Embargos Culturais

Bacharelismo na República dos Bruzundangas

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

18 de dezembro de 2011, 9h35

República dos Bruzundangas é ambiente que o escritor Lima Barreto inventou com o objetivo de criticar as instituições de seu tempo. É impressionante obra de sátira. Trato no presente ensaio da Assembleia Constituinte e da Constituição dela decorrente, tal como desenhadas pelo grande escritor fluminense, bem como faça alguma nota também nas críticas que Lima Barreto fazia ao bacharelismo.

Jocosa é a seção da sátira que explica a Assembleia Constituinte que se reuniu em Bruzundanga. Reproduzo alguns excertos, e a identificação com a Constituição de 1891, e seu entorno histórico, é impressionante, bem como muito curiosa também fora a crítica feita aos positivistas:

“Quando se reuniu a Constituinte da República da Bruzundanga, houve no país uma grande esperança. O país tinha, até aí, sido governado por uma lei básica que datava de cerca de um século e todos os jovens julgavam‑na avelhentada e já caduca. Os militares do Exército, iniciados nas sete ciências do Pitágoras de Montpellier, – criticavam‑na da seguinte forma: ‘Qual! Esta constituição não presta! Os que a fizeram não sabiam nem aritmética; como podiam decidir em sociologia?’ Escusado é dizer que isto não era verdade, mas o critério histórico deles e o seu orgulho escolar pediam fosse.  Os outros doutores também achavam a Constituição monárquica absolutamente tola, porque, desde que ela fora promulgada, havia surgido um certo jurista alemão ou aparecido um novo remédio para erisipelas. A nova devia ser uma perfeição e trazer a felicidade de todos. Reuniu‑se, pois, a Constituinte com toda a solenidade. Vieram para ela, jovens poetas, ainda tresandando à grossa boêmia; vieram para ela, imponentes tenentes de artilharia, ainda cheirando aos ‘cadernos’ da escola; vieram para ela, velhos possuidores de escravos, cheios de ódio ao antigo regime por haver libertado os que tinham; vieram para ela, bisonhos jornalistas da roça recheados de uma erudição à flor da pele (…) Era mais ou menos esse o pessoal de que se compunha a nova Constituinte. (…) Quando saíram os constituintes, Z., um deles, perguntava de si para si: – Que vou propor eu? H. excogitava: ‑ Devo ser pelo divórcio? Esses padrões…  B. meditava: – Antes não me metesse nisto. O imperador pode voltar e é o diabo… (…) – Qual a Constituição que devemos imitar?” (LIMA BARRETO, cit., pp. 66-67).

Entre os constituintes, um deles havia proposto artigo a ser incorporado nas disposições gerais, que prescrevia que "toda a vez que um artigo desta Constituição ferir os interesses de parentes de pessoas da ‘situação’ ou de membros dela, fica subentendido que ele não tem aplicação no caso" (LIMA BARRETO, cit., p. 68). E porque todos estavam na situação, aprovou-se o artigo sem maiores discussões. O texto constitucional era muito plástico. À justiça se chamava de Chicana. E Lima Barreto exemplifica a atuação da Chicana:

“ Se algum recalcitrante, à vista de qualquer violação da Constituição, apelava para a Justiça (lá se chama Chicana), logo a Corte Suprema indagava se feria interesses de parentes de pessoas da situação e decidia conforme o famoso artigo. Um certo governador de uma das províncias da Bruzundanga, grande plantador de café, verificando a baixa de preço que o produto ia tendo, de modo a não lhe dar lucros fabulosos, proibiu o plantio de mais um pé que fosse da ‘preciosa rubiácea’. Era uma lei colonial, uma verdadeira disposição da carta régia. Houve então um cidadão que pediu habeas corpus para plantar café. A Suprema Corte, à vista do tal artigo citado, não o concedeu, visto ferir os interesses do presidente da província, que pertencia à ‘situação’. Como todo o mundo não podia pertencer à "situação", os que ficavam fora dela, vendo os seus direitos postergados, começavam a berrar, a pedir justiça, a falar em princípios, e organizavam, desta ou daquela maneira, masorcas.  Se eram vitoriosos, formavam a sua "situação" e começavam a fazer o mesmo que os outros. Havia apelo para a ‘Chicana’, mas a Suprema Corte, considerando bem o tal artigo já citado, decidia de acordo com a ‘situação’. Era tudo a ‘situação’. Todos os partidos que não pertenciam a ela, pregavam a reforma da Constituição; mas, logo que a ela aderiam, repeliam a reforma como um sacrilégio.” (LIMA BARRETO, cit., p. 69).

