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Sentença estrangeira não pode dividir bens no Brasil

Autor

  • Antenor Madruga

    é sócio do FeldensMadruga Advogados doutor em Direito Internacional pela USP especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP e professor do Instituto Rio Branco.

31 de agosto de 2011, 16h48

Spacca
É possível homologar sentenças estrangeiras que disponham sobre partilha de bens, especialmente de bens imóveis, localizados no Brasil? Essa questão encontra respostas distintas na história da jurisprudência brasileira.

O problema a contornar é a interpretação do artigo 89 do Código de Processo Civil, que estabelece:
Art. 89. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra:
I — conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil;
II — proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional.

Considerando-se que o artigo 89 do CPC determina hipóteses de competência absoluta da autoridade judiciária brasileira, exclui-se a possibilidade de admitir que a autoridade estrangeira conheça das ações relativas a imóveis situados no Brasil ou proceda a inventário e partilha de bens situados no Brasil. Consequentemente, eventuais sentenças estrangeiras que, em jurisdição contenciosa ou voluntária, adentrem nesse espaço de competência exclusiva da autoridade judiciária brasileira não poderiam ser aqui homologadas. É clara a jurisprudência no sentido de que a competência absoluta da autoridade judiciária brasileira obsta a homologação da sentença estrangeira.

Porém, antigas decisões do Supremo Tribunal Federal poderiam sugerir que, em determinadas circunstâncias, sentenças estrangeiras que dispusessem sobre partilha de bens, inclusive de bens imóveis, poderiam ser aqui homologadas. No julgamento da Sentença Estrangeira Contestada 4.512, em 21/10/1994, o Supremo Tribunal Federal entendeu que “não fere o art. 89, II, do Código de Processo Civil, que prevê a competência absoluta da justiça brasileira para proceder a inventario e partilha de bens situados no Brasil, a decisão de Tribunal estrangeiro que dispõe sobre a partilha de bens móveis e imóveis em decorrência da dissolução da sociedade conjugal, aplicando a lei brasileira”.

EMENTA: HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA QUE DISPÕE SOBRE A PARTILHA DE BENS DA SOCIEDADE CONJUGAL. CONTESTAÇÃO.
1. Casamento celebrado no Brasil e divórcio decretado pelo Poder Judiciário helvécio, já homologado pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da SEC 3.862, RTJ 131/1.071.
2. Partilha de bens da sociedade conjugal processada posteriormente perante o Judiciário suíço, com aplicação das leis brasileiras.
3. Não fere o artigo 89, II, do Código de Processo Civil, que prevê a competência absoluta da justiça brasileira para proceder a inventario e partilha de bens situados no Brasil, a decisão de Tribunal estrangeiro que dispõe sobre a partilha de bens móveis e imóveis em decorrência da dissolução da sociedade conjugal, aplicando a lei brasileira. 4. Sentença estrangeira homologada.
(SEC 4.512, relator(a): min. PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 21/10/1994, DJ 02-12-1994 PP-33198 EMENT VOL-01769-01 PP-00144).

A leitura do acórdão da SEC 4.512 indica que a partilha por sentença estrangeira de bens situados no Brasil, inclusive de bens imóveis, não agride a competência absoluta do artigo 89 do CPC se a autoridade judiciária estrangeira houver aplicado a lei brasileira. Neste sentido, o voto do relator é explícito quando afirma:

O inciso I do artigo 89 não é aplicável ao caso de inventário e partilha de bens em decorrência da sucessão causa mortis, nem para a partilha por ato inter vivos, como ocorre após a dissolução da sociedade conjugal, pela simples razão de que não são "ações relativas a imóveis situados no Brasil", ou seja, a dissolução de sociedade conjugal com a subsequente partilha, ainda que entre os bens exista imóveis, não é uma ação relativa a imóveis.

Entendo que em casos como este, onde foi aplicada a lei brasileira, não há óbice para que esta Corte homologue a sentença estrangeira que decide sobre a partilha de bens situados no Brasil, por não ver ofensa ao inciso II do artigo 89 do Código de Processo Civil.

