Ideias do Milênio

Os levantes árabes pegaram todo mundo de surpresa

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16 de dezembro de 2011, 13h04

  Entrevista de Tariq Ali, escritor e ativista paquistanês, ao jornalista Silio Boccanera, transmitida no dia 5 de dezembro no programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:

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Nascido no Paquistão, Tariq Ali foi enviado pela família de classe média alta para estudar na Inglaterra, onde se politizou e se tornou líder do movimento estudantil na universidade de Oxford nos anos 60. Era tão rebelde que, após uma conversa com ele, John Lennon compôs “Power to the People”. Muitos que percorreram esse caminho na juventude se acomodaram nos tempos maduros, mas Tariq não arrefeceu em seu confronto com o establishment político, que ele sempre ataca pela esquerda, como escritor, comentarista e parte do conselho editorial da revista New Left Review. Viaja pelo mundo em palestras e discussões sobre eventos internacionais que o mobilizam com paixão. Alguns de seus muitos livros, ficção ou realidade, estão publicados no Brasil, que ele conhece bem, pois visita com frequência. Numa dessas passagens pela terra fomos encontrá-lo na Festa Literária de Olinda, Pernambuco, a Fliporto.

Silio Boccanera — Quais são as ideias equivocadas mais comuns que o Ocidente tem em relação a essa parte do mundo?
Tariq Ali —
Acho que precisamos separar os governos e líderes ocidentais da população comum do Ocidente. Estamos falando, basicamente, de América do Norte e Europa. Com relação aos governos ocidentais, eles têm uma ideia perfeitamente boa do que é o mundo muçulmano, quem são seus líderes, o que é o país etc. Os cidadãos ocidentais têm uma ideia muito ruim, ou nenhuma ideia, ou ideias estúpidas sobre o que é o Oriente e o que o forma. Desde o 11 de Setembro, isso piorou muito. Homens barbados correndo e matando pessoas, se matando e jogando bombas. Esse é o conceito dominante atual do mundo islâmico na mente ocidental. É muito perigoso. Se você desumanizar seu adversário, não importa quantas pessoas você vai matar. Se você desumanizar os muçulmanos, pelo motivo que for, poderá matar quantos quiser, e seus cidadão não vão se importar. Um milhão de iraquianos morrem no Iraque. Não há o menor problema. Agora, se um regime não alinhado ao Ocidente matar 400 ou 500 pessoas, é acusada de genocídio. São detidos, acusados e julgados por crimes de guerra. Mas os líderes ocidentais podem fazer o que quiserem, contanto que a população esteja passiva e cordata. Esse é o grande problema: o abismo entre a realidade do mundo islâmico e a realidade do pensamento cotidiano dos cidadãos ocidentais.

Silio Boccanera — O grande acontecimento deste ano, que obviamente atraiu a atenção de todos de maneira entusiasmada, foi a chamada Primavera Árabe. Estamos falando da rebelião no mundo árabe.
Tariq Ali —
Olhe, acho que os levantes árabes que ocorreram no início deste ano pegaram todo mundo de surpresa, inclusive o próprio mundo árabe. As pessoas não estavam prontas, não estavam preparadas para aquilo, mas aconteceu. O déspota da Tunísia caiu em um tempo tão curto, que deu esperança aos povos do mundo árabe. Depois, as massas egípcias se mobilizaram e derrubaram seu déspota. A partir daí, todo o mundo árabe se incendiou. Mas os regimes da Tunísia e do Egito que foram derrubados eram ambos pró-Ocidente. E o Ocidente inicialmente não sabia como reagir. Hillary Clinton declarou que Hosni Mubarak era amigo dos Estados Unidos. Depois, ela ainda levou adiante, dizendo: “Bill e eu consideramos como uma pessoa da família.” Foi essa a atitude em relação aos déspotas. Os déspotas foram derrubados e nem todas as conquistas foram realizadas. Eu diria que a Primavera Árabe deu início a um período de transição no mundo árabe. Não existe solução à vista, mas, por outro lado, as pessoas perceberam que, se agirem unidas, poderão se livrar do que quiserem. Aonde isso vai dar, não se sabe, mas tem sido extremamente positivo, na minha opinião. Com exceção da Líbia, onde acho que a intervenção do Ocidente não ajudou. Eu acho que a maneira como Kadafi… Seja qual for a sua opinião sobre ele, e eu nunca o apoiei. O Ocidente o apoiou bastante. A maneira como ele foi morto, a forma como foi mostrado sem comentário crítico, na BBC, na CNN e nas emissoras de TV do mundo, foi uma desgraça. Uma desgraça total e completa, que expõe problemas que a civilização ocidental enfrenta em si mesma. Dito isso, a luta não acabou. A população síria se revoltou. O déspota sírio se recusa a sair. Espero que não ocorram mais desastres lá. Mas, em geral, o sentimento no mundo árabe é positivo. Se nós agirmos poderemos vencer.

