Intimidade ou publicidade?

Para juíza, MP não tem acesso a contas da prefeitura

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25 de agosto de 2011, 17h38

O direito à intimidade e à privacidade de órgãos públicos como as prefeituras está sendo discutido em Ação Civil Pública interposta pela Procuradoria da República de Cachoeiro de Itapemirim (ES) para obter do Banco do Brasil e do Banco do Estado do Espírito Santo (Banestes) informações sobre contas que movimentam recursos repassados pela União. A discussão gira em torno da possibilidade de o Ministério Público Federal ter acesso direto aos dados bancários de órgãos públicos com a finalidade de fiscalizar tais gastos.

Ao negar à Procuradoria da República o acesso aos dados bancários da prefeitura da cidade capixaba, a juíza da 5ª Vara Cível Federal, de Vitória (ES), Maria Cláudia de Garcia Paula Allemand, alegou que a quebra de sigilo desejada pelo Ministério Público Federal “não se compatibiliza com os direitos fundamentais à intimidade e à privacidade”, que são garantidos pela Constituição. Já o procurador da República Carlos Fernando Mazzoco entende ser “intolerável qualquer invocação de garantia de sigilo bancário em favor de pessoas de direito público, bem como referente a qualquer operação ativa ou passiva que envolva verbas públicas”.

Ao ver negado o pedido de informações pelos dois bancos, o procurador Mazzoco ingressou com a Ação Civil Pública (Proc. 0011785-47.2010.4.02.5001) em setembro passado. Nela, insiste que “a adoção de tal postura pelas instituições financeiras, além de ignorar os princípios norteadores da administração pública, principalmente os princípios da publicidade e da moralidade, engessa sobremaneira a atividade do Ministério Público, instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, à qual foi incumbida da nobre tarefa de zelar pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Ele diz ainda que a atitude dos bancos cria “imenso entrave à proteção do patrimônio público e social, entre outros bens tutelados pelo parquet, além de ensejar a desnecessária atuação do Judiciário para deliberar sobre ‘quebra de sigilo bancário’ em situações nas quais tais sigilo não se configura, tornando ainda mais onerosa e penosa a atividade dos magistrados”.

Para ele, ao “retardar, dificultar e até inviabilizar as atividades do Ministério Público, as instituições financeiras contribuem para a impunidade daqueles que se valem de atividades criminosas e atos de improbidade para dilapidar o erário público”. Todo o seu pedido é respaldado no artigo 37 da Constituição que estipula para os órgãos públicos “os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Ele cita também artigos da Constituição que preveem aos administradores públicos satisfação de seus atos e outros que dão ao cidadão o direito de receberem informações de interesse pessoal e público.

O Supremo Tribunal Federal garantiu ao MPF acesso a informações bancárias de contas resultantes de financiamentos públicos, independentemente de pedidos judiciais, no julgamento do Mandado de Segurança 21.729-4, interposto pelo Banco do Brasil contra o MPF, julgado em 1995 e que teve o acórdão publicado apenas em 2001.

Já na sua sentença, a juíza Maria Cláudia se contrapõe a este acórdão com uma decisão mais recente do mesmo STF que no MS 22.801-DF, relatado pelo ministro Carlos Alberto Direito, negou acesso do Tribunal de Contas da União a dados bancários sem autorização judicial, uma vez que isto não é previsto na Lei 105/2001 que regulamenta o sigilo bancário.

Para a juíza, o mesmo ocorre com o MPF. “Embora inserido dentre as funções institucionais do Ministério Público, o poder investigatório para as apurações de lesões e/ou ameaças de lesões e valores essenciais da sociedade (art. 129 da CF/88) — o que está a justificar sua pretensão de eventual quebra de sigilo bancário sem a interferência da autoridade judiciária —, na lei específica que tratou do tema, não há autorização, para seu acesso direto a dados bancários, isto é, independentemente de autorização judicial. E, logo, por se tratar de exceção à regra constitucional que assegura o sigilo bancário, não cabe interpretação extensiva”.

Ela destaca ainda que o “Ministério Público, no exercício do seu poder de investigação, ostenta legitimidade para requerer ao Poder Judiciário informações, inclusive bancárias, necessárias à promoção de inquérito civil/criminal e de ação civil pública/penal, nos termos do artigo 129, VI e VIII da CF/88, ainda que alusivas aos próprios entes públicos ou àqueles que movimentem verba pública”.

