Embargos Culturais

Sátira e crítica nas Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

11 de dezembro de 2011, 7h08

Caricatura: Arnaldo Godoy - ColunistaJonathan Swift publicou Viagens de Gulliver em 1726. Nasceu na Irlanda,  foi pastor protestante. Ao fim da vida, teria sofrido de mal de Alzheimer. Seu livro Viagens de Gulliver faz paródia aos livros de viagem, tão em voga no início do século XVIII.

O personagem principal, Lemuel Gulliver, era um médico inglês, cirurgião em navios comerciais, que após naufrágios e demais peripécias aportou em lugares estranhos. A imaginação topográfica de Swift não tinha limites. São quatro grandes viagens que compõem o livro. Na primeira delas Gulliver contava com 39 anos. Os nomes dos lugares por onde passou indicam mistérios insuspeitos: Lilliput, Brobdingnag, Laputa, Balnivarbi, Glubbdubdrid, Luggnagg, Houyhnmland, bem como paragens mais reais, a exemplo do Japão, da Holanda e de Portugal.

A primeira aventura tem início quando Gulliver acorda após um naufrágio. Ele se vê enlaçado por pequeníssimas cordas. Está em Lilliput. Os habitantes da região são minúsculos; o cirurgião inglês vê-se como um gigante. Tenta a primeira fuga, porém incomoda-se com imensidão de pequenas flechas. Os lilliputianos, homens em miniatura, atacam o herói misantropo de Swift. Na medida em que ganhava a confiança daquelas estranhíssimas e pequenas figuras, Gulliver percebeu costumes estranhos. Políticos buscavam apoio popular e para tal pulavam cordas (cf. SWIFT, s.d., p. 50). A imagem é expressiva, a movimentação de cordas confirma mudanças recorrentes de opinião. Gulliver mostrou-se fiel ao imperador, a quem jurou fidelidade. Crescia seu bom relacionamento com os lilliputianos.

 Ao longo da narrativa Gulliver observava o modo de vida de Lilliput. Percebia que temas constitucionais eram discutidos com virulência. Havia dois grupos hermenêuticos em disputa: os tramecksan odiavam os slamescksan. Aqueles primeiros defendiam o uso de sapatos com saltos altos, estes últimos sustentavam que a constituição determinava que se usassem saltos baixos (cf. SWIFT, cit., p. 36).

A antinomia evidencia paródia aos whigs e tories ingleses, isto é, liberais e conservadores. Os ministros do imperador usavam saltos baixos. A população em geral preferia os saltos altos. Discutia-se muito também a propósito de como deveriam ser quebrados os ovos. Costumes ancestrais exigiam que se quebrassem os ovos por baixo, pela parte mais larga. Imperadores mais recentes desafiavam as tradições e insistiam que os ovos deveriam ser quebrados pela parte menor, isto é, por cima. Ao que consta, havia gente que preferia morrer a quebrar os ovos por cima…

O modelo jurídico chamou a atenção de Gulliver. Se acusados conseguissem provar inocência, acusadores seriam condenados à morte. Crimes contra o Estado eram punidos de modo extremamente severo. Fraudes eram punidas mais draconianamente do que roubos. A ingratidão era um dos mais sérios crimes.

Empregos eram obtidos menos em função das habilidades do candidato do que em decorrência das qualidades morais que apresentasse (cf. SWIFT, cit., p. 48). A percepção de justiça, tal como reproduzida nos tribunais de Lilliput, era representada por seis olhos, uma bolsa de ouro (aberta) em uma imaginária mão direita, e uma espada na mão esquerda; mostrava-se maior disposição em se recompensar do que em punir (cf. SWIFT, cit., p. 47).

Gulliver descobriu um inimigo Bolgolam, almirante que fazia intrigas e que prejudicou o médico inglês ao vinculá-lo ao imperador de Blefuscu, ilha vizinha, rival de Lilliput. O imperador de Blefescu apoiava o grupo que defendia a quebra dos ovos pela parte de baixo. Os habitantes de Blefescu eram ameaça recorrente; acreditava-se que invadiriam Lilliput a qualquer momento.     