Silio Boccanera — Quando vemos as notícias dos últimos dias e nos lembramos do Afeganistão e do Iraque, as notícias recentes trouxeram o Irã à tona. A possibilidade de intervenção militar no Irã parece uma ideia maluca, mas é possível?
Tariq Ali —
É possível. Eu sou uma das pessoas que, até agora, e inclusive agora, consideram isso improvável. Não há dúvida de que a pressão para bombardear o Irã está partindo de Israel. Por que parte de Israel? Os israelenses temem que, se os iranianos tiverem armas nucleares, Israel perderá o monopólio nuclear naquela região. Isso é importante de se entender. O Irã é um país cercado por estados nucleares. Israel tem armas nucleares, o Paquistão tem armas nucleares, a Índia também tem, a China, um pouco mais distante também tem. Um país como a Coreia do Norte tem armas nucleares. Submarinos nucleares e navios americanos armados com mísseis nucleares patrulham águas iranianas. Então, que é o problema de o Irã querer armas nucleares como um ato de defesa? Por que não? Mas isso gera o medo de que os israelenses perderão o monopólio nuclear. Na minha opinião, é uma coisa boa. E os israelenses querem eliminar os reatores nucleares do Irã, que estão espalhados pelo país. Seria uma guerra em larga escala. Os EUA até agora se opuseram a isso. Os generais americanos sabem muito bem que, se os israelenses atacarem o Irã, os iranianos não vão acreditar que os EUA não lhes deram sinal verde e vão combater os americanos em 4 ou 5 frentes diferentes. Vamos analisar essas frentes. No Iraque, a influência iraniana atingiu o auge. Vão abrir uma frente no Iraque e expulsar todos os americanos. No Afeganistão, onde a situação esta incrivelmente ruim para a Otan os iranianos vão instruir os grupos próximos a eles para se concentrarem seus esforços nos insurgentes e expulsarem os americanos do país. No Líbano, vão abrir uma nova frente na fronteira com Israel e vão lutar dentro do Irã. E quem sabe o que acontecerá dentro do Golfo, na Arábia Saudita e no Bahrein, onde há uma população xiita imensa? Portanto, um ataque ao Irã vai desestabilizar totalmente aquela área. Os generais americanos não são burros. Eles às vezes fazem burrice, mas, na realidade, sabem qual é a situação. Vão tentar impedir que isso aconteça. Se os israelenses desafiarem os americanos e partirem para o ataque, tudo pode acontecer. Pode abrir uma guerra verdadeira, séria e cruel dentro desse mundo e gerar uma grave crise na elite americana.

Silio Boccanera — Por que a resistência de Israel e dos EUA com relação à formação do Estado da Palestina?
Tariq Ali —
A história da Palestina agora é a história de uma grande tragédia que o lado judeu, que os europeus fizeram o Holocausto da segunda guerra mundial, que foi um crime terrível executado por europeus contra judeus. As vítimas indiretas desse crime são os palestinos, porque se torna impossível, em alguns países, defender a causa Palestina para falar sobre os direitos dos palestinos de ter seu Estado independente ou de pedir um Estado único. Um Estado naquela área que dê direitos iguais a muçulmanos, judeus, cristão, quem quer que seja, independente de quem for. Isso é o que eu apoio agora. Eu não acredito que um Estado Palestino separado, que seja significativo, seja uma possibilidade. Isso foi morto. Foi morto pelos israelenses e pelo apoio americano incondicional aos israelenses. Então, não acho que isso acontecerá, porque mesmo que aconteça, será algumas faixas. Melhor não aceitar essa humilhação. Então, uma solução de Estado único, com um Estado democrático para todas as pessoas naquela região é, na minha opinião, uma esperança de longo-prazo para as pessoas naqueles país. Caso contrário, será miséria. Os palestinos são as últimas vítimas do colonialismo, porque os britânicos criaram esse Estado no Oriente Médio de forma instrumental. Está lá para ficar. Ninguém pode desafiá-lo. Israel tem o sexto maior exército no mundo e é uma potência nuclear. Ninguém pode desafiá-lo. Ninguém quer desafiá-lo. Apenas pedem justiça para os palestinos. Sabem os alemães? Agora dão a todos os israelenses que são judeus alemães o direito automático a cidadania alemã e, se tiverem posses, todas as suas posses de volta. Isso é um bom modelo para os israelenses adotarem.