Esse entendimento, no entanto, confunde os conceitos de foro competente (competência internacional) e lei aplicável, que são claramente distintos. A aplicação da lei brasileira pela autoridade judiciária estrangeira não é bastante para afastar a competência absoluta da autoridade judiciária brasileira. A lei aplicável (ou a lei aplicada) não tem, no direito brasileiro, relevância na determinação da competência internacional. A solução do conflito de leis no espaço tem fonte distinta da que define o conflito de jurisdições. Aquele rege-se pelos critérios da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/42), este, pelos artigos 88 a 90 do CPC.

Posteriormente, o próprio STF, sem enfrentar as razões da SEC 4.512, decidiu no julgamento da SEC 7.209 que a sentença estrangeira não pode dispor sobre divisão de bens imóveis no Brasil, sob pena de não ser homologável.

SENTENÇA ESTRANGEIRA — TRAMITAÇÃO DE PROCESSO NO BRASIL — HOMOLOGAÇÃO. O fato de ter-se, no Brasil, o curso de processo concernente a conflito de interesses dirimido em sentença estrangeira transitada em julgado não é óbice à homologação desta última. BENS IMÓVEIS SITUADOS NO BRASIL — DIVISÃO — SENTENÇA ESTRANGEIRA — HOMOLOGAÇÃO. A exclusividade de jurisdição relativamente a bens imóveis situados no Brasil — artigo 89, inciso I, do Código de Processo Civil — afasta a homologação de sentença estrangeira a versar a divisão.
(SEC 7.209, relator(a): min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 30/09/2004, DJ 29-09-2006 PP-00036 EMENT VOL-02249-04 PP-00659 LEXSTF v. 28, n. 336, 2006, p. 265-282)

E mais recentemente, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem mantido a última orientação do STF. Em 12/05/2011, a Corte Especial do STJ, no julgamento da Sentença Estrangeira Contestada 5.270, entendeu por unanimidade que “a partilha de bens imóveis situados no território brasileiro é da competência exclusiva da Justiça pátria, nos termos dos arts. 89, I, do Código de Processo Civil, e 12, § 1º, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (antiga Lei de Introdução ao Código Civil).” (SEC 5.270/EX, Rel. Ministro FELIX FISCHER, CORTE ESPECIAL, julgado em 12/05/2011, DJe 14/06/2011).

Nesse mesmo dia, a Corte Especial, por unanimidade, também julgou que “a exclusividade de jurisdição relativamente a imóveis situados no Brasil, prevista no art. 89, I, do CPC, afasta a homologação de sentença estrangeira na parte em que incluiu bem dessa natureza como ativo conjugal sujeito à partilha.” (SEC 5.302/EX, Rel. ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 12/05/2011, DJe 07/06/2011).

Entretanto, se a sentença estrangeira ratificou acordo das partes e dispôs sobre partilha de bens no Brasil, essa sentença pode ser homologada, à luz da jurisprudência do STF e do STJ, espelhada no julgamento da SEC 4.223 pela Corte Especial do STJ:
"… Tanto a Corte Suprema quanto este Superior Tribunal de Justiça já se manifestaram pela ausência de ofensa à soberania nacional e à ordem pública a sentença estrangeira que dispõe acerca de bem localizado no território brasileiro, sobre o qual tenha havido acordo entre as partes, e que tão somente ratifica o que restou pactuado" (SEC 1.304/US, CORTE ESPECIAL, Rel. Ministro GILSON DIPP, DJe de 03/03/2008).
(SEC 4.223/CH, Rel. Ministra LAURITA VAZ, CORTE ESPECIAL, julgado em 15/12/2010, DJe 16/02/2011)

Portanto, somente é possível homologar sentenças estrangeiras que disponham sobre partilha de bens, ainda que imóveis localizados no Brasil, se a sentença estrangeira resume-se a ratificar acordo das partes. Se a sentença estrangeira, de outro lado, dirime controvérsia sobre partilha de bens no Brasil, sua homologação não é possível, ainda que a autoridade judiciária estrangeira tenha aplicado a lei brasileira.

Autores

  • é advogado, sócio do Barbosa Müssnich e Aragão; doutor em Direito Internacional pela USP; especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP; professor do Instituto Rio Branco.

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