) privilegia os juristas: nele temos Hillary Clinton (secretária de Estado) e Janet Napolitano (ministra da Segurança Interna), ou Valerie Jarrett (conselheira direta), e os senhores Joseph Biden (vice-presidente), Leon Panetta (diretor da Agência Central de Informações, a CIA), Eric Holder (ministro da Justiça), Ken Salazar (ministro do Meio-ambiente), entre outros. Costuma-se citar também a rede da Faculdade de Direito de Harvard (Harvard Law School), na qual Obama vai buscar uma grande parte de sua equipe. Mas o fenômeno não se limita ao governo: os advogados representam 59 % do Senado e 40 % da Câmara de representantes.1

Esse papel preponderante se explica em especial pela primazia, no seio dos países da common law2, da regra do “precedente”: ela coloca os advogados capazes de decifrar “o que diz a lei” no centro dos procedimentos judiciários. Mais uma vez, nesse caso, Tocqueville também fez a análise correta: “Nossas leis escritas (francesas) são muitas vezes difíceis de serem compreendidas, mas todos podem lê-las. Por outro lado, não há nada de mais obscuro para as pessoas comuns, e menos ao seu alcance, do que a legislação baseada em precedentes. Essa necessidade que se tem de um especialista para entender o texto, como é o caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, essa ideia elevada que se faz das luzes, separam cada vez mais essa instância do povo, terminando por constituir uma classe à parte. O legislador francês não passa de um erudito; mas o homem de leis inglês ou americano se assemelha de certa forma, aos sacerdotes do Egito; pois assim como eles, é o único intérprete de uma ciência oculta3.”

A porta de entrada para aceder a essa “classe à parte” é a faculdade de Direito (law school), onde os estudantes analisam os precedentes judiciais, durante um aprendizado amplamente focado no estudo das decisões da Suprema Corte. Quase todas as law schools americanas exigem de seus postulantes que eles efetuem um primeiro e um segundo ciclo universitário, antes de começar o primeiro ano de Direito. Depois de três anos de estudos, os alunos obtêm então um diploma de juris doctor, que lhes permite postular nos tribunais onde eles anseiam exercer a advocacia. Os melhores alunos das melhores faculdades – Yale, Harvard, Stanford ou Columbia – podem esperar coroar seu percurso com um ou dois anos junto de um juiz, o que aumenta as chances de serem recrutados pelos grandes escritórios de advocacia, ou de somar-se às altas esferas da administração pública (Ministério da Justiça, departamento de Estado, Casa Branca etc.). Quanto aos demais, é preciso passar por uma law school, caminho que pode ser bem difícil.

A primeira coisa que exclui a maior parte dos estudantes é o custo dos sete anos de estudos. Cerca de um terço dos que se aventuram vão terminar o curso com dívidas de mais de US$120 mil. Esse é motivo pelo qual os jovens diplomados escolhem caminhos que lhes permitam se livrar desses encargos o mais rápido possível4. A hesitação entre uma carreira no serviço público5 e outra num escritório particular nunca dura muito tempo: a segunda opção garante uma remuneração de três a quatro vezes superior6.

Dessa forma, nenhum jurista americano considera a hipótese de ser bem-sucedido sem se associar a um dos “grandes escritórios” que, em geral, contam com uma equipe que vai de 200 a mil advogados. Os juristas mais influentes, como H. Rodgin Cohen (advogado vedete de Wall Street) ou Robert S. Bennett — que defendeu Bill Clinton, Paul Wolfowitz (secretário de Estado da Defesa das administrações de George W. Bush), John McCain e Caspar Weinberger (ministro da Defesa da administração Reagan) — começaram sua vida profissional nesse tipo de estrutura.