Silio Boccanera — Então, você não acha mais que deva existir um Estado Palestino? Se entendi bem, na sua opinião, é porque está se tornando impossível criar um. Então haveria um Estado único para judeus e palestinos?
Tariq Ali —
Isso porque tornaram a outra solução impossível. A única base e, até mesmo ela não seria justa, na minha opinião, seria os israelenses retornarem para as fronteiras de 1967. Isso significa remover todas as colônias judaicas, pegar todos os judeus do Brooklyn nessas colônias e mandá-los para dentro de Israel ou de volta para o Brooklyn. É preciso fazer algo assim e eles não vão fazer. Isso é o mínimo para uma Palestina independente nas fronteiras de 1967 e, então, você tem algum tipo de Estado que pode sobreviver. Sem isso é impossível. Não existe uma Autoridade Palestina. Há apenas a autoridade do exército israelense que controla e ocupa toda a palestina de um jeito ou de outro. Isso não é uma situação que pode continuar para sempre. Em um Ocidente que alega defender Direitos Humanos e bombardeia países por 6 meses em nome dos Direitos Humanos, nada é feito sobre Gaza, nada é feito sobre a ocupação da Palestina. Se você levantar a questão, eles dizem que você é anti-semita.

Silio Boccanera — Nós estamos a cerca de 1 ano da eleição para presidente nos EUA, que deve ser um fator de peso para qualquer decisão nessa área. Isso nos traz a questão de que quando Obama assumiu, houve uma grande mudança na retórica, houve uma mudança de tom na política externa americana em comparação com o governo George Bush. Quase 4 anos depois, Obama decepcionou?
Tariq Ali —
Bem, não posso dizer que ele me decepcionou, porque, para ser sincero, eu não esperava nada dele. Mas ele certamente decepcionou as pessoas que tinham ilusões a respeito dele. Eu digo a elas, principalmente nos EUA… Lá, há centenas de milhares de pessoas que se sentem traídas, e eu digo a elas: “O que Obama traiu foram as suas ilusões.” Obama não prometeu grandes mudanças. Foi a retórica das relações públicas. “Mudança em que podemos acreditar.” Isso pode significar qualquer coisa. “Sim, nós podemos.” Podemos o quê? Dançar? Beber? Comer? O quê? Então, Hillary Clinton chega e dá palestras sobre comportamento a uma turma de escola do Paquistão. Na última vez que ela foi lá, alguém se levantou e disse: “Sra. Clinton, desculpe por dizer isso, mas a senhora lembra uma sogra raivosa que chega subitamente e diz que tudo o que a nora faz está errado. É assim que a senhora trata o Paquistão.” Todo mundo começou a rir.

Silio Boccanera — O senhor falou da forte presença americana na área, principalmente desde o 11 de Setembro, tanto no Afeganistão quanto no Paquistão. Como os EUA estão militarmente presentes no mundo inteiro, isso não está se tornando um fardo pesado demais para um país em crise financeira? Não é difícil demais para o império manter? Como aconteceu com os britânicos.
Tariq Ali —
Estou trabalhando em um livro sobre este tema no momento, então, penso muito nisso. Eu acho… Se analisar a História dos séculos 19 e 20, grandes impérios europeus caíram por três motivos. Primeiro: lutaram uns contra os outros e se enfraqueceram mutuamente. A Primeira e a Segunda Guerra Mundiais foram basicamente guerras entre as grandes potências imperiais. Isso as enfraqueceu. Segundo: os EUA estavam ao fundo, como uma potência imperial intocada pela guerra, pronta para tomar os territórios e a influência dos impérios europeus. E o terceiro: havia um imenso movimento anticolonialista, um movimento nacionalista, em todos os países ocupados pelos europeus, levando a uma grande guerra da Frente de Libertação Nacional da Argélia contra os franceses, e sua vitória levando à guerra no Vietnã, primeiro contra os franceses e depois contra os EUA, que levou à guerra na Índia contra o império britânico e às guerras na África. Esses três fatores, unidos, destruíram os impérios europeus. Não existe movimento ou força parecida com relação aos EUA. Os EUA estão economicamente enfraquecidos, dependendo pesadamente da China, mas compensam sua fraqueza econômica com um excesso de empenho e determinação militar. Esse domínio militar é muito importante para os EUA, porque é a única maneira que eles têm de manter seu poderio econômico e influenciar países. Não podem fazer isso só com a força da economia, como fazem os chineses. E não há potencia esperando para tomar dos EUA. Os chineses não querem. Não há outra potência capaz no mundo. Acho que o império americano enfraqueceu internamente, não há a menor dúvida, mas é muito forte militarmente. É tão forte militarmente que supera o conjunto dos 10 países mais fortes em termos de armamentos, pesquisa, capacidade de ataque, e agora controlam o espaço aéreo.

