Advocacia voluntária

“Compartilhar advocacia com necessitados é um dever”

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11 de dezembro de 2011, 8h45

Spacca
Edwin Rekosh [Spacca]Por mais de quinze anos, Edwin Rekosh liderou movimentos de fortalecimento de advocacia voluntária na Europa, nos Bálcãs, na antiga União Soviética e também na China. Fundador da organização não-governamental Public Interest Law Institute [Instituto Legal de Interesse Público, em tradução livre], foi com conhecimento de causa que o professor da Universidade de Columbia, em Nova York, desembarcou no Brasil, pela terceira vez em dez anos, para participar das comemorações de aniversário de uma década do Instituto Pro Bono.

No encontro, o criminalista Miguel Reale Júnior, sócio-fundador do Instituto Pro Bono, lembrou que ao longo da última década, a instituição enfrentou resistências no Conselho Federal da OAB e, sobretudo na Comissão de Responsabilidade Social. “É preciso dar nome aos bois”, explicou. De acordo com o artigo 1º da Resolução Pro Bono, a atividade consiste em “assessoria e consultoria jurídicas, permitindo-se excepcionalmente a atividade jurisdicional”.

“Muito me surpreende que a advocacia pro bono ainda sofra esse tipo de resistência”, comentou o entrevistado. Também pudera. Nos Estados Unidos, a advocacia voluntária chega a ser um chamariz para novos clientes. Aqui, a OAB teme justamente que a advocacia voluntária seja usda para captar clientes. Nos EUA, os novos advogados preferem trabalhar nas bancas que abrem espaço para o voluntariado. Foi também lá que o conceito surgiu, por iniciativa da própria sociedade.

Para o professor americano, a advocacia pro bono se justifica pelo simples fato de a advocacia ser um monopólio dos advogados. "Então o exercício da advocacia pode ser visto como um privilégio que deve ser compartilhado com a sociedade", explica.

Rekosh, que  também é professor de Direitos Humanos e Desenvolvimento, da Universidade de Columbia, recebeu, em 2009, o Prêmio Internacional de Direitos Humanos da American Bar Association, a OAB dos Estdos Unidos. Casado com uma romena, arranha o português, mas conversou com a reportagem da ConJur em inglês.

Leia abaixo a íntegra da entrevista:

Edwin Rekosh — O senhor pode explicar como funciona a assistência judiciária nos EUA?
ConJur — A assistência está disponível de muitas formas. Ao contrário do que acontece em outros países, nos Estados Unidos a assistência gratuita não é organizada pelo Estado. Há alguns programas do Governo Federal e também em âmbito mais local, voltados à assistência criminal e à defesa dos direitos constitucionais, por exemplo. Mas, na área civil, não há algo do governo — aí entra um conjunto de diferentes mecanismos, muitos deles de cunho privado. Além disso, desde a década de 1980, a atividade pro bono vem crescendo para preencher uma lacuna na assistência judiciária. Como eu disse, a demanda é sempre maior do que os serviços disponíveis. Então o pro bono tem sido uma forma importante de sanar essa lacuna. Mas não é suficiente. O Governo Federal começa a se preocupar com esse hiato da Justiça, nos Estados Unidos, e uma solução específica ainda não foi encontrada.

Edwin Rekosh — A atividade desses advogados que atuam como pro bono é regulada pela American Bar Association, à semelhança do que acontece aqui com a regulamentação feita pela Ordem dos Advogados do Brasil, por meio da Resolução Pro Bono, de 2002?
ConJur Antes de mais nada, é bom definir o que significa pro bono no contexto americano. Pro bono geralmente vem de um senso de valor e de ética ligado à profissão legal. Se você tem o monopólio desse serviço, isso se torna um privilégio e os advogados querem devolver isso pra sociedade. Advogados muitas vezes ajudam seus amigos e vizinhos simplesmente porque eles detêm o monopólio desse serviço e isso sempre foi entendido como um serviço beneficente oferecido por eles. Nos Estados Unidos, pro bono é um serviço institucionalizado e formalizado, oferecido pelas grandes bancas. Essas firmas crescem de tamanho e se tornam desapegadas das comunidades locais, por isso que a atividade é institucionalizada, porque os advogados trabalham em locais onde as pessoas não estão. Então, em termos de regulação, a atividade não é regulada pela ABA. Não é uma prática profissional, e sim voluntária. A American Bar Association, que não é uma entidade reguladora, mas sim uma organização de advogados, na verdade encoraja esse tipo de atividade, estabelecendo metas, discutindo o contexto pro bono e as responsabilidades da profissão.

Edwin Rekosh — Os advogados que não praticam pro bono não ficam preocupados em perder a clientela?
ConJur Não, eles não estão. Há algumas possíveis razões para isso. Uma delas é que a atividade pro bono éconsiderada como uma responsabilidade intrínseca da profissão. É uma ideia extremamente legítima. Não se questiona a possibilidade de esse ou aquele advogado praticar advocacia pro bono. Espera-se que os advogados exerçam essa atividade. E mesmo que o advogado prefira não fazer, já que não é algo compulsório, é muito complicado para ele criticar alguém que faça, porque é como criticar alguém pela prática de uma atividade beneficente.