A Constituição deste estranho país, segundo Lima Barreto, só fora efetivamente obedecida quando estabelecia condições de elegibilidade para o Presidente da República, que eles chamavam de mandachuva.  O escolhido deveria saber ler e escrever, porém não poderia jamais ter demonstrado qualquer forma de inteligência, e nem vontade própria; deveria ser medíocre a toda prova (cit., p. 70).  E Lima Barreto descreveu o referido mandachuva, que também identificava o bacharelismo; neste passo, criticava-se também o modelo jurídico, de forma ampla:

“A não ser que suba ao poder, por uma revolta mais ou menos disfarçada, um General mais ou menos decorativo, o Mandachuva é sempre escolhido entre os membros da nobreza doutoral; e, dentre os doutores, a escolha recai sobre um advogado. É justo, pois são os advogados ou bacharéis em direito que devem ter obrigação de conhecer a barafunda de leis de toda a natureza, embora a arte de governar, segundo o critério dos que filosofam sobre o Estado e o admitem necessário, não peça unicamente o seco conhecimento de textos de leis, de artigos de códigos, de opiniões de praxistas e hermeneutas. As leis são o esqueleto das sociedades, mas a feição de saúde ou doença destas, as suas necessidades terapêuticas ou cirúrgicas, são dadas pelo prévio conhecimento e exame, no momento, do estado de certas partes externas e dos seus órgãos vitais, que são o seu comércio, a sua indústria, as suas artes, os sonhos do seu povo, os sofrimentos dele ‑‑ toda essa parte mutável das comunhões humanas, cambiantes e fugidia, que só os fortes observadores, com grande inteligência, colhem em alguns instantes, sugerindo os remédios eficazes e as providências adequadas, para tal ou qual caso.” (LIMA BARRETO, cit., p. 71).

Lima Barreto percebia reserva de mercado para bacharéis; é que “ (…) os simples lugares de alcaides de polícia, equivalentes aos nossos delegados, cargos que exigem o conhecimento de simples rudimentos de direito, mas muito tirocínio e hábito de lidar com malfeitores, só podem ser exercidos por advogados, nomeados temporariamente” (LIMA BARRETO, cit., loc. cit.). Não obstante vedação constitucional, sempre se dava um jeito. E de tal modo:

“A Constituição da Bruzundanga proíbe as acumulações remuneradas, mas as leis ordinárias acharam meios e modos de permitir que os doutores acumulassem. São cargos técnicos que exigem aptidões especiais, dizem. A Constituição não fez exceção, mas os doutores hermeneutas acharam uma. Há médicos que são ao mesmo tempo clínicos do Hospital dos Indigentes, lentes da Faculdade de Medicina e inspetores dos telégrafos; há, na Bruzundanga, engenheiros que são a um só tempo professores de grego no Ginásio Secundário do Estado, professores de oboé, no Conservatório de Música, e peritos louvados e vitalícios dos escombros de incêndios.” (LIMA BARRETO, cit., loc. cit).

A referida reserva alcançava todos os pontos da vida pública. Por exemplo, segundo Lima Barreto, “ Há pouco tempo, no Conselho Municipal daquele longínquo país, votou‑se um orçamento, dobrando e triplicando todos os impostos. Sabem os que ele diminuiu? Os impostos sobre os médicos e advogados” (cit., p. 43).

Na organização do serviço militar obrigatório não se puderam isentar totalmente os aspirantes a doutor. Consentiu-se que estudantes não residissem ou comessem nos quartéis. E como nas demais horas estudavam, estariam livres da vida na caserna.

Invocando a nobreza chinesa, e seus mandarins, com a qual comparava a nobreza brasileira, em passo que muito lembra Max Weber, Lima Barreto identificou as pedras que ornavam os anéis dos doutores. Médicos usariam esmeralda. Advogados, o rubi. Engenheiros, a safira. Engenheiros militares, a turquesa. Engenheiros geógrafos ficaram também com a safira, porém poderiam usar certos sinais dos arcos dos anéis. Os farmacêuticos ficariam com o topázio. Os dentistas, com a granada (LIMA BARRETO, cit., p. 44).

Os doutores foram mais uma vez punidos, na medida em assimilados aos sábios, identificados por Lima Barreto como aqueles que eram pródigos em imitar:

“É sábio, na Bruzundanga, aquele que cita mais autores estrangeiros; e quanto mais de país desconhecido, mais sábio é. Não é, como se podia crer, aquele que assimilou o saber anterior e concorre para aumentá‑lo com os seus trabalhos individuais. Não é esse o conceito de sábio que se tem em tal país. Sábio, é aquele que escreve livros com as opiniões dos outros. Houve um que, quando morreu, não se pôde vender‑lhe a biblioteca, pois todos os livros estavam mutilados. Ele cortava‑lhes as páginas para pregar no papel em que escrevia os trechos que citava e evitar a tarefa maçante de os copiar.” (LIMA BARRETO, cit., p. 142).