E porque Gulliver tentou apagar um incêndio, urinando na pequena fogueira, foi acusado de altíssima traição, de modo que precisou fugir para Blefescu. Um navio mercante inglês o salvou. Gulliver retornou para a Inglaterra. Encerrou-se a primeira etapa da inusitada viagem.

De volta ao mar, Gulliver foi deixado numa praia deserta por alguns marinheiros que saíram na busca de água fresca. Descobriu que estava numa terra de gigantes, Brobdingnag. Reduzido a boneco de brinquedo pela filha de um fazendeiro arrogante, Gulliver viu-se atacado por ratos gigantes; defendeu-se com a própria espada. O fazendeiro exibiu Gulliver por todo o país, que se impressionou com o pequeno tamanho do médico inglês.

A rainha comprou Gulliver e fez dele brinquedinho particular. Não obstante bem cuidado, Gulliver sentia-se humilhado com o tratamento que lhe era dispensado. Gulliver narrou orgulhosamente o modo de vida europeu, com especial deferência às ilhas inglesas e à colônia na América (cf. SWIFT, cit., p. 130). O soberano da terra dos gigantes assustava-se com a descrição das armas usadas na Europa, bem como se assustou com a crueldade com que europeus usavam destas armas. Em Brobdingnag a razão era o motivo da obediência das leis, e não a força.

As leis eram sumárias, nenhum texto normativo poderia ultrapassar o número de 22 palavras, isto é, o equivalente o número de letras do alfabeto (cf. SWIFT, cit., p. 140). Textos normativos não usavam palavras desnecessárias ou de interpretação muito ampla, cada expressão deveria possuir significado unívoco (cf. SWIFT, cit., p. 140).

Na terceira das viagens, após fugir de piratas, Gulliver foi salvo pelos habitantes de Laputa. Tratava-se de ilha imensa que parecia flutuar no céu. Os habitantes da ilha cultivavam a música e a matemática. Especulavam e filosofavam o tempo todo. Somente a abstração os cativava. Levado por outros piratas para outra ilha desconhecida, Gulliver protagonizou as aventuras da quarta e última viagem. Foi levado para Houyhnhumland , onde conheceu incríveis figuras hirsutas, os yahoos. Pelo menos era esta a palavra que aquelas criaturas repetiam inúmeras vezes (cf. SWIFT, cit., p. 243). Os yahoos pareciam-se muito com seres humanos. Quando descobriram que as roupas de Gulliver poderiam ser tiradas, e quando o viram totalmente nu, concluíram que o médico inglês só poderia ser um deles…

Gulliver começou a aprender a língua de Houyhnhumland. Descobriu problemas de comunicação, na medida em que os yahoos não tinham palavras para designar conceitos como crime, poder e governo. Razão e natureza guiavam aquelas figuras. Não havia advogados, médicos ou políticos. Aceitava-se a morte, não se faziam velórios; o fim da vida era decorrência intrínseca ao viver — nada mais natural. Ambigüidades e discussões sutis eram inexistentes. A noção de verdade e de falsidade transcendia a qualquer conceito europeu. Gulliver encontrava-se em perfeita harmonia (cf. CAMPBELL, 1997, pp. 319 e ss.).

Embora decidido a nunca mais voltar para a Europa, Gulliver foi descoberto por alguns navegadores portugueses que o conduziram à Península Ibérica. Desgostoso com os homens, saudoso dos yahoos, Gulliver preferia a sociedade dos cavalos. Embora se reconciliando com a esposa, Gulliver abandonou para sempre qualquer ligação com a espécie humana (cf. CAMPBELL, cit.); era um misantropo.

Irritado com a civilização, cheio de benevolência para com o outro, defensor da educação feminina, crítico de doutores e de charlatães, da guerra e dos intelectuais (cf. CAMPBELL, cit.), Gulliver buscava uma utopia que se revelou nos yahoos e numa nova forma de apreender a civilização e suas leis.

Bibliografia

CAMPBELL, W. John. The Book of Great Books. New York: Metrobooks, 1997.
SWIFT, Jonathan. Gulliver´s Travels. London: Thomas Nelson and Sons Ltd, s.d.

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