Edwin Rekosh — O que o Public Interest Law Institute, do qual o senhor é fundador, mostrou sobre o assunto?
ConJur — É uma organização que atua concentrando atividades de advogados ao redor do mundo, incluindo pro bono. Por isso, sei que em muitos lugares do mundo é diferente do que acontece nos Estados Unidos. Pro bono ainda não é entendido como um conceito formal, não é parte do código de ética da advocacia. Às vezes surgem oposições de advogados que insistem, de modo injustificado, que pro bono consiste em interesses comerciais. Em nenhum lugar do mundo vi como justa essa preocupação, mas ela está presente. E isso acontece porque pro bono está sempre ajudando aqueles que mais precisam nas organizações e que nunca, na imaginação de ninguém, contratariam os serviços de um advogado. Mesmo que eles pudessem, não seria uma prioridade. Por isso pro Bono é tão importante ao redor do mundo. Quando o advogado pro Bono exerce sua atividade, ele está fazendo duas coisas: um serviço beneficente para uma pessoa que não pode pagar por isso e também está ajudando a construir instituições públicas.

Edwin Rekosh — Como o senhor vê o desempenho do pro bono no Brasil?
ConJur — Vejo uma grande e positiva evolução da atividade pro bono aqui no Brasil. É muito mais bem compreendida agora do que da primeira vez que aqui estive. Na verdade me surpreende bastante que ainda seja mal compreendida, como pude perceber durante a palestra. Há setores da comunidade jurídica que hoje apóiam a atividade pro bono e isso é parte do progresso. Mas o fato de existirem resquícios de resistência e preocupação é surpreendente. Por exemplo. Cinco anos atrás, na Europa, não havia esse tipo de advocacia, como uma atividade organizada, mas havia no Brasil. Todas essas etapas aconteceram lá. Os atores europeus não têm dúvida de que pro bono é uma atividade importante.

Edwin Rekosh — O Fórum Europeu Pro Bono, que aconteceu em Berlin, nos dias 17 e 18 de novembro, foi um passo nesse sentido?
ConJur — O encontro é uma evidência dessa aceitação. A Comissão Européia responsável por Justiça apresentou um vídeo no qual disse, de forma muito clara, que pro bono é uma atividade que envolve diversas áreas, como inclusão social e proteção de direitos. Por isso, pra mim é um pouco estranho estar sentado aqui, em um lugar onde o pro bono antecipou tudo isso, mas que ainda não é assim.

Edwin Rekosh — A professora Luciana Gross Cunha disse que uma mudança realizada sem a participação da sociedade civil, de cima para baixo, não democratiza a Justiça. Pelo contrário, quando acesso à Justiça não é pleno, as desigualdades só acabam se acirrando. O senhor concorda com isso?
ConJur — A resposta é sim [risos]. Em alguns sentidos. O pro bono é uma contribuição que parte de baixo de baixo e vai para cima, em alguns casos. De um lado, temos indivíduos que não possuem representantes ou até que não têm problemas legais e não participam de nenhum tipo de assistência judiciária, que não podem arcar com os custos de um advogado. Então, parte dessa democratização, no meu modo de entender, é incluir a maior quantidade de pessoas quanto for possível. Junto a isso, vem sempre a ideia de que a pessoa pode ser representada dentro do Judiciário. De outro lado, as organizações não-governamentais podem intermediar o público em geral e as instituições estatais. Elas podem fazer isso de muitas formas, como auxiliando os litigantes, mas não só. Podem também oferecer habilidades legais, de modo a incentivar a participação no processo, de acordo com sua própria perspectiva. Dessa forma, é possível ver como diferentes opiniões afetam o cenário. Elas podem dizer: “Nós representamos esse grupo em particular e essas são nossas necessidades”. Entender uma situação social e saber como dar conta disso é uma das habilidades muito importantes, que eles não ensinam nas escolas de Direito. Às vezes, os bacharéis conseguem entender as normas, mas não a sociedade.

Edwin Rekosh — Aqui no Brasil nós temos a Defensoria Pública, que é prevista pela Constituição Federal como um órgão essencial à Justiça. O que o senhor acha dessa instituição?
ConJur — É uma instituição muito importante. Na verdade, em uma perspectiva global, é também bastante inovadora. O modelo da Defensoria Pública brasileira possui as melhores características, como autoridade nos Estados que podem agir com legitimidade e influência na tradição legal na sociedade.

Edwin Rekosh — A Fundação Getúlio Vargas elabora o índice de Confiança no Judiciário. Os índices não são bons. Nos Estados Unidos, as pessoas confiam nesse Poder?
ConJur — Não, não é assim nos Estados Unidos. O Judiciário é uma das instituições que mais inspiram confiança. Se você falasse do Congresso americano, seria diferente [risos]. Por outro lado, em muitos países do mundo onde eu trabalhei, a situação é parecida com a do Brasil. Na China, que é um exemplo bem específico, é assim, e na Rússia também. Essa é a razão porque eu enfatizo porque a advocacia pro bono é tão importante. Para que as instituições do Judiciário sejam fortes, é preciso que elas sejam confiáveis. E, mais ainda se levarmos em consideração que é lá onde o público e o Estado interagem. Então, não é extremamente incomum que a confiança seja baixa e por isso que essa assistência precisa ser fortalecida.

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