Lima Barreto continuava mofando das propagandas que a república imaginária fazia de si mesma. Editavam livros de propaganda. Eram distribuídos. Ninguém os compraria. Eram escandalosamente mentirosos. Prenhes de otimismo encomendado. Do ponto de vista social, em Bruzundanga havia tipo especial de nobreza, formada pelos doutores. É o núcleo da crítica de Lima Barreto:

“ A nobreza da Bruzundanga se divide em dois grandes ramos (…) como na França de outros tempos, em que havia a nobreza de Toga e a de Espada, na Bruzundanga existe a nobreza doutoral e uma outra que, por falta de nome mais adequado, eu chamarei de palpite. A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos formados nas escolas, chamadas superiores, que são as de medicina, as de direito e as de engenharia. Há de parecer que não existe aí nenhuma nobreza; que os cidadãos que obtêm títulos em tais escolas vão exercer uma profissão como outra qualquer. É um engano. Em outro qualquer país, isto pode se dar; na Bruzundanga, não. Lá, o cidadão que se arma de um título em uma das escolas citadas, obtém privilégios especiais, alguns constantes das leis e outros consignados nos costumes. O povo mesmo aceita esse estado de cousas e tem um respeito religioso pela sua nobreza de doutores. Uma pessoa da plebe nunca dirá que essa espécie de brâmane tem carta, diploma; dirá: tem pergaminho. Entretanto, o tal pergaminho é de um medíocre papel de Holanda. As moças ricas não podem compreender o casamento senão com o doutor; e as pobres, quando alcançam um matrimônio dessa natureza, enchem de orgulho a família toda, os colaterais, e os afins. Não é raro ouvir alguém dizer com todo o orgulho: ‑ Minha prima está casada com o doutor Bacabau.” (LIMA BARRETO, cit. p. 41)

O respeito religioso pelos doutores é constatação do bacharelismo que nos marcava, e que de certa forma ainda nos caracteriza. Lima Barreto também zombava de festas de formaturas, dispendiosas e demoradas, vedadas aos desprovidos de recursos. Exames preliminares eram ainda mais caros. É que poderiam ser medidos pelas matrículas gastas nos cursos secundários.

E ainda, quanto aos cursos secundários, “(…) apesar de serem lentos e demorados, os cursos são medíocres e não constituem para os aspirantes senão uma vigília de armas para serem armados cavaleiros”. (LIMA BARRETO, cit., p. 41). O título de tratamento, doutor, foi desconstruído pela prosa de Lima Barreto, que ainda não perdoava o fato de que doutores recebiam (e ainda recebem) tratamento especial por parte da legislação:

“ O título – doutor – anteposto ao nome, tem na Bruzundanga o efeito do – dom – em terra de Espanha. Mesmo no Exército, ele soa em todo o seu prestígio nobiliárquico. Quando se está em face de um coronel com o curso de engenharia, o modo de tratá‑lo é matéria para atrapalhações protocolares. Se só se o chama tout court – doutor Kamisão -, ele ficará zangado porque é coronel; se se o designa unicamente por coronel,  ele julgará  que  o  seu  interlocutor  não  tem  em grande  consideração o seu título universitário‑militar. Os prudentes, quando se dirigem a tais pessoas,  juntam os  dois títulos, mas há ainda aí uma dificuldade na precedência  deles, isto  é, se  se devem designar tais senhores por – doutor coronel – ou – coronel doutor.  Está aí um problema que deve merecer acurado estudo do nosso sábio Mayrinck. Se o nosso grande especialista em coisas protocolares resolver o problema, muito ganhará a fama da inteligência brasileira. Quanto aos costumes, é isto que se observa em relação à nobreza doutoral. Temos, agora, que ver no tocante às leis. O nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos mais repugnantes crimes. Ele não pode ser preso como qualquer do povo. Os regulamentos rezam isto, apesar da Constituição, etc., etc.” (LIMA BARRETO, cit., p. 42).

De alguma maneira, as críticas de Lima Barreto transcendem no tempo, matizam circunstâncias recorrentes, captam tipos comuns, denunciam fatos corriqueiros no mundo da burocracia.

Bibliografia
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Os Bruzundangas. Belo Horizonte: GARNIER, 1998.

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