Silio Boccanera — O Paquistão está obcecado pela Índia, que considera tradicionalmente seu grande inimigo. Não é o Talibã, nem o terrorismo, nem Bin Laden, é a Índia. Pode, por favor, explicar o motivo dessa obsessão?
Tariq Ali —
Bem, o Paquistão já fez parte da Índia uma época, até que o Império Britânico dividiu o continente, como dividiu cada país que já ocupou durante a fase imperial. Eles dividem e governam. Quando eles vão embora, os países permanecem divididos. Mais perto da Grã-Bretanha, foi o caso da Irlanda. Foi assim com Chipre, Oriente Médio, África e o subcontinente indiano. Então, eles dividiram o país e entregaram o poder para um grupo de pessoas com baixíssima popularidade por lá. Essas pessoas não sabiam o que fazer com o país, não sabiam como governar, mas sabiam que a Índia era a inimiga. Não queriam nunca mais fazer parte da Índia. Então, desenvolveu-se uma estúpida inimizade entre os dois países, desnecessária, na minha opinião. Mas uma causa para essa grande diferença atualmente é a questão da Caxemira, que fica na Índia, mas a maio parte de sua população, 80% dela, é de muçulmanos. Provavelmente, teriam votado pelo Paquistão, se lhes fosse permitido, e os indianos jamais lhes permitiram. Já houve diversos levantes na Caxemira, brutalmente reprimidos pelo exército indiano. O número de baixas na Caxemira nos últimos 20 anos mostra que, pelo menos, 70 mil pessoas foram mortas. Mulheres foram estupradas, meninos foram perseguidos e mortos. O estupro das mulheres, a matança dos meninos e dos idosos geram uma raiva verdadeira. A menos que essa questão seja resolvida de alguma forma, não vai haver entendimento. A questão da Caxemira precisa ser resolvida. Isso gera inimizade. Ao mesmo tempo, já houve novas tentativas de abrir as fronteiras e estabelecer o livre comércio. É uma questão contraditória no momento, e ambos os países são potências nucleares.

Silio Boccanera — Estamos vendo o início do fim do capitalismo?
Tariq Ali —
Não e te direi a razão. Queria poder responder sim, isso me deixaria muito feliz. Capitalismo nunca vai ruir a menos que exista uma alternativa. Enquanto não houve alternativa ao capitalismo, ele pode passar por crise depois de crise como passou por sua história. As pessoas falam de socialismo ter falhado, mas o socialismo só falhou uma vez. O capitalismo falhou, pelo menos, 30 vezes nos últimos 200 anos. Se você voltar ainda mais, você vai encontrar mais relatos de crises. Então, está passando por uma crise enorme no momento, mas vai sobreviver a não ser que alguma alternativa surja e a única alternativa que parece possível e viável é uma alternativa dentro do capitalismo que o regula, o controla e um Estado que intervém para possuir bens e melhorar as condições de vida do seu povo, ou seja, uma alternativa social democrata. Os políticos não estão preparados para isso, então isso também é improvável, ainda assim é a solução mais provável para a crise se chegar ao extremo. A derrubada desse sistema não parece provável no momento atual e, mesmo os regimes que eu gosto na América do Sul – Chávez, Morales, o Correa, para dar três exemplos – não desafiaram o capitalismo. De forma alguma. Pelo contrário. Eles o mantiveram, apenas usaram o Estado e a riqueza do Estado para tentar melhorar as condições de vida do seu povo. Falei para eles que é uma fraqueza estrutural, porque em última instância esse sistema vai prevalecer e criar sua própria forma de novo. Então, mesmo naqueles países isso não aconteceu, não consigo ver isso no Ocidente, até agora.

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