Enquanto os escritórios de direito comercial garantem ganhos significativos – os sócios de maior prestígio chegam a receber uma média de US$ 1 milhão por ano – os advogados que se voltam para a política optam, antes, por uma carreira de procurador (prosecutor). Dentre as dezenas de exemplos recentes, podemos citar Rudolph Giuliani, ex-prefeito de Nova York, e John Kerry, senador democrata do estado de Massachusetts, que foi o candidato à presidência da República. Nas duas situações essa experiência permitiu a ambos seduzir um determinado eleitorado de direita, em especial pelo fato de forjarem uma imagem de “homem duro”. Essa imagem corresponde ao modelo veiculado pelas séries de televisão, como Law and Order, e confortada pela tendência dos procuradores a dar conferências de impressa triunfantes, amplificadas pela imprensa sensacionalista. Muitas vezes, eles enfrentam advogados da defensoria pública (public defenders), aos quais a defesa de indigentes fecha todas as portas da profissão.

É impossível falar do papel dos advogados na política americana sem mencionar a subcategoria, típica dos Estados Unidos, dos trial attorneys. O termo designa um número relativamente restrito de juristas especializados em processos civis movidos contra empresas: direito do consumidor, responsabilidade dos fabricantes, erro profissional de médicos ou hospitais etc. Trata-se muitas vezes de ações coletivas (class actions) que reúnem vários queixosos. O ex-candidato à presidência John Edwards é um exemplo desse tipo de profissional. Em qual outro país um político poderia, sem contradição aparente, reivindicar a imagem (cuidadosamente trabalhada) de advogado ao serviço dos mais desprotegidos, ao mesmo tempo em que constrói, por meio desse trabalho, uma fortuna pessoal de várias dezenas de milhões de dólares?

Essa situação se explica pela possibilidade de conseguir o pagamento de perdas e danos (punitive damages) que compensam o prejuízo sofrido pela vítima e que sancionam o erro do autor do delito (direito de responsabilidade civil americano). É por esse motivo que, dependendo da apreciação soberana do juiz, o montante pode atingir milhões de dólares. Nos Estados Unidos, os advogados desse tipo de causa preferem trabalhar gratuitamente, com a condição de serem pagos com um percentual (da ordem de um terço) da soma recebida pelo queixoso. O Partido Republicano e o mundo dos negócios denunciam regularmente esse sistema, em particular as ações coletivas, enquanto o Partido Democrata defende o status quo. Em tais condições, é compreensível que os candidatos democratas tenham ganhado 96% das doações eleitorais da American Association for Justice7 em 2009-20108…

O financiamento particular abre assim perspectivas interessantes aos trial lawyers (ou trial attorneys) que sabem tirar proveito disso. Dessa forma, um comitê de Massachusetts promoveu 12 ações judiciais, quando a carteira de seu fundo de pensões foi afetada pela baixa das ações na Bolsa de Valores. E não surpreende o fato de que ele foi representado por um escritório cujos advogados fizeram 68 doações separadas para a campanha do tesoureiro do condado. Um caso bastante banal que ilustra a fórmula da editorialista Michael Kinsley: em Washington, o escandaloso não é o ilegal, mas o legal.

Essa mescla de gêneros é favorecida pelo fato de que nos Estados Unidos, com freqüência, os procuradores e juízes são eleitos pelo sufrágio universal direto. Tocqueville já via os perigos inerentes a esse modo de designação: “Eu me atrevo a prever que essas inovações terão cedo ou tarde resultados funestos, e que um dia nos daremos conta que ao diminuir dessa forma a independência dos magistrados, não só se está atacando o poder judiciário, mas também a própria república democrática.” O caso do juiz Brent Benjamin, presidente da Suprema Corte da Virgínia ocidental, é revelador8. Ele não considerou conveniente abrir mão de participar de um litígio que punha em xeque uma empresa que havia contribuído para a campanha dele. Em junho de 2009, a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou que ele tinha errado. A decisão é importante não por ela mesma, mas porque se baseia no caráter desproporcional da doação recebida (US$ 3 milhões), comparativamente às demais. Ao agir dessa forma, os magistrados permitiram a interpretação de que doações menos importantes, ou pior, dissimuladas, poderiam não ser um problema. 

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