Na sua decisão, por fim, acusa os procuradores de imparcialidade: “Como o MPF é parte nos referidos procedimentos e/ou processos judiciais, o mesmo não atua de forma totalmente imparcial, ou seja, não possui a necessária isenção para decidir sobre a imprescindibilidade ou não da medida que excepciona o sigilo bancário. Com efeito, somente o Poder Judiciário detém a imparcialidade exigida para decidir em que circunstâncias pode ser revelada a intimidade do indivíduo ou de pessoa jurídica (pública ou privada)”.

Ao apelar ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região, o procurador Mazzoco, sustenta que a juíza equivocou-se. Ele, de plano, rebate a tese da juíza de que os órgãos públicos têm direito à intimidade e privacidade, ao sustentar que o sigilo bancário é “uma garantia dada pelo ordenamento jurídico com vistas à preservação da intimidade e da vida privada dos indivíduos. Em verdade, há que se falar em tal direito para além das pessoas físicas, abrangendo, também, as pessoas jurídicas. Contudo, considerar a hipótese de tutela de interesses da vida íntima e privada quando estiverem sob análise contas vinculadas à movimentação financeira do Poder Público, inevitavelmente, incorre-se em grave erro na aplicação do instituto. É cediço que a administração pública submete-se a regime jurídico especial, caracterizado, principalmente, pela supremacia e pela indisponibilidade dos interesses públicos, pelos quais o agente estatal deve estar sempre vinculado ao interesse público, e este em predominância sobre o interesse privado”.

Depois de voltar a discorrer sobre o princípio da publicidade elencado na Constituição para os órgãos públicos, o procurador insiste: “Não constitui quebra de sigilo bancário, simplesmente pelo fato de que tal privacidade e intimidade não existem. Ora, não se está aqui a negar o direito à vida íntima e privada. Porém, não cabe qualquer alegação de segredo ou privacidade nas situações que envolvam bens e direitos públicos, vez que tais interesses devem ser de conhecimento amplo, salvo nos casos de risco à segurança da sociedade e do Estado.”

O procurador também derrubou o exemplo de jurisprudência citado pela juíza mostrando que a decisão no Mandado de Segurança por ela citada não se assemelha ao caso em questão. “Tal julgado refere-se à auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União nas contas do Banco Central do Brasil, exercício de 1995, na pessoa do presidente da autarquia à época (…) Tendo negado o acesso ao “Sisbacen”, o TCU aplicou multa ao então presidente do Bacen, informando-o, ainda, que a insistência no não atendimento do acesso solicitado sujeitaria o responsável ao afastamento temporário do exercício de suas funções. Nos dizeres do ministro relator, Menezes Direito, vê-se por que foi considerada a hipótese de quebra de sigilo e o motivo pelo qual foi afastada a sua possibilidade: “[…] o que estamos discutindo não é a prestação de informações pelo Banco Central ao Poder Legislativo, mas se é possível uma Câmara do Tribunal de Contas exigir que o Banco Central preste informações irrestritas relativas ao Sisbacen, que é o sistema de informação”.

O procurador então explica: “Num exame mais profundo, observa-se que o caso trata, em verdade, de acesso irrestrito, pelo TCU, a informações e a sistema interno do Banco Central do Brasil, bem como a aplicação de multa e afastamento do presidente da Instituição pelo não atendimento da requisição feita pelo Tribunal de Contas”.

Em seguida ele acrescenta que “o objeto da Ação Civil Pública ajuizada pelo MPF, que move em face das instituições financeiras ora apeladas, em nada se assemelha ao acesso total e irrestrito a sistemas das instituições, como o requisitado pelo TCU ao Banco Central, nem à requisição de informações relacionadas a contas de pessoas físicas submetidas à investigação criminal. Requer o parquet a concessão de informações somente sobre contas relativas à movimentação financeiras de recursos públicos a fim de pôr em prática a sua função de proteção do patrimônio público, prevista constitucionalmente”.

Ao concluir sua apelação ao TRF-2 o procurador Mazzoco insiste que a negativa da juíza poderá causar danos ao patrimônio público: “O que se requer, ressalte-se, não é a prerrogativa do Ministério Público em ter acesso aos dados bancários ora referidos, mas possibilitar a efetiva proteção ao patrimônio da União, do patrimônio público e social.”

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